Publicado na Contemporânea, série III, n. 1, em 1926, e posteriormente n’ O Notícias ilustrado, série II, n. 22, em 11 de novembro de 1928,o poema é exemplo do elevado grau lírico que atinge a poesia do ortônimo. Caracteriza-se, portanto, pelo que neste é típico: musicalidade (marcada pela leveza das laterais), brevidade, padrão métrico curto (em geral, seis sílabas, com variações ocasionais para cinco e sete – com exceção à terceira estrofe, cujo padrão é a redondilha maior), e presença de rimas (abaab, sendo que a terceira e a sexta estrofes alteram o esquema para axaay, e se identificam pelo emprego do refrão-título e pelo uso dos parênteses). Seu tom plangente é o de uma balada elegíaca, dotada de singeleza e afetividade – muito similar ao encontrado em Almeida Garrett e António Nobre. O tema, também recorrente no ortônimo, é o do sentimento da infância perdida, e, a seu respeito, é um dos mais importantes poemas. Mais do que a sonoridade, chama a atenção a plasticidade do texto, que Pessoa julgava resultar de uma evolução do “Paulismo”. Independentemente disso, é notável no texto como o emprego das imagens potencializa sua tensão lírica.

Em “Homenagem a Fernando Pessoa”, Carlos Queirós afirma que, para escrever o poema, o poeta teria se inspirado numa litografia vista numa pensão onde fora jantar com um amigo. Mas a imagem do cadáver baleado de um menino loiro e fardado sobre um “plaino abandonado” coincide com aquela do jovem soldado que “dorme”, de boca aberta, estendido sobre o leito de relva, com as mãos sobre o corpo e dois furos no peito, pintada por Rimbaud no soneto “Le dormeur du val” (1870). A grande semelhança entre as imagens não esconde, contudo, uma significativa diferença entre os poemas: o soneto de Rimbaud é construído com base no suspense (a informação de que o corpo que dorme é, na verdade, um cadáver, só é dada no seu arremate), ao passo que esse dado já se apresenta na primeira estrofe do poema de Pessoa. Os textos tratam de temas diferentes; se o poema francês é a construção de uma imagem, o de Pessoa, provavelmente inspirado no anterior, parte dessa imagem e evoca, imediatamente, dois dados biográficos do autor: o fato de o poema ter sido escrito logo após a morte de Maria Madalena, a mãe de Pessoa, e de “o menino da sua mãe” ser, de fato, o modo como sua mãe o chamava.

Neste poema-tela, portanto, a descrição distanciada da cena para o leitor-espectador é alterada, na terceira estrofe, pelo posicionamento do eu lírico com relação ao soldado morto, chamado por sua mãe de “menino da sua mãe”. As duas estrofes seguintes atuam sobre ela como um correlativo objetivo:

 

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

 

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

 

Esses objetos de estimação são imagens-símbolo do passado que o soldado carrega consigo na algibeira. Mas uma vez caída no chão a pequena cigarreira, e “a brancura embainhada” do lenço já se sujando de terra, esse passado, traduzido como pureza, inocência e castidade, é soterrado. A infância é perdida. Note-se, portanto, que o poema fornece elementos que nos convidam para uma leitura metafórica. Quem jaz morto é, precisamente, “o menino da sua mãe”, a criança que um dia o soldado fora.

O tema e a imagem central desse poema são retomados em “Tomamos a vila depois de um intenso bombardeamento”, de 1929, em que se descreve, segundo o mesmo registro metafórico, a imagem da “criança loura” que “jaz no meio da rua” como um “pequeno peixe – dos que bóiam nas banheiras – à beira da estrada”. Significativo é notar que como “o menino da sua mãe” está morto, os afetos maternais são suprimidos dessa descrição do menino, convertido, significativamente, em “criança loura”, apenas. Também em “Aniversário” (15-10-1929) o mesmo tema é visitado: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto.” Ali, já no seu arremate, reaparece uma imagem-símbolo de “O menino da sua mãe”: “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!” A algibeira da qual, em “O menino da sua mãe”, o passado se perdera – a cigarreira dada de presente por sua mãe.

Essa despedida de um outro eu, que não mais voltará, não é feita de uma perspectiva positiva, mas nostálgica de um paraíso perdido. Esse sentimento de perda de um passado ideal – passado que retornará sempre com seus objetos, pessoas e espaços – é uma das grandes construções da poesia do ortônimo, e um dispositivo de ubiqüidade, isto é, uma maneira de permitir ao eu lírico estar constantemente lá e cá, num vertiginoso presente-passado ao mesmo tempo. 

 

 

Bibliografia:

 

Garcez, Maria Helena Nery. “Um poema plástico de Fernando Pessoa.” In Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. São Paulo: Ed. Moraes / Ed. da Universidade de São Paulo, 1989. Pp. 9-17.

Simões, João Gaspar. “O menino da sua mãe”. In Vida e obra de Fernando Pessoa – história duma geração. 6ª. ed. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1991.Pp. 47-53.

 

Caio Gagliardi