The Mad Fiddller (O Rabequista Louco, em tradução literal, ou O Rabequista Mágico, mais de acordo com o espírito do livro) é um conjunto assinado e organizado por Fernando Pessoa em 1917. Embora não publicado em sua  vida ele constitui,  tal como outros conjuntos em língua inglesa editados pelo poeta – 35 Sonnets ou “Inscriptions” – um todo coeso e esteticamente equilibrado, com um poema inicial, que nos introduz na atmosfera da colectânea e outro final, em tom (irónico) de conclusão, a delimitar todo o corpo poético.

Esta organização criteriosa e cuidada, objecto de dúvidas e hesitações, a avaliar pelas notas apensas aos poemas, deve-se à intenção de publicar o conjunto na Inglaterra, projecto que lhe foi negado pelo editor da Constable & Company Limited, em carta de 6 de Junho de 1917.

O livro está estruturado em oito partes ou secções que se desenvolvem mediante o processo de evolução do pensamento do poeta, em avanços e recuos, próprios de uma caminhada mística, toda ela feita de esperanças e desistências em direcção ao Conhecimento, à Verdade, ao Absoluto, que, mal se vislumbra, logo parece esconder-se.

Esta procura, realizada através do sonho, é estabelecida logo no primeiro poema “O Rabequista Mágico” (1917), que dá o título à secção I, onde o poeta, através de uma alegoria, parte de uma generalização para, ao longo do conjunto explorar de perto os “labirintos do Eu”, na tentativa de chegar mais próximo do seu “ser desconhecido”:

 

There are mazes of I,

I am my unknown being.

 

Este rabequista, ao passar por uma aldeia e ao tocar para os seus habitantes que se julgavam felizes, desperta neles com a sua melodia estranha e mágica – “his music strange”– a inquietação e o desassossego – “the luminous restlessness” que mudará as suas vidas. A presença sedutora desta figura e o seu desaparecimento inesperado representa, de certo modo, o espírito provocador que rouba a paz caseira, o “estimulador de almas” que vem incutir um desejo de mudança, identificado noutros textos com o diabo ou com o poeta. Também nesta secção I se inicia a atmosfera que irá dar o tom encantatório ao livro e que começa logo no segundo poema com uma “ilha encantada”. Os próprios títulos dos poemas registados nesta série – “Licantropia”, “Encantamento”, “Sonho”, “A dança dos Duendes” – logo remetem para o mundo da fantasia, para um cenário irreal ou para o maravilhoso feérico dos contos infantis. De referir ainda que a música, a dança e o canto ocupam lugar de relevo, não só nesta primeira série, mas ao longo da primeira metade do livro, mais marcada pelo sonho. Essa atmosfera musical é pautada por uma disposição gráfica oscilante e ondeante na maioria dos textos, como se as palavras visíveis acompanhassem o ritmo das palavras dizíveis.

Na secção II, “O Lago Espelhado”, o sujeito proclama a intenção de atingir a verdade e o conhecimento através do sonho e da intuição, negando a acção funesta do pensamento e do frio raciocínio, predominantes noutros conjuntos. Então, em presença de um Aqui e de um Hoje decepcionantes, o poeta visiona um local – “Outro Lugar” – onde a felicidade será real. Dividido entre dois espaços e tempos diferentes, o da realidade e o do sonho, o poeta continua o seu caminho de espera.

A parte III desta caminhada, a que o poeta chamou “A Escolha Errada”, é um regresso à infância através da memória. Comparando o presente e o passado, cada vez mais se instala a nostalgia de uma infância mítica, mais sonhada que vivida, apesar da música e dos contos da ama para embalar e adormecer. Cada vez mais premente também o desejo de se desprender dos erros em que caiu, quando acreditou no amor e no pensamento. De momento, apenas aspira a libertar “os sonhos / no Desconhecido”.

A etapa IV, intitulada “Quatro Lamentos”, é ainda um tempo de espera entre o “cá” da vida e “lá” de um longe sonhado, em que a ponte é lançada pela esperança de conseguir a fruição das coisas simples sem as questionar:

 

E que me agrade esta brisa

Mesmo que eu a não entenda.

 

Partindo então da natureza visível para o invisível, temos os vocábulos brisa, bosque, flor, monte, prado, etc., como metáforas de felicidade, de bem-estar, de realização, de absoluto.

A secção V, “Jardim Febril”, exprime já a transição do simples desejar esse algo mais para a concretização desse desejo, pela imersão no Desconhecido, finalidade do percurso iniciático a que se propôs. No entanto, o poeta sabe das renúncias que essa aspiração exige e começa a dspojar-se dos pesos terrenos que possam impedi-lo de gozar a visão do alto, o monte a brilhar ou o bosque luzente, tal como aparecem em “Horizonte”. Neste propósito de desapego, tenta libertar-se dos seus impulsos eróticos, do pensamento e até dos próprios sentimentos, simbolicamente contidos nas metáforas de coração e de casa, que fecha ou enterra, uma vez que “Meu lar é além das colinas”.

A parte VI, que se intitula “Canções após o Sono”, traduz a sonolência – slumber – e o amolecimento que o poeta tem que vencer para encetar o seu voo místico, já que este novo degrau pretende levar ao transcendente e exige também novas renúncias. É a série onde as asas sonhadas aparecem repetidamente numa identificação com as alturas e onde figuras e símbolos da tradição cristã têm uma presença importante – anjos, hóstia, cálice, vinho, comunhão, rosário – recordando a fé de seus pais, como em “Prece” à Senhora do Pranto Vão. Nesta secção há ainda um novo regresso à infância, mas agora não ao menino concreto, não à lembrança do canto e do embalo, mas à reminiscência de uma infância pré-natal passada nesse ante-tempo que é a vida antes do ser.

Na etapa VII da sua demanda, “O Facho Tombado”, o sujeito poético tenta absorver melhor a essência das coisas, penetrar no mistério de Deus e da criação, atingir um mais completo conhecimento de seu ser e descobrir ao mesmo tempo o seu lado mais divino. Oscilando entre a “Elevação” do primeiro poema da série e o “Abismo” do último, entre o misticismo e a dúvida, entre a alegria e a dor, o poeta continua o voo iniciado na série anterior, tentando captar a luz na sua origem, antes de chegar ao mundo das coisas visíveis. A última parte do conjunto, a secção VIII, tem por título “O Labirinto” e começa significativamente com o poema “Fiat Lux”, uma extensa composição de 1915 em que o poeta descreve uma visão e onde, numa imersão panteísta na infinidade de tudo, vê todas as coisas por dentro e descobre o Novo Deus que esta visão veio dar. E depois de uma longa exposição de pensamentos e sensações interligados face ao visível e ao invisível, o poema acaba com o verso, destacado do corpo estrófico:

 

Esta Noite é Iluminação.

 

No entanto, o poeta escolheu para fechar o conjunto “O Fim” (1912), onde, com surpresa, voltamos a encontrar o mesmo sono, o mesmo desinteresse e a conformação face à vida que, inicialmente, o rabequista veio sacudir e despertar.

 

Não importa se não coube

Na nossa vida o viver.

 

Embora alguns poemas da colectânea não estejam datados, crê-se que as composições que constam do livro tenham sido escritas entre 1911 e 1917, portanto antes e depois da criação dos heterónimos, o que faz com que recebam reflexos de algumas das correntes filosóficas expressas em português – neoplatónicas, panteístas, etc. – e ecos das várias tendências ensaiadas em seu nome e no de outros – simbolismo, decadentismo, interseccionismo, sensacionismo – ou que apresentem características das principais personagens heterónimas em registos que fazem lembrar os seus textos. Mas é sobretudo pelo lirismo e pela religiosidade em sentido lato e profundo que, nesta colectânea, o Pessoa inglês se identifica com o Pessoa português, ortónimo, embora num esboço de prefácio (Esp. 31-88,89) destinado ao livro, também em inglês, o poeta conteste esta leitura mística ou iniciática do conjunto e se demarque do sujeito poético em moldes gerais de um distanciamento premeditado. Alertando para o perigo de se tomar à letra o que se lê ou de atribuir ao sujeito poético a ideologia ou as emoções expressas num qualquer poema, Pessoa escreve no início do texto: “Quando um autor escreve um prefácio para um livro de poemas e esses poemas tendem para uma atitude vulgarmente considerada como religiosa, mística ou filosófica, os leitores irão esperar certamente que a intenção do prefácio seja insistir sobre essa visão fundamental, mas a finalidade deste prefácio é negar qualquer sinceridade no que quer que aí esteja ou qualquer verdadeira crença na religiosidade subjacente a estes poemas […]”. Este hipotético prefácio está na linha de outros documentos (cartas, artigos teóricos, conversas ficcionadas, etc.) aparentemente destinados a esclarecer leitores e críticos, mas no fundo orientadores de leitura e direccionados a estabelecer a sua imagem futura e o seu perfil literário.

Comparando The Mad Fiddler com a restante poesia de Pessoa em língua inglesa, a maior parte dela anterior a esta colectânea, podemos verificar uma maior qualidade, maturidade, fluência e naturalidade, conquanto permaneça o sistema de rima, como é característica de toda a sua poesia em inglês. São também menos visíveis nesta colectânea, sobretudo em comparação com a produção de Alexander Search ou com os 35 Sonnets, as marcas da Literatura Inglesa, apresentando, em contrapartida, ecos do Simbolismo francês (principalmente Baudelaire e Mallarmé) e português (nomeadamente Camilo Pessanha).

Por todos os ecos, reflexos e confluências atrás referidos, podemos considerar The Mad Fiddler a obra esteticamente mais conseguida dentro da poesia inglesa e uma espécie de microcosmo inglês da poesia, das teorias estéticas e do complexo pensamento pessoano nas sua contradições e na sua pluralidade.

 

Anne Terlinden, Fernando Pessoa: The Bilingual Portuguese Poet. A Critical Study of “The Mad Fiddler”, Bruxelles, Facultés Universitaires Saint-Louis, 1990; Luísa Freire, Fernando Pessoa – Entre Vozes, entre Línguas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.

 

 

 

Luísa Freire