O interesse de Fernando Pessoa pela verdade transcendental acompanhou-o durante toda a sua vida. São disso testemunho algumas das suas poesias; as suas reflexões sobre metafísica; as suas experiências mediúnicas, que, numa carta à tia Anica de 24 de Junho, diz terem começado por fins de Março desse mesmo ano: “Aí por fins de Março (se não me engano) comecei a ser médium” (Correspondência, I 215); as suas análises profundas, exigentes e, por vezes, arrojadas sobre o oculto nas suas mais diversas formas herméticas: cabala, alquimia, astrologia, rosa-crucianismo, associações secretas, etc.; as suas interpretações proféticas; enfim, todo o seu profuso diálogo com o transcendente. Uma outra prova deste seu desejo continuado do conhecimento gnóstico sem submissão a qualquer dogma fosse ele religioso, filosófico ou metafísico são os numerosos ensaios, reflexões, anotações (uns já éditos, outros, que são muitos, ainda inéditos) que nos deixou sobre esta temática. A sua apetência pelas verdades e mistérios inacessíveis deixou-a registada em Janeiro de 1935 (ano da sua morte), na famosa carta sobre a génese dos heterónimos que escreveu a Adolfo Casais Monteiro. Nessa missiva, satisfaz a curiosidade do seu amigo ao responder-lhe à pergunta por ele formulada anteriormente: acreditaria, ele Pessoa, ou não no oculto. A resposta mostra bem qual a atitude do poeta face a esta questão: “Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em existências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar ao Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que aja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetramente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do ocultismo, ou seja, a Maçonaria evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo» (Correspondência, II 346).
A 30 de Março, desse mesmo ano, escreve a sua Nota Biográfica. Nessa espécie de curriculum, além de preencher os elementos habituais neste tipo de documento, acrescenta os seguintes dados: “Ideologia política”, “Posição religiosa”, “Posição iniciática”, “Posição patriótica”, “Posição social” e, no final, apresenta aquilo a que chamou “Resumo de estas últimas considerações”. Relativamente à “posição religiosa”, declara-se, nessa nota, “cristão gnóstico, e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria” (Obra Poética e em Prosa, III 1428). Complementa-a com a sua “posição iniciática” em que se afirma “iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal” (ibidem). Orientados pela sua mão, podemos, então, asseverar que a sua busca pelo conhecimento se vai estreitando, sem se subordinar a qualquer doutrina, dogma ou Obediência, até chegar ao ponto, por si determinado: o gnosticismo cristão Rosa-cruciano e Templário, onde assenta a “Tradição Secreta do Cristianismo” e que tem a sua representação externa na Maçonaria. Talvez, não só por esta razão, mas também porque, muito contrariamente ao que se tem dito, Pessoa não viveu alheio ao seu tempo, a sua voz veio a terreiro, apesar de não ser maçon, em calorosa defesa da Maçonaria, quando o deputado José Cabral decidiu apresentar, à Assembleia Nacional, um projecto-lei que visava a extinção das Associações Secretas (este projecto-lei tornou-se lei a 21 de Março de 1935 e só foi revogado a 7 de Novembro de 1974). A este propósito e com o intuito de desmascarar a intenção velada daquele deputado, Fernando Pessoa publicou a 4 de Fevereiro de 1935, no Diário de Lisboa um artigo intitulado “As Associações Secretas – Análise Serena e Minuciosa a um Projecto de Lei Apresentado ao Parlamento”. Nesse texto, o poeta afiança não ser maçon nem pertencer “a qualquer Ordem semelhante ou diferente” (Obra Poética e em Prosa, III 474). Um pouco mais adiante, declara não ser antimaçon. Estas duas circunstâncias habilitavam-no, segundo ele, a ser imparcial na sua opinião sobre o assunto. Aí, de uma forma subtil, camuflada pela estratégia de supor que o deputado José Cabral julgava a Maçonaria uma Associação Secreta, apoda-o de ignorante e propõe-se esclarecê-lo, explicando que a Maçonaria não é nenhuma Associação Secreta, mas uma “Ordem Iniciática”, ou, o que vem ao mesmo a seu ver, uma “Ordem Secreta”, porque se reúne em segredo (tal como os Conselhos de ministros a ou as direcções dos partidos políticos) nas suas Lojas e que “para se distinguir dos profanos têm fórmulas de reconhecimento – toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse” (Obra Poética e em Prosa, III 475). Ainda, nesse mesmo artigo, chama a atenção para as consequências que adviriam para o país, caso esse projecto de lei viesse a ser aprovado. E conclui que, internamente, quanto à Maçonaria, o resultado seria nulo, dada a impossibilidade da sua extinção, posto que “qualquer Ordem Iniciática está protegida ab origine symboli” por forças muito particulares que a tornam indestrutível” (Obra Poética e em Prosa, III 477). Portanto, esta continuaria viva, ainda que clandestina. Na sua opinião, o único resultado concreto, a nível de política interna, redundaria na perseguição a funcionários públicos e a oficiais do exército e da armada, o que levaria ao abandono dos cargos, ao desemprego e à precariedade no seio de algumas famílias. Já no que se refere às consequências externas, Pessoa assegura que a passagem daquele projecto a lei acarretaria “um malefício para o país na sua vida internacional” (Obra Poética e em Prosa, III 481), tendo em conta, não só, o grande peso social, económico e político desta Ordem Iniciática a nível internacional, como também a sua sabida solidariedade, factor que poderia levar a uma união mundial de esforços em defesa dos companheiros portugueses, através de sanções económicas, como já sucedera com Prússia. Todo o artigo é percorrido por uma velada e acutilante ironia que, por vezes, toca as raias do achincalhamento. Fernando Pessoa aproveita-se do seu intento em defesa da Maçonaria para dar as suas machadadas à ignorância, tirania e fanatismo do poder político, os três assassinos que nas “últimas considerações” da sua Nota Biográfica se propôs combater.
Este escrito provocou uma acesa polémica em Lisboa. E tão grande esta foi que Pessoa, num texto, que pertencia a um volume que pensou editar sobre esta questão, grafa o seguinte comentário: “pela primeira vez na minha vida fabriquei uma bomba. Cerquei a sua dinamite de verdade com um invólucro de raciocínio; pus-lhe um rastilho de humorismo. Feita, atirei-a aos opositores da Maçonaria. E o efeito foi não só retumbante mas milagroso. Perderam a cabeça sem a ter.” (Obra Poética e em Prosa, III 490). Na verdade, as reacções a este seu texto que provocou, como se disse, largo escândalo em Lisboa, não se fizeram esperar, principalmente, porque o poeta tinha, pouco tempo antes, sido galardoado pelo Secretariado de Propaganda Nacional pelo seu livro de índole nacionalista a Mensagem, que fora considerado uma obra que propagava os valores nacionais. E a 5 de Fevereiro o jornal A Voz publica um artigo do Conselheiro Fernando de Sousa, intitulado “Mensagem Pró-Maçonaria”. Uma das três excepções, segundo Pessoa, ao caudal de asneiras que desabou sobre os leitores. O poeta elogia no Conselheiro Fernando de Sousa a sua integridade moral que “à sua perfeita cortesia se juntou, para mais moralmente me confundir, o elogio a certos passos do meu livro Mensagem. Isto é tão extraordinário em adversários portugueses que, se houvesse uma Ordem de Civilidade como a há de Benemerência, eu proporia o Sr. Conselheiro Fernando de Sousa para qualquer coisa acima da Grã-Cruz” (Obra Poética e em Prosa, III 493). As outras duas ressalvas, às quais atribui um cariz intelectual, vão para T.D. (Manuel da Maia Pinto) e Rolão Preto. O primeiro, a seu ver, “mostra ciência – uma ciência unilateral, mas real, por vezes curiosíssima” (ibidem); o segundo “mostra inteligência e alma” (ibidem). Para este jornal, Pessoa enviara a 28 de Janeiro de 1934 um carta, que nunca chegou a ser publicada, onde tornava público o seu veemente desacordo relativamente à posição assumida por aquele em prol das perseguições à Maçonaria praticadas na Prússia por ordem indirecta de Hitler. Nele comenta que, por o ataque ser exclusivamente dirigido contra a parte da Maçonaria cristã germânica, deixa evidente a “inteira coerência com os princípios baixamente pagãos que animam ao hitlerismo, como ao fascismo, como ao bolchevismo” (Pessoa Inédito, 327). Assina esta carta “UM IRREGULAR DO TRANSEPTO” (ibidem). Num texto sobre as “Ordens do Átrio, do Claustro e do Templo: seus mistérios, iniciações e rituais” (Obra Poética e em Prosa, III 510), Pessoa explica o sentido desta expressão: nome dado a um iniciado por contacto directo com os Mestres. O poeta considera-se esse tal iniciado, mas sem pretensa filiação a qualquer Ordem existente, conforme já o anunciara na sua Nota Biográfica.
No dia seguinte à publicação do artigo de Pessoa no Diário de Lisboa, José Cabral, numa carta ao director, reage duramente e numa linguagem violenta e agressiva rebaixa o poeta e a Maçonaria. A 6 de Março publica em A Voz um artigo de estilo corrosivo intitulado “Chove no Templo”. Ainda neste jornal, mas a 7 de Fevereiro, o historiador Alfredo Pimenta reage com o artigo “A Verdade Sobre a Franco-Maçonaria”, onde ensaia denunciar e demonstrar os malefícios desta Associação Secreta. Também, outro jornal católico As Novidades encabeça uma batalha, já não tanto contra a Maçonaria, mas contra o poeta, e edita uma série de artigos polémicos contra o seu escrito. O Último artigo data de 27 de Fevereiro e é assinado por Malho, pseudónimo basto elucidativo da vontade de desancar no poeta. No semanário literário Fradique, Tomás Ribeiro Colaço publica uma carta aberta a Fernando Pessoa. O seu teor é crítico, mas não ofensivo. Nessa mesma revista saem os artigos de Manuel da Maia Pinto, assinado T.D., de António Tinoco e de Rolão Preto. Destes, o de António Tinoco visava directamente o autor de Mensagem, atacando-o pessoalmente. Já os outros intervenientes nesta polémica limitam-se a expor o seu ponto de vista, sem procurar destruir seja quem for ou o que for. Rolão Preto defende que se deve lutar contra a Maçonaria, não pela repressão, mas pelo convencimento moral. Na carta de 10 de Outubro que Pessoa escreve a Tomás Ribeiro Colaço e onde agradece a crítica e o elogio deste a Mensagem, o poeta refere a carta aberta que aquele publicou em Fradique e diz não a ter entendido: “Li o seu artigo, ou carta aberta, duas – não, três – vezes, e não consegui nem perceber o que V. estava dizendo (coisa rara de suceder com o que V. escreve), nem por que é que V. escrevia estas coisas que eu, pelo menos, não percebi./ Bem, não lho levo a mal. E, se o levasse, ou antes, tivesse levado, teria ficado em pleno estado de vingança com o admirável artigo «Não» de Rolão Preto.” (Correspondência, II 355, 356).
Perante estes ataques tão cerrados, Pessoa projectou, possivelmente, preparar um opúsculo, um ensaio ou mesmo um livro sobre as “Associações Secretas” (título do seu artigo) em cujo prefácio, assaz longo, se propunha responder (comentando os seus escritos) a todos aqueles que o tinham denegrido na praça pública, ou aos que, simplesmente, tinham demonstrado uma ignorância crassa sobre a questão que o trouxe à lida. Além do sumário do prefácio, apenas foram encontrados, no seu espólio, alguns fragmentos que aí teriam lugar. Do referido sumário, constam oito pontos ou partes distribuídas segundo a seguinte ordem: “1. «Associações Secretas» – o artigo, anotado. 2. Efeitos gerais do artigo. 3. Dois e dois são quatro (resposta à parte genérica). 4. Pons Asinorum (resposta à parte «erudição maçónica). 5. Um parecer com mau parecer. 6. Saída do Funeral (campanhas antimaçónicas em geral). 7. Comparação entre Maçonaria e a Igreja de Roma. 8. A Maçonaria.” (Obra Poética e em Prosa, III 486). Poder-se-ia pensar que a ideia de escrever um livro sobre a Franco-Maçonaria tivesse nascido desta polémica, mas considerando o número de folhas que encontrámos no espólio e que o poeta morreu em Novembro deste mesmo ano, parece-nos que o projecto desta obra já o acompanhava há muito mais tempo. Contudo, é também possível que o conjunto de textos a que deu este título integrasse um conjunto mais vasto, Introdução à História Moderna, que, por sua vez compreenderia “A Doutrinação do Templo”, “Judeus e a Franco-Maçonaria”, entre outros (E353B-72). Aí propõe-se analisar o problema da origem da mensagem litúrgica maçónica contemporânea, procurando desfazer a ideia feita de que esta se identifica unicamente com o Judaísmo. Quem sabe se “Átrio”, “O Caminho da Serpente” e “Subsolo” não caberiam também aqui, neste conjecturado volume (não esquecer que em grande número destes textos a Franco-maçonaria aparece como elemento de comparação). Que a Franco-Maçonaria (lembramos que Fernando Pessoa a considerava uma Ordem Iniciática e exotérica) fizesse parte da sua Introdução à História Moderna, não parece estranho, já que num fragmento de “Átrio”, a propósito das suas reflexões sobre religião escreve que a “Franco-Maçonaria […] é a única religião moderna de tipo iniciatório puro.” (Obra Poética e em Prosa, III 504). Os textos de Fernando Pessoa sobre a Maçonaria mostram o seu grande conhecimento sobre esta Ordem Iniciática, pois neles, o poeta foca com precisão a sua estrutura orgânica, usa com exactidão a sua nomenclatura ritual específica, apresenta com fidelidade a sua relação com o mundo profano, fala com rigor das suas concepções iniciáticas e da sua liturgia simbólica, comenta com justeza os seus aspectos históricos e tradicionais. Nestes textos, Pessoa não deixa de referir o seu conhecimento da bibliografia maçónica que vai desde os clássicos da história maçónica como Pike , Georg Kloss, Freek Gould, Oswald Wirth, Arthur Edward Waite, até aos autores antimaçónicos como Barruel, Robinson ou Eckert e de divulgação filosófica passando por publicações periódicas de Obediências como a Ars Quatuor Coronatorum, etc. Nas reflexões ou ensaios sobre a Maçonaria, Fernando Pessoa tenta chamar a atenção e provar que a origem espiritual desta Ordem Iniciática não se identifica, essencialmente, com o Judaísmo, visto essa identificação dar-se, apenas, no aspecto figurativo dos símbolos (como, aliás já o deixara entender no prefácio à Alma Errante do judeu russo Eliezer Kamenezky, instalado como alfarrabista na Rua D. PedroV), mas que é um produto do protestantismo liberal no que respeita à composição dos graus simbólicos e o resultado da política e mentalidade do século XVIII inglês no que toca à sua redacção. Justifica, portanto, a sua na origem na conjuntura religiosa cristã da reforma e na política constitucionalista e democrática de Inglaterra.
Quanto a ser iniciado na extinta Ordem Templária, não nos surpreende, dado o “nacionalismo cosmopolita” de Pessoa e os seus projectos para Portugal. Não devemos esquecer que a independência de Portugal e a investidura de Afonso Henriques como rei se deve à influência militar e espiritual desta dissolvida Ordem. Poderíamos dizer que, uma vez mais, na sua vida-obra, o poeta sentiu, ao dizer-se iniciado numa ordem espiritual, a responsabilidade da sua missão enquanto cidadão do mundo e cidadão português.
BIBL.: Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadro e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão, 1986
Luísa Medeiros