A breve vida de Sá-Carneiro parece afinal bem longa, não só pelo número considerável dos textos que escreveu (os mais antigos datam de 1903), como também pelo lugar central que, a par de Pessoa, ocupa não só no modernismo mas na poesia do século XX, na qual são múltiplos os ecos da sua obra e dos temas em que se concentrou (cf. MARTINHO 1990), nomeadamente os da identidade e da loucura, transversais à prosa como à poesia. Procuremos aproximar-nos das razões de tal perenidade, concentrando atenções nos textos que escreveu a partir de 1913, já que os anteriores a esse ano são exercícios de aprendizagem, relevantes sobretudo por documentarem o processo de autonomia da voz própria, quer em prosa (os dispersos e Princípio) quer em verso, como ainda nos tentames teatrais (Amizade, com Tomás Cabreira Júnior, 1912). Seguindo a ordem de publicação dos livros de poemas, verificamos que os de Dispersão, datados todos de 1913, desde o título se colocam sob a égide da busca do eu uno, que os poemas mostram fragmentado e dividido entre o enigma do ser que quer reunir-se mas que, paradoxal e simultaneamente, aspira a ser «dois» (como diz o verso final de Partida: «A tristeza de nunca sermos dois»). Este programa desenvolve-se com abundante recurso a léxico e a recursos retóricos herdados do simbolismo: assim, proliferam mitos como a quimera, os grifos e as esfinges ou o labirinto, simbologias como a da água e do fogo que se mesclam, a evanescência do álcool a desfazer-se no ar, ou ainda os símbolos heráldicos figurando a violência de batalhas em que o eu é arena e gladiador, espada e punhal. Estes e outros elementos constituem um cenário interior dominado pelo conflito entre sensações extremadas (os verbos e o léxico referentes a elas estão constantemente em cena), desmaterializando o corpo, que se evola ou que se transfigura em pássaro doirado, Fénix ou ave sagrada; note-se aliás como as asas e o movimento ascensional são recorrentes na obra de Sá-Carneiro, nomeadamente através de variações sobre o par mitológico formado por Ícaro e Dédalo, exemplar da dupla pulsão terra e razão versus ar eabstracção, a caminho de um Ideal a que sempre se aspira. Este par mítico deu lugar à profícua leitura de David Mourão-Ferreira (1964, 1983) acerca da relação entre Sá-Carneiro e Pessoa, mas essas figuras produzem sentido em Dispersão, e em Indícios de oiro, como emblemas do sujeito dividido entre si e si mesmo, com uma consequência fundamental: é daí que emerge uma outra extensão temática herdada dos simbolistas e do fin-de-siècle, a saber, a questão do duplo. Uma das saídas que para a cisão do sujeito Sá-Carneiro procura desenvolver é, em toda a obra, a criação de figuras de dândi, afastando-se do homem comum para se situar no plano da estesia, fazendo conviver personagens em que se reparte a consciência estilhaçada do sujeito, a sós consigo e com as vozes que projecta. O poema Partida, que abre Dispersão, desde logo põe isso em cena, através daquele «artista» para quem a  «vida, a natureza» são «coisa alguma», pois lhe importa «Correr no azul à busca da beleza» e «subir além dos céus» (estr. 4 e 5). A  busca da «Altura!», no entanto, tem o seu contraponto na descida aos infernos, por exemplo em «Escavação»:  neste poema, Orfeu procura uma sombra de si que pode chamar-se Eurídice, mas desce-se «em vão, sem nada achar» – como se o perdido objecto de amor não fosse senão o próprio eu, ou a sua face espelhada nessa personagem que só faz sentido porque remata o nó górdio entre «princípio ou fim». Vêm ainda da herança finissecular as «Princesas de fantasia» (Inter-Sonho), a «sereia», a «esfinge» e a «estátua falsa» (do poema epónimo) que neste primeiro livro figuram, para serem retomadas depois. Mas o mais impressivo é porventura a transmutação do sujeito em cenário de uma luta sem quartel, em Álcool ou em Dispersão, com o eu rodeado de símbolos de uma paisagem interior agressiva e devastada, dando lugar à disseminação de símbolos de derrota e de morte. «Perdi-me dentro de mim /Porque eu era labirinto», lemos a abrir Dispersão, e mais adiante se depara com a impossibilidade de sair deste universo simbólico para passar ao quotidiano – pois este seria povoado por aqueles para quem  «um domingo é família,/ É bem-estar […]», enquanto «os que olham a beleza/ Não têm bem-estar nem família». O eu pertence a esta estirpe, pertence àqueles que de longe «olham a beleza» e se definem como «O pobre moço das ânsias». Esta ânsia, motivo disseminado em toda a obra, norteia o dândi  no esforço para, não sendo como os demais, querer encontrar o Ideal, o duplo, a alma gémea; em vez disso, o que se encontra é a impossibilidade  de voltar ao tempo da infância e do não-saber, é a consciência de que a fuga para diante, tenha ela a forma do narcisismo exacerbado ou a ida para um lugar ideal são formas de ilusão (ainda Dispersão: «E sinto que a minha morte - /Minha dispersão total - /Existe lá longe ao norte, /Numa grande capital»).

Será agora oportuno observar dois pontos de síntese. O primeiro respeita à tradição, já implicitamente referida, em que se escora a obra de Sá-Carneiro, e que é comum aos de Orpheu; os temas e motivos vêm predominantemente do simbolismo, mas também de autores que o precedem e anunciam: Cesário Verde, António Nobre e Pessanha, ou Eugénio de Castro; Mallarmé e Rimbaud, ou as Fleurs du Mal de Baudelaire, com suas sugestões de paraísos artificiais, feitos de sinestesias e de paisagens oníricas; e Gérard de Nerval, citado em epígrafe a A Grande Sombra (primeira novela de Céu em Fogo), ou ainda Oscar Wilde e Poe, sem esquecer  Dostoievsky (um passo de O Idiota constituia epígrafe geral do livro de novelas de 1915, definindo a epilepsia como «une maladie, une tension anormale» que contém «au plus haut degré l’harmonie et la beauté»). A segunda característica geral a salientar é o outro lado desta escrita ancorada na tradição que apontámos, bem como na intensa troca com Pessoa que a correspondência documenta: trata-se do saber técnico da literatura; na poesia, ele é visível na impecável construção dos textos que, tematizando a cisão do sujeito e a perdição interior, são no entanto muitíssimo controlados enquanto edifício poético e retórico. Assim é que temos o soneto, ou a quadra e a quintilha (além de outros tipos de estrofes), em versos de redondilha ou decassílabos, sempre de impecável medida e ritmo, de que a rima é coadjuvante.  A  experimentação formal, que começa no léxico e continua em todos os aspectos de versificação, métrica e ritmo, mantém-se constante ao longo dos poemas de Dispersão  e de Indícios de Oiro, escritos estes nos anos de 1914 e 1915, sendo os de abertura ainda de 1913. Tome-se o soneto Salomé, personagem muito glosada desde o fim-de-século em toda a literatura europeia: cria-se uma atmosfera irreal e sensual pela descrição do corpo e dos efeitos dele sobre quem o vê rodopiando, em delírio, a causar sensações extremas de calor e de frio, sensualidade e antecipação da morte; envolvido e seduzido, o sujeito faz reverter sobre si as acções da dançarina (vejam-se as formas verbais no primeiro terceto: “Nimba-se a perder-me, /Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto…/ […] A doida quer morrer-me:”), para se tornar ele mesmo protagonista, em palimpsesto com João Baptista  à beira de morrer. O poema Bárbaro completa a glosa deste motivo da perversidade protagonizada por Salomé: o sujeito, príncipe de alta estirpe como Herodes, envolve-a em erotizadas serpentes, mas o «vício» («ó torpe, ó debochada») leva a um clímax em que já são indistintos a «dançarina morta» e «a minha Alma», cenário e tela onde tudo decorre.  Deixemos já anotado que esta ritual dança regressa no início de A Confissão de Lúcio, aquando da festa da americana, bailando por entre água e fogo numa sugestão orgástica, como antelóquio à ambígua relação entre Lúcio, Ricardo de Loureiro e a fantasmática mulher deste, Marta. Outros poemas de 1914 como 16, Apoteose ou Distante Melodia trabalham ainda nesta dimensão, aquela em que o sujeito vai desdobrando as telas de um cenário simbólico em que se espelha; mas começam já a insinuar-se outros motivos que vão ser dominantes nos poemas de 1915 e 1916 – a saber, entram no palco «As mesas do Café», o arlequim e o boneco articulado por cujas mãos regressa a infância longínqua que, aqui como em O Recreio, é ainda a evidência de um perigo desde sempre pendente sobre a vida (final de 16: «(Subo por mim acima como por uma escada de corda,/  A minha Ânsia é um trapézio escangalhado…)»; os mesmos motivos são retomados em O Recreio). Nos poemas de Indícios de Oiro, em parte publicados em 1915 no Orpheu, assistimos à progressiva libertação da matriz simbolista; em seu lugar estará cada vez mais presente um vocabulário mais próximo do cosmopolitismo parisiense em que, mesmo se sempre à distância, o dândi e solitário Sá-Carneiro viveu, rodeado por signos de velocidade e cores rodopiantes (como as que em pintura representaram Sonya e Robert Delaunay, ou Amadeo de Souza-Cardozo), em tempos de mudança rápida que a guerra (1914-1918) veio precipitar.  Os «Meus Boulevards de Europa e beijos / Onde fui só um espectador» (Elegia) trazem também uma figura feminina que se insinua, sempre carnal, sempre irreal – como se o concreto fosse sempre decepcionante para este ser à parte («Eu fui alguém que se enganou / E achou mais belo ter errado./ Mantenho o trono mascarado/ Aonde me sagrei Pierrot», est. 5  de Elegia). Nesta moldura se inscreve um poema central e dos mais conhecidos de Sá-Carneiro, a quadra 7: na sua construção epigramática se concentra toda a complexidade do problema identitário, oscilando entre ser e não ser, entre o nome comum «outro» e a sua elevação a símbolo pela caixa alta de «o Outro». Ocorre à lembrança, a propósito de 7, outra figura de emblema, comum (não por acaso) a Sá-Carneiro e ao «drama em gente» pessoano: na sua perfeita construção (dois octossílabos e dois versos de redondilha, glosando os iniciais), o poema traz à memória Hamlet, o príncipe da Melancolia, discreteando face à caveira (talvez) de Yorick no monólogo «To be or not to be» (assinale-se que daqui parte o diálogo da segunda parte de Males de Anto do de António Nobre – e nota-se isto porque Nobre é leitura de Sá-Carneiro, como mostram quer o poema Anto, quer o tratamento do infantilismo, ou o uso frequente de símbolos como a torre e o castelo). Assinalámos que, nos poemas datados de 1915, é cada vez mais visível o caminho da Vanguarda, de acordo com o programa seguido em Orpheu; o caso mais claro será porventura Manucure, de 1915, editado no n.º 2 da revista: em verso mais longo e sem rima, um eu narcísico e dândi que vai «polindo as [suas] unhas», «sozinho no Café» desenvolve imagens do mundo e de si, em litania ritmada por repetições estruturantes. Restos dos antigos motivos (entre eles, o de Salomé) perpassam por entre o sensacionismo difuso da «minh’Alma a divagar», a cruzar-se com «a beleza futurista das mercadorias!» na descrição de uma paisagem cosmopolita e urbana, de movimento vertiginoso, na qual se inscrevem, como na pintura coetânea (Braque, Picasso, Amadeo e outros), colagens de rótulos e anúncios, versos desenhados em curva, séries aleatórias de letras, números e outros signos, ou a equação (que tem de ser vista no grafismo original para surtir todo o efeito) que chama para dentro do poema o seu contexto contemporâneo, de futurismo up to date: «MARINETTI + PICASSO = PARIS < SANTA RITA PINTOR+ FERNANDO PESSOA ÁLVARO DE CAMPOS ! ! ! !». Trata-se de tornar claro que o texto tem uma componente visual, e que o sentido, em tempo de futurismo, também se faz de signos visuais; e trata-se também de assinalar uma família de artistas, da qual o poeta faz parte escrevendo «Palavras em liberdade, sons sem fio…». Mesmo se permanece a insatisfação de sempre: «- Ó sonho desprendido, ó luar errado,/ Nunca em meus versos poderei cantar,/ Como ansiara, até ao espasmo e ao Oiro, / Toda essa Beleza inatingível, /Essa Beleza pura!» Pese embora esta pequenina-grande sombra, Manucure é o poema da euforia, da pulsão vital transbordante, da descoberta e da afirmação de caminhos novos. Os poemas datados de 1916 (em parte publicados por Pessoa na Athena, n.º 2) regressam ao que, porventura, era mais próximo do «Emigrado/ Astral» (O Fantasma) que parece escrever em Aquele Outro o seu próprio epitáfio, na sucessão de expressões lapidares que ocupam todo um soneto. E cá está de novo o modo que se nos afigura mais pertinente para ler a confusão entre vida e obra, que tantas vezes se tem insinuado nas leituras da obra de Sá-Carneiro: se a experiência vivida subjaz à obra, e se esse percurso é o de Ícaro precipitando-se no abismo e na morte, nem por isso a instância poética abranda o seu domínio em termos técnicos; os poemas que fecham o livro, Aquele Outro, dolorido retrato do sujeito, e as duas quadras de magoada ironia de Fim, são de perfeição sem mácula.

A obra de Sá-Carneiro, de uma grande coerência quanto a temas e motivos, atinge um lugar cimeiro no panorama do seu tempo (e na posteridade) também pelos textos narrativos: A Confissão de Lúcio – Narrativa (1913)e Céu em Fogo – Oito Novelas (datadas entre 1913 e 1914; 1.ª ed. em volume, 1915), além de textos anteriores a estes em data, e da correspondência (que abordamos no verbete sobre a vida do autor). Detenhamo-nos primeiro em A Confissão de Lúcio – Narrativa, que abre sob o signo de Pessoa (a epígrafe cita um passo de Na Floresta do Alheamento, mais tarde integrado no Livro do Desassossego), e começa por se apresentar como uma narrativa de tipo policiário, na esteira de contos de Poe e de outros que os dois mentores de Orpheu bem conheciam. A abertura merece atenção: nela se estabelece um pacto de leitura, estabelecendo a credibilidade do narrador, o qual, em primeira pessoa e em retrospectiva («Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei»), vem quebrar o silêncio que manteve no processo em que se viu acusado do assassinato de Ricardo de Loureiro: «eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência». Parece portanto anunciar-se uma narrativa não só realista mas verdadeira (ponto em que insistem os últimos parágrafos), «um mero documento». Repare-se, no entanto, primeiro, no contraponto entre o silêncio de dez anos, como se um trauma profundo tivesse obnubilado a fala e a defesa, e a narrativa em pormenor da «grande soma de factos» que nela se registam. Some-se-lhe a presentificação do passado, trazido ao presente com toda a nitidez pela pormenorização do relato, como se a memória de Lúcio tudo tivesse conservado intacto. Por fim, dê-se atenção à representação múltipla do tempo: por um lado, há o intervalo de dez anos entre o ocorrido e a narração disso (em realidade, são mais de dez anos, pois a história decorre entre 1895 e 1900, situando-se a narração dez anos mais tarde); por outro lado, neste breve prefácio-programa tematiza-se o tempo como duração, medindo-se intervalos longos tomados subjectivamente como brevidade («dez anos […] como dez meses»), e mais, concentrando tudo no «instante que focou toda a […] vida», no «momento culminante» que torna «raras as criaturas que o vivem», ainda que se tenham tornado «os mortos-vivos ou – apenas – os desencantados». Enfim, tenha-se em conta que «confissão» não é apenas, em termos judiciais, discurso de revelação e estabelecimento da verdade do ocorrido – há que acrescentar que «confissão» implica culpa, mesmo que latente, e mesmo que Lúcio tenha sido considerado pelo júri, em mais um paradoxo, como «um herói com seus laivos de mistério». Esta designação de herói, de facto, ajuda-nos a perceber desde logo algumas questões: por um lado que o narrador e protagonista é o centro e o pólo de tudo, mesmo quando se sente perplexo perante acontecimentos que não pode entender; por outro lado, a personagem configura-se como tendo um destino excepcional e raro, na narrativa designado Mistério. Desde o primeiro capítulo se desenha um meio artiste, na cidade de Paris, povoada por figuras, femininas e masculinas, caracterizadas por serem esguias e louras, de pele muito branca, prestes a desaparecer; vagamente aristocratas, todos são escritores, escultores  e pintores, ou dançarinas e actrizes (próximas da Duse ou de Sarah Bernard), todos conversam sobre o que estão a escrever ou a preparar. Neste meio, Gervásio Vila-Nova ou Sérgio Warginsky são exemplos de androginia e mesmo de indefinição sexual, com os seus corpos sensuais e ambíguos. É o primeiro quem, no capítulo de abertura, conduz Lúcio Vaz à premonitória festa da americana, na qual esta, qual Salomé acolitada pelas suas amantes, protagoniza uma dança inebriante pelo sobrepor das sensações e dos materiais; e é também Vila-Nova quem apresenta nessa festa Lúcio ao poeta Ricardo de Loureiro, num início de relação feita de “conversas de alma”, progressivamente resvalando para uma difusa teoria da amizade impossível. Ricardo, com efeito, vai discreteando sobre a amizade como «desejo […] de possuir», só podendo «ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo». Assim se abre a porta para a epifania de Marta, a mulher de Ricardo que materializa esse desejo interdito, ao tornar-se amante de Lúcio. Marta, diz o texto, «Era uma linda mulher, loira, muito loira, alta, escultural – e a carne mordorada, dura, fugitiva»; à dureza, convencional traço masculino, junta-se o «rosto formosíssimo, de uma beleza vigorosa, talhada em oiro» – aos traços varonis se acrescenta, paradoxalmente, a imaterialidade acentuada pela simbologia do oiro, de uma estátua preciosa mas sem vida, esfinge a que o termo «mordorada» (vindo de Théophile Gautier, via Eugénio de Castro) dá expressão, ao fundir os semas de morte, dor e oiro. Ora, nesta ambiguidade é que tudo se joga, dentro de um programa narrativo que vai desdobrando cambiantes do tema do duplo e da androginia, se não mesmo do mito de Hermafrodita, trabalhando no arame frágil entre a estesia e a relação intelectual entre as personagens masculinas, de uma parte, e a carnalidade sensual dos corpos que se entrechocam numa relação de amantes. A isto se acrescenta um outro tema muito caro a Sá-Carneiro, qual seja o da memória: fenómenos de paramnésia e de déjà vu estão constantemente a aflorar, ao mesmo tempo que se pensa sobre a memória como fixação de instantes (parafraseando o título de uma das novelas de Céu em Fogo), ou sobre a impossibilidade de recordar («como impossível é recordarmo-nos de coisas que nunca sucederam…», lê-se no cap.VI). Quando ocorre o suposto crime, e Ricardo dispara sobre Marta, que se desvanece enquanto ele cai sem vida aos pés de Lúcio, o triângulo completa-se, e o silêncio invade Lúcio durante todo o tempo do processo e da condenação pelo assassinato do amigo. Na verdade, não se trata de um crime, nas palavras do relato de Lúcio: antes «foi o Mistério, o fantástico Mistério da minha vida… / Ó assombro! Ó quebranto!” (cap. VIII). A narrativa garante simbolicamente a permanência dessa “realidade inverosímil», o texto pode fechar – e com ele uma obra-prima sobre a identidade, sobre o tempo, sobre a memória.  Questões similares se desenvolvem nas oito novelas de Céu em Fogo. Duas delas apresentam-se como falsos diários. Um deles, A Grande Sombra, tem entradas datadas a criar a sensação de sucessão dos eventos no tempo, mas uma leitura cuidada deixa ver a irregularidade dos registos que formam os capítulos, de extensão variável, e expõe a estrutura mais funda do texto: glosando motivos já anotados, reencontramos o Mistério, a Grande Sombra como projecção fantasmática do eu a tender para a reificação do seu duplo, a memória que se junta à razão para dar sentido a um cenário interior povoado de «estranhos» e de «comparsas», viajando dentro do sujeito a velocidades vertiginosas. Na impossibilidade de parar, o eu é instável e vai-se perdendo de si («Viajo, viajo erradamente… Assim me modifico […]»), mutante como as «grandes cidades» nas quais «se entrecruzam, se interseccionam, se engolfam uns pelos outros [os  edifícios]». Este é um motivo tipicamente modernista, que reencontramos em Álvaro de Campos, nos futuristas europeus, e no cinema de Fritz Lang – cidades vazias ecoam o deserto da alma, e exacerbam a angústia da solidão, a que a arte tenta dar uma resposta, sem o lograr fazer; na ilusão do encontro de um alter ego feminino, o sujeito julga enfim viver a «Apoteose», o «Triunfo» - mas é a loucura que avança para primeiro plano, trazendo consigo a morte e o crime pelo qual, de punhal na mão, o eu enterra a lâmina no coração da enigmática mulher mascarada que o tem subjugado. O cenário é aqui o da «Praça enorme, de arquitecturas colossais (mas com um grande poço ao centro, em vez de uma estátua de herói» – cá temos o mundo às avessas, o abismo a prefigurar a morte nas arcadas vazias mas ressoando de memórias ancestrais (como nas telas de Giorgio De Chirico). A estrutura diarística é ainda trabalhada na novela Eu-Próprio o Outro, na qual o leitor reconhece estreitos laços com outros textos: a fuga em grande velocidade, a aparição de o «outro» como um duplo que se não ode absorver e por isso é preciso matar – sabendo que desse modo se põe fim à vida de que a sombra dimana. Nas restantes novelas de Céu em Fogo desenvolvem-se extensões das mesmas temáticas: podemos por exemplo destacar o complexo de Ícaro em Asas, ou a reflexão sobre o tempo em O Fixador de Instantes («Sim! Eu acastelo a vida em ânsias eternizadas. […] Não ressuscito. Petrifico»). Os protagonistas são escritores ou artistas, como convém ao requintado e cosmopolita universo da estesia dândi, tapando sob a máscara das sensações e da vertigem de viagens alucinantes o rosto angustioso do homem, assombrado face a si mesmo. A obra de Sá-Carneiro, na sua construção tão perfeita e tão coesa, mostra, afinal, uma saída para a neurose fatal que o atingiu: essa saída, que a tantos leitores tem servido de salvação, é a da grande arte, a de uma escrita perfeita e tão próxima do que de mais frágil há no rosto e na alma dos humanos. Na luta sem tréguas com a estátua de uma falsa esfinge, ele não o soube ver; em herança deixou-nos a inquietação e o fascínio da sua obra múltipla e una – uma herança a par do que de melhor se lê em língua portuguesa.

 

Bibl.: Colóquio/Letras 117/118 – Mário de Sá-Carneiro a Cem Anos do Seu Nascimento, 1990; Fernando Cabral Martins, O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Estampa, 1994; Clara Rocha, O Essencial sobre Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, IN/CM, 1984.

                                                                                       Paula Morão