Nascido numa família abastada, de pai (e avô) militar, ficou órfão de mãe aos dois anos, sendo criado pela mesma ama que já acompanhara seu pai. Estuda no Liceu do Carmo, e aí desenvolve o gosto pelo teatro, não só como actor e espectador do que então passava nos palcos lisboetas, como pelo que, nas revistas que assinava (tinha conta aberta numa livraria de Lisboa), ia sabendo do teatro contemporâneo francês; viria a escrever com Tomás Cabreira Júnior, um colega que pouco tempo depois se suicida espectacularmente, a peça Amizade (1912). Depois de uma passagem fugaz pela Faculdade de Direito de Coimbra (ano lectivo de 1911-12), parte para Paris, para vagamente continuar os estudos, e lá vai ficando, numa vida de dândi errante pelos cafés, como bem testemunha a correspondência datada daquela cidade, muito especialmente a que manteve a ritmo frequente com Fernando Pessoa. Vem a Lisboa algumas vezes, por períodos mais ou menos longos: está na capital entre Junho e Novembro de 1913, escrevendo nesses meses A confissão de Lúcio e “Eu próprio o Outro” (in Céu em fogo); em Agosto de 1914, deflagrada a Guerra, regressa a Lisboa de comboio, passando por Barcelona, para voltar a Paris em Julho de 1915. Neste intervalo de tempo colabora com Pessoa e outros camaradas de letras na preparação e publicação da revista Orpheu (dois números, Março e Julho de 1915; um terceiro, já preparado e em provas, não chega a ver a luz, porque o pai de Sá-Carneiro, que pagara as despesas dos anteriores, não o faz desta vez). Não voltará a Lisboa, mantendo contacto com Pessoa e outros por correspondência frequente, vindo a suicidar-se com estricnina no seu quarto de hotel, em 1916, antes de completar 26 anos, vestido de smoking, como um bom dândi. Detalhes sobre a biografia foram já suficientemente tratados por diversos autores (D. Woll – 1969, F. Castex - 1971, J. Pinto de Figueiredo - 1983) e estão documentados na Fotobiografia (Marina Tavares Dias - 1988); não tendo dados novos a acrescentar, remetemos o leitor para essas fontes. Em vez de seguir os pouco profícuos caminhos da eventual e discutível relação entre a vida e a obra, pertinente no tempo em que os críticos mencionados escreveram, vamos tentar seguir uma outra via, cruzando a obra com o contexto vivencial. Considerando uma cronologia das obras editadas ao longo da sua curta vida, registamos que Sá-Carneiro publica em 1912 a já mencionada peça a quatro mãos Amizade,seguindo-se em 1913 Dispersão - estreia em volume como poeta, em 1914 saindo A confissão de Lúcio (novela), e em 1915 os oito textos ficcionais de Céu em fogo (novelas). Toda a restante obra de que dispomos é, portanto, póstuma: em 1937, as edições presença fazem sair o volume de poemas Indícios de oiro, depois incluídos por Gaspar Simões na primeira edição conjunta de Poesias completas, de 1946; os Poemas juvenis (1903-1908) são reunidos por François Castex em 1986; e entretanto sairia, em 1958-59, a edição em dois volumes das Cartas a Fernando Pessoa, reunidas por Urbano Tavares Rodrigues e Helena Cidade Moura. Outros volumes, quer de cartas, quer de poesia e de ficção, foram publicados nas duas últimas décadas de novecentos e nos anos iniciais do nosso século, revendo criticamente textos já editados ou acrescentando-lhes outros. O que nos interessa notar a partir destes dados é que, tal como sucede com Pessoa, também no caso de Mário de Sá-Carneiro estamos perante uma biografia e uma biobibliografia que se prestou durante décadas ao erigir de um retrato mítico do autor, alimentado por elementos que a crítica tradicional interpretou em clave biografista. Tomem-se alguns exemplos dessa leitura equívoca: o uso do nome “Mário” em “Caranguejola”, ou circunstâncias de vida das personagens dos textos ficcionais muito coladas ao que se sabe da biografia do autor; as datações (entre 1913 e 1914) e dedicatórias das novelas (a Pessoa, A.P.Guisado, Côrtes Rodrigues, aos pintores José Pacheco e Santa-Rita, ou ao avô José Paulino). Mais interessante nos parece, no entanto, ver nesta miríade de circunstâncias pistas para ler o percurso intelectual e artístico de Sá-Carneiro.
Repare-se na data do seu nascimento, 1890 (mais novo dois anos que o seu amigo Pessoa, n.1888): neste ano inaugural da última década do século XIX, está a começar em Coimbra a actividade pública da que viria a ser conhecida por ‘geração de 90’, aquela a que pertencem Eugénio de Castro, Alberto de Oliveira, António Nobre e Camilo Pessanha; são nomes de relevo no fim-de-século português, marcado pela poética simbolista e decadentista, quer dizer, por uma prática literária muito atenta à experimentação técnica (ritmos e versos), aliada a um conhecimento da tradição portuguesa, por um lado, e do panorama europeu (temas e motivos, formas poéticas renovadas), por outro. Os modernistas, e Mário de Sá-Carneiro, devem muito aos poetas finisseculares, e reconhecem-no expressamente: dirigem convite a Pessanha para participar no Orpheu, prestam homenagem a Nobre; Sá-Carneiro, além do poema “Anto”, retrato quase abstracto de Nobre, segue filões que este inaugurou em português, nomeadamente o uso de motivos como o da torre e outros símbolos heráldicos, o do infantilismo ou o do eu poético só, erguendo para si mesmo o muro fortificado de um narcisismo hiperconsciente e, por isso mesmo, tintado da melancolia dos vencidos. O autor de Indícios de oiro conhece igualmente, como os seus companheiros de geração, as poéticas europeias do seu tempo, como podemos reconhecer, por exemplo, na inspiração em Poe de alguns textos em prosa de teor policiário, ou no tratamento do duplo na esteira da poética simbolista (pensamos em Oscar Wilde em muitos passos da obra de Sá-Carneiro), ou ainda no uso de motivos como o glosado em “Salomé” e “Bárbaro”, devedores de uma longa linhagem na literatura e nas artes da Europa finissecular. O acesso a livros e revistas portugueses e estrangeiros trará, além deste conhecimento de uma tradição recente, o contacto com a literatura e a arte que em Paris e noutros lugares da Europa se fazia ao longo dos anos de formação do futuro poeta, estando presente com clareza nas experimentações feitas na linguagem e nos temas dos poemas de datas mais tardias. Ao tratamento gráfico da colagem modernista de alguns poemas corresponde, em Orpheu, o excelente design das capas, que se vê também em outras revistas coetâneas. Acompanhando o curto tempo em que escreve a sua obra, verifica-se ainda um outro traço que terá porventura como base este confronto da geração modernista portuguesa com a Europa: se nos poemas mais antigos de Sá-Carneiro é nítida a herança da poética simbolista, com a sua sobrecarga de frases nominais ou suspensivas e o uso de mitos e símbolos fortemente marcados, já nos poemas mais recentes se pode ver uma espécie de acalmia estética, regressando-se ao eu e a temáticas aparentemente mais próximas da vida de um sujeito que se quer moderno e quotidiano, alijando os símbolos e as metáforas complexas de outrora. Observando a tematização de figuras de artista e de escritor, que atinge o auge em A confissão de Lúcio, e notando, aí como nas novelas de Céu em fogo e na poesia em geral, a requintada estesia para tratar o universo cosmopolita do sujeito, reconhecemos traços da fusão entre vida e obra comum a muitos artistas e escritores coetâneos. E vemos também um outro conjunto de referências, mesmo se algumas delas não conscientes, traçando bissectrizes com o panorama das letras e das artes do tempo em que Sá-Carneiro vive: basta lembrar que estão a escrever Mallarmé e Apollinaire, ou que estão no ar os manifestos do futurismo. Pense-se ainda em pintores que trataram as mesmas temáticas que ocuparam o poeta português e tantos dos seus confrades europeus – ocorrem nomes como Gustave Moreau, Franz Von Stuck, Fernand Khnopff e Puvis de Chavannes, Gustav Klimt e Edward Munch; ou, de entre os contemporâneos de Sá-Carneiro em Paris, Picasso, Braque, Modigliani, Sonia e Robert Delaunay, bem como os portugueses Amadeo de Souza-Cardoso e Guilherme de Santa-Rita. Curiosamente, na correspondência de Sá-Carneiro são escassas as menções directas a nomes como estes, à frequência de exposições ou a leituras em curso, diminutas sendo, também, as situações da vida quotidiana; em vez disso, nos anos de Paris temos sobretudo a vida solitária nos cafés, o que poderá explicar-se por uma mentalidade da época, herdada de um tipo de educação das classes altas que vem já do século XIX: o gentleman, mais ainda, o dândi, não fala de coisas domésticas e quotidianas, assim como se não ocupa de dinheiro – a não ser, claro está, quando este falta (ao que voltaremos); o sujeito representa-se em pose, como uma composição artiste, não lhe interessando dar conta da vida comum. Tomemos no epistolário alguns exemplos paradigmáticos deste ultrapassar do documento e do relato de uma vida empírica, substituindo-lhe a vida como literatura. Olhemos primeiro para a epístola a Fernando Pessoa, datada de “Paris, 16 Novembro 1912”, tendo em mente que estar em Paris, capital do mundo de então, e às custas do pai, é situação rara. A começar há uma relação especular entre o tempo (“dia chuvoso, enervado, escuro como breu”) e a disposição do eu – “péssim[a]”, como aquela nevrose que a hipálage atribui ao “dia (…) enervado”. Segue-se a descrição destes como “alguns dos dias piores da minha vida”, “Por coisa alguma (…) ou antes: por mil pequeninas coisas que somam um total horrível e desolador”, confirmando-se isso com uma valorização do passado perdido, em contraste com o tempo de agora, “estrada (…) estreitando-se, emaranhando-se, perdendo o arvoredo frondoso que a abrigava”, e à “vida”, “temporal desfeito”. Repare-se como nada se concretiza sobre as razões desta negatividade – antes se tece uma pequena ficção que, alegoricamente, dá conta do desgoverno da alma, usando a alegoria do labirinto. O leitor reconhece nestes passos elementos temáticos que a poesia e as novelas tratarão, como aquele olhar visionário que permite dizer: “eu sofro porque sinto próxima a hora em que o recreio vai acabar, em que é forçoso entrar para as aulas”; eis a nostalgia da infância descuidada e o peso opressor das obrigações do ser social, acompanhados da incapacidade de tomar decisões, forma de astenia a que se junta a baixa auto-estima (“não creio em mim, nem no meu curso, nem no meu futuro.”). Se há nesta carta uma alusão rápida e imprecisa a circunstâncias vividas presentes (“a saudade de todas as coisas que vivi, as pessoas desaparecidas”) ou antecipando o futuro (“por exemplo, a morte fatal e próxima de algumas pessoas que estimo profundamente e são idosas”), nela se lê sobretudo o transfigurar da angústia em sentimento estético: “sofro”, escreve ao seu “querido amigo”, por “coisas mais estranhas e requintadas – pelas coisas que não foram.” A vida, a vida empírica, emerge brevemente, mas é abafada pela transfiguração estética que se substitui ao concreto do mundo quotidiano. Numa outra carta a Pessoa, datada de “Paris – Fevereiro de 1913 – Dia 26”, e escrita no “café-restaurant” La Régence, sito na chic Rue Saint-Honoré, alguns passos confirmam o que se afirmou. Assim, comentando o que Pessoa terá anotado a propósito do poema que lhe havia enviado, “Simplesmente” (depois publicado com o título “Partida”) Sá-Carneiro considera esses versos “verdadeiros”, porque, esclarece: “Vida e arte, no artista confundem-se, indistinguem-se.”; mais, diferencia-se da vida “dos que têm família e amor banalmente”, enquanto o epistológrafo “não cultiva a arte diária”, o que para ele “é fulvamente radioso e grande e belo”. Já Horácio proclamava, altivo, este afastamento do vulgo, sendo o artista alguém que, nestes anos do início do século XX, se escuda numa altivez de dândi que se “ach[a] mais belo”, narciso ferido pela solidão que paradoxalmente busca, cultiva e – hélàs - sofre. Ainda nesta longa missiva, um outro passo parece ir ocupar-se do mundo concreto: “Pela primeira vez na minha vida tive ocasião de experimentar temperaturas muito baixas, 0 a -4º.”; o que Sá-Carneiro faz com o relato dessa sensação física e material, no entanto, é transformá-la em estesia através do pensamento analítico: “A sensação que tive foi de não ter frio. Mas (…) de o ver, de sentir dentro de mim um elemento novo que seria o frio – o Frio – mas que não me esfriava a carne.”; este é o caminho do sensacionismo, transfigurando o mundo empírico em elementos estéticos vividos no domínio simbólico para que a maiúscula enfática “Frio” aponta. Nas últimas cartas a Fernando Pessoa, as que são datadas entre 5 de Março e 18 de Abril de 1916 (oito dias antes do suicídio), é evidente o conteúdo dramático, por razões de dinheiro que se vão mesclando com um desespero vivencial crescente; não conhecemos a correspondência reversa, mas não será difícil imaginar a inquietação que estas missivas terão causado no amigo dilecto que as recebia, procurando desempenhar o melhor possível as missões que Sá-Carneiro lhe confiava (na carta de 17 de Abril, deixa entrever a aflição de que o amigo lhe terá dado notícia: “Se eu penso em você? Mas a todos os momentos. (…) E é nestes momentos que eu sinto todo o afecto que liga as nossas almas.”). Mesmo nestas cartas de tom lancinante, no entanto, estamos em presença de temas familiares à obra do poeta e ficcionista, e de traços estilísticos em tudo coerentes com o seu universo. Veja-se a sucessão dos “não” escandindo o bilhete de 15 de Março; ou assinale-se, na epístola de 24 de Março, respondendo à “admirável carta” de Pessoa, o modo como Sá-Carneiro caracteriza a sua situação em termos literários e simbólicos: “(…) a Zoina silva cada vez mais forte (…) toda mosqueada a loiro e roxo; por isso cada vez mais Cobra”. A sucessão das cartas de 31 de Março, 3 de Abril, 4 de Abril e 17 do mesmo mês, nas quais anuncia o suicídio afinal ainda não consumado, não é alheia a uma encenação da morte próxima de situações que a ficção tematizou. Na primeira carta deste último núcleo, retrata a vertigem dos últimos “15 dias”, “uma vida como sempre sonhei: (…) realizada a parte sexual, enfim, da minha obra” (repare-se: realização sexual da obra, não da experiência carnal) e “vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua ilusão”, polaridade positiva a contrastar com a queda no regresso à realidade (“mas não tenho dinheiro”). Noutro passo da mesma epístola acrescenta: ”Não me perdi por ninguém: perdi-me por mim, mas fiel aos meus versos: Atapetemos a vida / Contra nós e contra o mundo…”; e em post-scriptum pede a um Pessoa certamente perplexo e aflito que “mesmo para os Astros diga-me potins, fale-me do sensacionismo…”, antes de lhe anunciar as duas possíveis vias de suicídio, a estricnina ou o “deit[ar-se] para debaixo do Metro…”. O que vale a pena salientar, conforme atrás se notava, é uma espécie de controle racional da situação, compondo-se como uma figura que recita tiradas dramáticas, e se cola às máscaras que para si mesmo criou; Sá-Carneiro escreve isso mesmo, num passo da carta de 17 de Abril em que descreve ao amigo a sua “doença moral”: “(…) você compreende que vivo uma das minhas personagens eu próprio, minha personagem – com uma das minhas personagens. De forma que se pode ser belo, é trucidante.” Esta Beleza, em caixa alta, é a de Ricardo de Loureiro e de Lúcio, a personagem que se volve para o abismo de si mesma, e nele se afunda. O espelho devolve um rosto fracturado, como um Dorian Gray que se não pode desprender de si mesmo, da “beleza doentia”, da “doença contorcida de incerteza, de mistério, de artifício” (carta de 17 de Abril). Mário de Sá-Carneiro viveu, morreu, como um refinado artiste; a vida e a obra que foram suas, no breve tempo dos seus quase vinte e seis anos, são exemplo cimeiro da problematização modernista dos limites do vivencial: a vida apaga-se, a obra ocupa, literalmente ocupa, todo o espaço vital.
Bibliografia:
Marina Tavares Dias. Mário de Sá-Carneiro - Fotobiografia, Lisboa, Quimera, 1988
Clara Rocha. O essencial sobre Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, IN/CM, 1984
Joel Serrão. “Perfil esfumado de Mário de Sá-Carneiro”, in Temas de cultura portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1983, pp.124-154.
Paula Morão