«Dar mais importância ao adjectivo 'brasileiro' do que ao substantivo 'modernismo'» — podia ser a primeira recomendação a quem, mais ou menos incauto, projectasse uma aproximação ao modernismo brasileiro. Não que o modernismo fosse no Brasil tão brasileiro que deixasse de ser modernismo; tão-pouco, aliás, em lado algum o modernismo surgiu e decorreu inteiramente cosmopolita, incólume à realidade ou até a algum pretenso carácter nacional. E é claro que o modernismo brasileiro teve a sua aurora vanguardista, futurista, cosmopolita; lançou manifestos e revistas; negou o passado e anunciou um futuro novo e brilhante; repudiou escolas e géneros, regras e formas fixas; reclamou a liberdade plena de expressão e experimentação; misturou linguagens e estilos, valorizou a fala coloquial e vulgar; combateu o purismo e o academismo; levou à exaustão o verso livre; acolheu o humor e a irreverência; etc. Porém, no caso brasileiro, o percurso ou destino do modernismo, além de nacional, foi nacionalista, a ponto de um dos símbolos maiores da nação ser também estimado como efeito grandioso do traçado construtivo do movimento modernista, pela mão e visão de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa: Brasília, projectada, construída e inaugurada no espaço dum mandato presidencial, quatro anos, a cidade moderna, de traço moderno e sem traço do passado, inscrita na tabula rasa do planalto, ao mesmo tempo vitória sobre a natureza e o passado, sonho igualitário povoando o centro árido do território, uma forma unitária e contemporânea de si mesma.

O problema, porém, está em que uma coisa é o facto inegável de o movimento modernista brasileiro ter eclodido e decorrido ancorado na questão nacional, e outra, estruturalmente distinta, é a operação que faz corresponder essa ancoragem a alguma etapa necessária do processo da própria nação brasileira. Quando se afirma, como no caso do presente artigo, que o modernismo brasileiro foi nacionalista, pode querer significar-se uma de duas coisas distintas ou até ambas: que foi, desde sempre, um movimento caracterizado pela orientação para os problemas da identidade da nação (e, em consequência, sempre preocupado com o seu próprio carácter brasileiro); que, em segundo lugar, foi depois retrospectivamente descrito como movimento unificado historicamente por essa caracterização a fim de lhe permitir constituir-se consciência do Brasil que ao mesmo Brasil se revelou. Se na primeira acepção encontramos, entre outras coisas, esforço de actualização e combate contra o academismo para sintonizar a cultura brasileira com a literatura e a arte do século XX europeu, na segunda acepção é antes como se o Brasil, no processo da sua formação, gerasse o modernismo, ou quando menos, dele se apropriasse, mas rectificando-lhe o sentido, a fim de atingir a maturidade pelo conhecimento da sua própria identidade. Dentro ou fora do Brasil, mas em particular a partir do exterior definido por uma dos grandes «exclusões» do modernismo brasileiro, a posição portuguesa — o que quer que isso signifique —, a falha na percepção desta distinção gera equívocos e erros de apreciação insuperáveis.

Assim, enfatizando o adjectivo, a hipotética recomendação acima formulada visaria, não sublinhar alguma originalidade brasileira do modernismo, mas a peculiar sorte da palavra «modernismo» no território brasileiro, presa numa apertada malha de equívocos e ambivalências. Para ter uma noção genérica dessa sorte, considere-se, porque é bom exemplo, a eloquente definição que encontramos a abrir uma antologia organizada por dois influentes críticos brasileiros, José Aderaldo Castello e Antonio Candido: «A denominação de Modernismo abrange, em nossa literatura, três factos intimamente ligados: um movimento, uma estética, um período.» A explicação desdobra-se na frase imediata: «O movimento surgiu em São Paulo com a famosa Semana de Arte Moderna, em 1922, e se ramificou depois pelo País, tendo como finalidade principal superar a literatura vigente, formada pelos restos do Naturalismo, do Parnasianismo e do Simbolismo. Correspondeu a ele uma teoria estética, nem sempre claramente delineada, e muito menos unificada, mas que visava sobretudo a orientar e definir uma renovação, formulando em novos termos o conceito de literatura e de escritor. Estes factos tiveram o seu momento mais dinâmico e agressivo até mais ou menos em 1930, abrindo-se a partir daí uma nova etapa de maturação, cujo término se tem localizado cada vez mais no ano de 1945. Convém, portanto, considerar encerrada nesse ano a fase dinâmica do Modernismo.» (Presença da literatura brasileira, p. 9.) O seguimento é dado à discriminação dos factores e acontecimentos, nacionais e internacionais, que enlaçam o modernismo na transformação da realidade política e social brasileira:  a Guerra Mundial de 1914-1918; o primeiro centenário da independência do Brasil, 1922, ano simbólico, coincidindo com a realização da Semana de Arte Moderna; a crise de 1929, afectando sobretudo, no Brasil, o principal produto de exportação, o café; a imigração de muito diversa proveniência; a revolução de 30, que levou Getúlio Vargas ao poder, as consequentes transformações de velhas estruturas sociais, o alargamento da instrução, «um grande sopro de esperança [que] percorreu o país» (ibid., p. 10); a segunda guerra mundial, no fim da qual, «o País verificou, meio atónito» (ibid., p. 11) que entrara numa nova fase, caracterizada pelo progresso, social, económico e cultural. E, a rematar, a conclusão decisiva: «seja tomado como movimento renovador, seja como estética, seja como sinónimo da literatura dos últimos quarenta anos, o Modernismo revela, no seu ritmo histórico, uma adesão profunda aos problemas da nossa terra e da nossa história contemporânea» (ibid.). O três sentidos da palavra discriminam-se e conjugam-se na mesma unidade dessa adesão, afinal unidade correspondente à presunção de harmonia entre literatura e terra, cultura e nação, literatura e sociedade, modernidade artística e modernidade social, etc. A unidade assim definida na base da adesão ao país sustenta por sua vez a descrição dominante do movimento modernista. O primeiro problema dessa descrição é que presume um modernismo intencional, unificado por um projecto, mas não deixa destrinçar o que ele foi do que intentouser. De certo ponto em diante, tentou-se naturalmente que não houvesse aí diferença de monta, ou seja, tentou-se que o modernismo tivesse sido orientado por uma finalidade e que a tivesse atingido. E, a bem dizer, essa tentativa é que triunfou: a descrição dominante do modernismo brasileiro é a descrição de uma totalidade, um modernismo vitorioso, que se tornou precisamente o que intentou ser. Resta saber que espécie de solidariedade liga a descrição ao movimento que descreve. Noutra formulação: quando a descrição dominante do modernismo é a que o dá como movimento triunfante, é isso um triunfo do mesmo modernismo? Uma descrição triunfa quando exclui as concorrentes; um movimento literário e artístico triunfa — quando? Está em causa, desde logo, a validade do critério de triunfo e a história de que esse triunfo seria o desfecho. A descrição do movimento modernista enquanto triunfo não corresponde apenas à necessidade de o tornar inteligível no estado de coisas no quadro do qual a avaliação decorre; visa ainda produzir efeitos sobre esse mesmo estado de coisas e sobretudo só é possível se lançada a partir de um reconhecimento alheio ao campo literário e artístico e com uma força que o supere. Ou seja, o que está em causa é a condição de poder em que o triunfo se declara e a natureza do poder que o declara — o poder de determinar o triunfo do modernismo enquanto parte de outro triunfo. No começo da chamada Era Vargas, na sequência da controversa revolução de 30, Getúlio Vargas afirmou no seu discurso de tomada de posse: «As forças colectivas que provocaram o movimento revolucionário do modernismo na literatura brasileira, que se iniciou com a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, foram as mesmas que precipitaram, no campo social e político, a Revolução de 1930.» Estas espantosas palavras, mais do que testemunhar a apropriação política e ideológica do modernismo pelo Estado Novo, são o reconhecimento político da legitimidade do modernismo, procedendo através da mesma operação retórica pela qual irá definir-se o modernismo triunfante: expressão de forças colectivas, ocuparia um lugar próprio na coesão da unidade nacional e, nessa medida o triunfo dessas forças colectivas seria o triunfo do modernismo, afinal outro nome para a sua institucionalização por via política e académica. Se o modernismo brasileiro, como todos de resto, aspirou ao reconhecimento da sua legitimidade, obteve-o de forma inequívoca e directamente política, isto é, declarada pelo próprio aparelho de Estado da nação —  e no preciso momento em que este se instala e a si mesmo se legitima como poder nascido duma ruptura da ordem estabelecida . O recurso ao Brasil enquanto causa e finalidade da unidade das «forças colectivas revolucionárias», as modernistas e as políticas, as literárias e as sociais, legitima, na mesma operação, o golpe de Getúlio Vargas e a emergência do modernismo brasileiro — e esta retrospectivamente dependente daquele. É outro golpe, este agora estipulando que o reconhecimento político do movimento modernista exprime a única forma possível de legitimidade que poderia ambicionar. A descrição dominante do modernismo  depende por inteiro deste golpe, que determinaria a análise do movimento e persistiria durante muito tempo a única forma disponível de interpretar tanto o surto modernista como o seu prolongamento pela normalização institucional e académica.

O melhor exemplo de tudo isso encontra-se em Mário de Andrade. Numa conferência a justo título famosa, proferida 20 anos depois da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade fez-se eco dessa mesma ideia de unidade das forças revolucionárias, de que se não afasta muito, e chegará a afirmar, aliás, que a «mesma tendência de liberdade e conquista de expressão própria», que seria das maiores conquistas do modernismo, se percebe «tanto na imposição do verso-livre antes de 30» como na «nacionalização das indústrias pesadas, posteriores a 30», entre outros exemplos oferecidos («O movimento modernista», p. 249). Porém, Mário de Andrade vai mais longe, reclama para o modernismo enquanto expressão de forças colectivas o papel de antecipação não apenas cronológica e além do mais dupla, primeiro destrutiva, depois construtiva: «O movimento da Inteligência que representámos, na sua fase verdadeiramente 'modernista', não foi o factor das mudanças político-sociais posteriores a ele no Brasil. Foi essencialmente um preparador; o criador de um estado de espírito revolucionário e de um sentimento de arrebentação. […] Os movimentos espirituais precedem sempre as mudanças de ordem social. […] é justo por esta data de 1930 que principiou para a Inteligência brasileira uma fase mais calma, mais modesta e quotidiana, mais proletária, por assim dizer, de construção. À espera que um dia as outras formas sociais a imitem.» (Ibid., p. 242.) Para se avaliar a que ponto aqui se decidia já a descrição dominante do modernismo, comparem-se as palavras de abertura da conferência tanto com as de Getúlio Vargas como com as de Castello e Candido, atrás citadas (que datam de 1964), e notar-se-á a similaridade: «Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional. A transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação da Inteligência nacional. Isto foi o movimento modernista, de que a Semana de Arte Moderna ficou sendo o brado colectivo principal.» (Ibid.,  p. 231.) A noção aqui implicada é obviamente a vanguarda, mas quase se diria que, aos vanguardistas de 22, não lhes era permitido ser vanguarda artística se não fossem e não pretendessem ser, do mesmo passo, vanguarda do próprio país.

Assim ganha significado nada contingente a realização da Semana de Arte Moderna no próprio ano de 1922, no centenário da independência e no âmbito das respectivas comemorações: não se trataria senão acidentalmente de insinuar na cultura oficial o escândalo da contestação modernista; a legitimidade do modernismo proviria justamente de ter desviado as comemorações para o verdadeiro sentido, o rumo em que a nação se encontraria consigo mesma. A destruição, por outras palavras, orientava-se teleologicamente para a construção: «Embora se integrassem nele figuras e grupos preocupados de construir, o espírito modernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência nacional desse período, foi destruidor. Mas esta destruição, não apenas continha todos os germes da actualidade, como era uma convulsão profundíssima da realidade brasileira. O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a actualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Nada disto representa exactamente uma inovação e de tudo encontramos exemplos na história artística do país. A novidade fundamental, imposta pelo movimento, foi a conjugação dessas três normas num todo orgânico de consciência colectiva.» («O movimento modernista», p. 242.) Aqui, Mário de Andrade não sublinha apenas o espírito de grupo, nem se limita a definir a vanguarda retrospectivamente articulada num movimento orgânico de transformação nacional: é todo o processo de constituição do Brasil enquanto nação consciente de si mesma que parece atingir o zénite com o triunfo do modernismo. Um poeta como Gregório de Matos pode distinguir-se pela «estabilização assombrosa da consciência nacional», mas a sua «nacionalistiquice», como a nacionalidade de Castro Alves ou nacionalismo de Carlos Gomes, «eram episódicos como realidade do espírito». O mesmo não se passaria com os modernistas, e na hora desse primeiro balanço, Mário de Andrade já pode insistir, em que «é tempo de observar, não o que um Augusto Meyer, um Tasso da Silveira e um Carlos Drummond de Andrade têm de diferente, mas o que têm de igual»: «…o que nos igualava, por cima de nossos dispautérios individualistas, era justamente a organicidade de um espírito actualizado, que pesquisava já irrestritamente radicado à sua entidade colectiva nacional» (ibid., p. 243). A «radicação na terra» ou «a adesão profunda aos problemas da nossa terra» dão o sentido da unidade e da finalidade do movimento. Correspondem a uma «necessidade espiritual, que ultrapassa a literatura estética» e equipara romantismo e modernismo no mesmo «espírito revolucionário», preparador um, da Independência e o outro, do «estado revolucionário de 30 em diante» — mas é o modernismo que impõe o «todo orgânico de consciência colectiva».

Mário de Andrade faz o balanço do movimento numa posição histórica que não difere muito da de Candido & Castello na antologia citada; aliás, estabelece mesmo uma posição histórica idêntica, e é a partir dela que a descrição triunfante do modernismo se estabelece duradouramente. Os vinte anos que separam uma da outra decerto conheceram acontecimentos e movimentos significativos, mas o ponto decisivo é que Mário de Andrade já fala num momento de estabilização institucional —  a palavra que ele usa é mais significativa ainda: «normalização» — que permite, não apenas o balanço nostálgico e em parte autocrítico, mas sobretudo a reconstrução retrospectiva do movimento atribuindo-lhe energia e finalidade em harmonia com a nação. As «conquistas» do modernismo estão alcançadas e generalizadas, as ousadias do movimento são já «normais», ninguém se escandaliza: o processo de reconhecimento do modernismo estava completado.

É este o sentido, profundo e histórico, em que o adjectivo «brasileiro» determina o movimento modernista: retrospectivamente, redescreve-o como etapa de um processo orientado para a harmonia final da literatura e da arte com a natureza essencial da nação. No plano político imediato, a aliança com o Estado Novo —  ou a apropriação do modernismo pelo Estado Novo —, legitimando o modernismo, assegurou-lhe uma estabilização ideológica e institucional e deu-lhe poder de estabelecimento canónico. No plano crítico e historiográfico, a noção implicada na descrição dominante do modernismo é a noção de formação, cuja operacionalidade historiográfica e crítica se deve a Antonio Candido. A concepção teleológica que a estrutura dissolve o modernismo num processo naturalizado de crescimento do país: as rupturas tornam-se crises de crescimento, os conflitos, acidentes de percurso, as heterogeneidades, manifestações de alguma exuberância plural, tudo, enfim, secundarizado pela revelação do «espírito actualizado, que pesquisava já irrestritamente radicado à sua entidade colectiva nacional». Daí que o máximo de tensão que a unidade postulada do modernismo permite seja a que afasta Mário de Oswald, o sempre falado conflito entre o lado sério e erudito e o lado irreverente e trampolineiro; conflito cómodo, se se tiver em conta que o mesmo Oswald de Andrade, depois de vituperar os chato boys (rótulo expressivo com que designava os fundadores da revista Clima, Candido à cabeça, rebentos da recém-fundada Usp e continuadores ou até herdeiros de Mário de Andrade) não evitou tornar-se um deles, designamente nos romances em que substituiu o experimentalismo ou o simples desconchavo descontraído de livros como Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande pelo convencionalismo romanesco empenhado e entediante. Em todo o caso, o que se desenha nesse conflito é uma tensão interna à cultura brasileira tal como através do modernismo se constitui, tensão entre o acento posto no estabelecimento de uma tradição nacional própria, a partir da qual erguer uma cultura nacional genuína, ou na tendência para transfigurar as fraquezas em traços distintivos, até pontos fortes, na estrita versão antropofágica, fazendo da ausência de tradição própria a maior vantagem para suprir essa mesma ausência. Dir-se-ia que a identidade cultural brasileira oscila entre aqueles que se alimentam da cultura doméstica ou desejariam poder não se alimentar senão dela e aqueles que buscam o alheio e constantemente procuram torná-lo próprio pela desfiguração a que o submetem. Em qualquer caso, o problema nacional tornou-se, por força do declarado triunfo do modernismo, a sua condição de sobrevivência e de eficácia, o término da sua evolução e a causa subterrânea da sua emergência.

O caso é que o modernismo, nessa reconfiguração triunfante, se relançou enquanto força aglutinadora da cultura nacional brasileira. Força de inclusão, pela definição do que é brasileiro, e de exclusão, repudiando o que, ainda vanguardista ou experimental, se torna suspeito de o não ser suficientemente. Bom exemplo dessa força, no campo literário, é a recuperação do romance nordestino de 30, que a descrição triunfante apresenta como um dos braços da continuação construtiva do modernismo, desvalorizando a recuperação rudimentar do romance naturalista em favor do empenhamento ideológico, ou seja, o princípio de experimentação formal entra em conflito e acaba por ceder ao enraizamento na realidade da terra. A descrição dominante do modernismo adopta então a sequência em duas fases, sendo a segunda ideológica por oposição à primeira, estética ou vanguardista. Mas o conflito é inerente ao movimento e apenas a atribuição retrospectiva da finalidade nacional o temporaliza em sequência domesticável.

Nesse âmbito, ganha novo sentido o problema da relação com a cultura portuguesa e, em particular, o problema da língua. Decerto se trata do ponto nevrálgico do mecanismo de exclusão: desde o momento em que, por via do poder político e académico, o modernismo se normaliza, a descrição dominante do modernismo é necessariamente descrição da exclusão portuguesa. Mas a dificuldade do problema — o mesmo é dizer, a dificuldade da exclusão — explica as hesitações e as ambiguidades de Mário de Andrade nesse passo da conferência, não obstante ser o mais fortemente autocrítico. «O estandarte mais colorido dessa radicação à pátria – escreve — foi a pesquisa da 'língua brasileira'. Mas foi talvez boato falso. Na verdade, apesar as aparências e da bulha que fazem agora certas santidades de última hora, nós estamos ainda actualmente tão escravos da gramática lusa como qualquer português.» (Ibid., p. 244.) E nas mesmas páginas chega a dizer que, tal como acontecera com os românticos, não se tratava de superação da «lei portuga» mas de ignorância dela, ou que «como normalidade de língua culta e escrita, estamos em situação inferior à de cem anos atrás». O ponto essencial, para Mário de Andrade, acaba por no entanto por ser outro: tudo se reduziu a «manifestações individuais», com a consequente permeabilidade a equívocos e à ignorância. No plano da língua, era «cedo» para o «todo orgânico»... Insatisfeito, Mário de Andrade assinala a tarefa da «natureza característica da linguagem» a «outro futuro movimento modernista», mas não vacila no balanço final: «…como radicação da nossa cultura artística à entidade brasileira, as compensações são muito numerosos pra que a actual hesitação linguística se torne falha grave» (Ibid., p. 247).

Mas a mais clara expressão da natureza dessa exclusão portuguesa enquanto consequência necessária da descrição dominante do modernismo encontra-se num ensaio de Antonio Candido, significativamente um «panorama para estrangeiros», datado de 1950. Depois de referir que a literatura brasileira tem dois «momentos decisivos que mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência», o romantismo e o modernismo, define assim a diferença entre eles: «enquanto o primeiro procura superar a influência portuguesa e afirmar contra ela a peculiaridade literária do Brasil, o segundo já desconhece Portugal, pura e simplesmente: o diálogo perdera o mordente e não ia além da conversa de salão. Um facto capital se torna deste modo claro na história da nossa cultura; a velha mãe pátria deixara de existir para nós como termo a ser enfrentado e superado.» («Literatura e cultura de 1900 a 1945», pp. 85-86.) Seria ocioso confrontar esta declaração com a realidade dos factos; já é indispensável situá-la nessa outra realidade dos projectos e das finalidades. O que ali se afirma é menos uma constância histórica do modernismo como um todo, enquanto movimento literário e artístico no Brasil, do que o projecto que lhe é forçosamente atribuído enquanto princípio da sua unificação. E não é acidente que tal descrição, tão empiricamente falsa e tão sintomaticamente verdadeira, seja produzida por Antonio Candido, a quem os brasileiros devem justamente  um paradigma crítico, ainda actuante, que, articulado com uma dimensão institucional decisiva, a universitária, estabeleceu a possibilidade de desconhecer Portugal «pura e simplesmente», dando esse desconhecimento como resultado natural do processo de «formação» da literatura brasileira.

A distinção entre a natureza desordenada, heteróclicta, contingente do modernismo no Brasil e a unificação totalizadora pela descrição dominante é hoje crucial para resistir à noção normalizadora e naturalizadora do modernismo, que persiste a ancorar a literatura brasileira no problema da nacionalidade, e assim abrir caminho à revisão do modernismo, aliás já inaugurada, em meados dos anos 40 do século XX, pela melhor inteligência brasileira, com Rosa ou Drummond, Clarice ou João Cabral.

 

BIBL.:

Mário de Andrade, «O Movimento Modernista», Aspectos da literatura brasileira, 5.ª, São Paulo, Martins, 1974; Antonio Candido, «Literatura e cultura de 1900 a 1945 (Panorama para Estrangeiros)», O direito à literatura e outros ensaios, Coimbra, Angelus Novus, 2004; Antonio Candido e José Aderaldo Castello, Presença da literatura brasileira. História e antologia. II:. O Modernismo, 12.ª ed., São Paulo, Bertrand Brasil, 2001 [1964].

 

Abel Barros Baptista