Título de uma peça de teatro de Fernando Pessoa. O facto de alguns dos textos deste projecto estarem escritos no dorso do panfleto «Sobre um Manifesto de Estudantes», com data de Abril de 1923, permite atribuir a sua escrita, ou parte dela, a data posterior a 1923. Este título encontra-se incluído numa lista de projectos sob a designação de “Teatro Estático”. Noutra lista, porém, a designação é “Teatro d’Êxtase”. Fernando Pessoa deixou explícito, nos textos que escreveu sobre o drama, o modo como entendia estes conceitos. O “teatro estático” caracterizava-se pela ausência de qualquer acção que não fosse interior e o enredo consistia na revelação das almas através da palavra. Pessoa identifica, porém , duas etapas nesse “teatro estático”. Se, na primeira etapa, a personagem existe na inércia do sonho, numa segunda etapa existe uma progressão, em ascese, no interior de si próprio, passando de sonhador a visionário, através do poder do sonho e da palavra. Seria esta etapa a designar-se “teatro d’êxtase” ou “experiências de ultra-sensação”. Esta progressão dentro de si próprio em direcção a um grande Desconhecido encontra-se nas peças A Morte do Príncipe, Salomé e Diálogo no Jardim do Palácio. A personagem principal de A Morte do Príncipe existe num espaço intermédio, na passagem da Vida para a Morte. As personagens são um príncipe moribundo e um interlocutor, designado por X. Apesar das breves intervenções de X, todo o texto se assemelha a um longo monólogo, um monólogo prolongado e analítico, em que o príncipe, ao mesmo tempo actor e espectador do seu processo de transformação, relata o progressivo desprendimento das coisas terrenas e a visão do além. A unidade de todo o universo é afirmada de início: Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase (António Quadros, Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, Vol. III, p. 686). Esta unidade entre todos os seres do universo será a da experiência comum da mortalidade. O corpo é uma prisão que torna impossível a verdadeira união com o outro. A alma que parte e o abandona assiste à progressiva abolição da realidade e do tempo. Despega-se a pouco e pouco da realidade terrena: Começo a morrer nas cousas ( ibid., p.688). Nesse processo, a essência das coisas, os seus perfis e contornos tornam-se claros e cai um véu que Pessoa compara a um pano de teatro a erguer-se. Na passagem para o desconhecido, o príncipe vê para além do mundo aparente: Ah vejo, vejo…Vejo agora! Vejo agora! e, mais adiante, Só o que nunca se tornou real é que existe realmente…O que acontece é o que Deus deita fora…(ibid. 691) Na sua visão, vê-se florescer no além, numa roseira com rosas brancas. No último limiar, a alma recua frente à estranheza do mistério: Oh, que horror, que inesperado horror! Mas avança econtinua a sua progressiva libertação das coordenadas terrestres: Já não há cima nem baixo nas cousas (ibid., 693) O interlocutor do príncipe consola-o: Já vedes cousas e antes víeis só sonhos. O príncipe passa além de Deus, para o outro lado da ilusão e X, o seu interlocutor, não é mais agora que a figura de um sonho. A alma e o corpo são uma só coisa, diz. Mas o conhecimento atingido só é acessível àqueles que, como ele, passam para o além: mal sabes tu o que eles te encobrem. O príncipe tem uma visão de fogo a queimar todo o universo e, no lume, tudo cresce para dentro. O mundo desaparece para si e, ao seu interlocutor, pergunta: De que lado da minha alma é que soa a tua voz? (ibid. 694) Esta peça de Fernando Pessoa liga-se a outras peças do seu teatro e à poesia pelos temas da existência para além da morte, da passagem da alma para outros lugares além do tempo e do espaço, entre mundos e entre sonho, entre ilusão e realidade. A Morte do Príncipe, peça do teatro de Fernando Pessoa, aproxima-se de outras, como O Marinheiro, Salomé e Diálogo no Jardim no Palácio, pelo tom, pelo assunto e pela linguagem. Todas elas descrevem uma peregrinação interior para lá da superfície do universo.
BIBL.:
Teresa Rita Lopes, Fernando Pessoa et le Drame Simboliste, Paris, Fondation
Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1985 ; António Quadros, Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, Vol. III, Porto, Lello & Irmãos, 1986; Fernando Pessoa, Teatro Estático, ed. Filipa de Freitas e Patricio Ferrari, Lisboa, Tinta da China, 2017.
Ana Maria Freitas