Pessoa tem, desde o início dos anos 10, o projecto de um poema em 6 cantos intitulado Portugal – prefiguração de Mensagem, o seu único livro publicado em português. Cerca de 1920, Pessoa concebe esse «poema épico» como «retomando, de certo modo, a vida de Hyperion de Keats», ou seja, «representando as navegações e descobertas dos portugueses como provenientes da guerra entre os velhos e os novos deuses» (A Obra Poética, 73). Depois, tem lugar em 1922, na Contemporânea 4, a publicação da série Mar Português, que virá a constituir o corpo central no livro. E em 1923, numa entrevista à Revista Portuguesa, Pessoa faz um quase-anúncio do livro tão desejado: «Literariamente, o passado de Portugal está no futuro. O Infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor» (Crítica,198).

As variações e acertos de tom vão-se fazendo até ao momento da publicação, em 1934 (o próprio título Mensagem apenas substitui Portugal nas provas tipográficas). Para além da progressiva extensão e organização dos poemas, por exemplo, dois poemas são reescritos: um é Ironia, sobre o caso de Colombo, publicado na série da Contemporânea e, em 1933, no jornal Revolução que a reproduz, que no livro se transforma em Os Colombos, com o mesmo tema mas sem referir a rivalidade com Castela; o outro é Afonso de Albuquerque, que em 1934 se publica na revista O Mundo Português, num conjunto intitulado Tríptico,e que é refeito, com o mesmo título, para o livro. Neste último caso, a substituição vai no sentido de procurar uma dicção clara e fluida do poema: Pessoa procura fazer um livro para ser lido, e que possa, num sentido radical e sem concessões, ser popular. O resultado é um livro fortemente estruturado, que pode definir como «um livro de poemas, formando realmente um só poema» (PIAI 433), organizado em torno dos números do brasão de Portugal, sobretudo o 5 das quinas.

Outra questão é a consequente associação do seu nome ao nacionalismo e o Estado Novo. A isso, apressa-se a responder na carta a Adolfo Casais Monteiro de 13-1-1935: «Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas» (Correspondência, II, 338). E, de facto, a verdade é que, em 1935, Pessoa tem um outro projecto de livro, Canções da Derrota (Poesia do Eu, 341-412), que reúne alguns poemas que estão em contradição com Mensagem. Ver-se-ia de que modo, nesse projecto, À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais havia de ganhar um novo sentido quando posto ao lado da Elegia na Sombra, poema que termina com a frase «Fui tudo, nada vale a pena». Este seria o livro das esperanças desesperadas, o avesso desgraçado do nacionalismo místico.

Mensagem, tem, ainda, a ver com a forte componente messiânica da sua obra, que começa a manifestar-se muito cedo, com a profecia do «supra-Camões» em 1912. Com a qual, aliás, até mesmo o seu entusiasmo pelo Futurismo pode ter a ver: o Messias, seja o seu nome Sebastião ou qualquer outro, consiste numa acentuação total do futuro.

Outro texto importante de 1934 é o da resposta a um inquérito publicado em livro nesse ano (saído n’O Jornal do Comércio e das Colónias em 28 de Maio de 1926, no dia do golpe militar de Gomes da Costa), sob o título Portugal Vasto Império. Ora Pessoa, aí, ainda que afirmando que Portugal é, «por índole, uma nação criadora e imperial», acrescenta que, através da impregnação do sonho sebastianista, «a ideia do Império Português atinge o estado religioso» (Crítica, 330),o que vai permitir a chegada do Quinto Império – concluindo, para grande escândalo de Augusto da Costa, o elaborador do inquérito: «Para o destino que presumo que será o de Portugal, as colónias não são precisas» (Crítica, 331). O que marca de forma notável a distância a que Pessoa se coloca da lógica nacionalista instalada. O império português não estava, para ele e para ela, situado no mesmo plano de realidade que as colónias.

Ainda no mesmo ano de 1934, apõe um prefácio seu a um livro do amigo Augusto Ferreira Gomes, Quinto Império, em que afirma, por exemplo, que «Bandarra é um nome colectivo, pelo qual se designa, não só o vidente de Trancoso, mas todos quantos viram, por seu exemplo, à mesma Luz» (Crítica, 493). Esta afirmação, que torna o Bandarra uma espécie de heterónimo colectivo, é de notar. Mas reitera também em que sentido será de entender o Quinto Império: o espiritual. Ele é aquela pax in excelsis que constitui a epígrafe da «Terceira Parte» de Mensagem, «O Encoberto».

A Mensagem não tem um mensageiro. Isto é, não é assumido por um poeta-vate, ao contrário de Os Lusíadas. O seu sujeito é esse «nós, Portugal» que fala no poema Tormenta, e que é um ser colectivo, antigo e com uma história, e que busca a sua inteireza perdida. Pode falar-se no «autor» deste livro como uma verdadeira personificação, pois, à maneira heteronímica.

No ano de 1935, Pessoa escreve três poemas sobre Salazar e o Estado Novo que, mais uma vez, contradizem a poesia «nacionalista». Salazar é aí o «tiraninho» (Poesia do Eu, 325). Está nos antípodas da euforia com que saudou Sidónio Pais ou do empenho com que justificou a ditadura militar de 1926.

E, numa carta a Adolfo Casais Monteiro de 30 de Outubro de 1935, escreve: «Desde o discurso que o Salazar fez em 21 de Fevereiro deste ano, na distribuição de prémios no Secretariado da Propaganda Nacional, ficámos sabendo, todos nós que escrevemos, que estava substituída a regra restritiva da Censura, “não se pode dizer isto ou aquilo”, pela regra soviética do Poder, “tem que se dizer aquilo ou isto”. Em palavras mais claras, tudo quanto escrevermos, não só não tem que contrariar os princípios (cuja natureza ignoro) do Estado Novo (cuja definição desconheço), mas tem que ser subordinado às directrizes traçadas pelos orientadores do citado Estado Novo. Isto quer dizer, suponho, que não poderá haver legitimamente manifestação literária em Portugal que não inclua qualquer referência ao equilíbrio orçamental, à composição corporativa (também não sei o que seja) da sociedade portuguesa e a outras engrenagens da mesma espécie» (Correspondência, II 358).

Vem aqui a propósito citar: «Hoje defendo uma cousa, amanhã outra. Mas não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei» (Páginas Íntimas, 65).

Finalmente, Pessoa é herdeiro do Simbolismo e a ele permanece fiel. Por isso no centro de Mensagem estão os símbolos como tema e como processo, sejam eles nomes dos heróis, imagens-chave da história, cifras heráldicas, sejam, enfim, as próprias palavras da língua portuguesa, com a sua capacidade de transmitir os fundamentos identificadores do «ser português».

 

 

Bibliografia:

 

PESSOA, Fernando, Mensagem. Poemas Esotéricos, ed. crítica de José Augusto Seabra, Madrid, Colecção Archivos, CSIC, 1993; PESSOA, Fernando, Poesia do Eu, ed. Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006.

CIRURGIÃO, António, O «Olhar Esfíngico» da Mensagem de Pessoa, Lisboa, ICALP, 1990; NEMÉSIO, Jorge, A Obra Poética de Fernando Pessoa, Salvador, Progresso, 1958;SILVA, Agostinho da, Um Fernando Pessoa (1959), 2.ª ed., Lisboa, Guimarães, 1988.

 

 

 

Fernando Cabral Martins