Há sensivelmente vinte anos, Marshall Berman[1] falava da modernidade como “um modo de experiência vital” (15), isto é, um modo de experienciar “espaço e tempo, o eu e os outros, as possibilidades e os perigos da vida” (idem), e fazia ancorar nessa experiência formas distintas de perceber o “agora” moderno, propondo descoincidências a seu ver irremíveis entre uma sua forma mais ligada ao projecto das Luzes e à dimensão construtiva por ele permitida e uma outra forma, posterior, que radicaria sobretudo numa sensível experiência de esvaziamento. Entre esses dois modos navegaria a nossa experiência não só da modernidade enquanto tal mas também de nós, enquanto sujeitos modernos: vivendo a modernidade por dentro dela. Ao descrevê-la como de tal forma instável, Berman junta-se a um grupo relativamente amplo de outros pensadores que parecem sobretudo ser sensíveis àquilo a que, com toda a justeza, Antoine Compagnon[2] veio a chamar os “paradoxos da modernidade”, ou que está na base da defesa, feita por Negri e Hardt[3], da ideia de que existem, senão duas Europas modernas, pelo menos duas diferentes tendências, frequentemente conflituantes, na modernidade europeia (e creio que é evidente que o problema não se esgota numa configuração europeia). Independentemente de as razões para a reflexão em torno desse carácter paradoxal não coincidirem em muitos deles, o facto é que a ideia de paradoxo parece ter alguma força de descrição nos diversos juízos a que a modernidade tem vindo a convidar: em certo sentido, pois, ela parece vir sendo incorporada à própria experiência descrita por Berman[4]. Algumas vezes, a tónica é colocada na questão da periodização, e nas relações (difíceis) entre diferentes momentos, como é o caso de Calinescu e, mais recentemente, também de Jameson, no reconto que propõe das relações entre modernidade e pós-modernidade; em outras, o que é sublinhado é preferencialmente aquilo que podemos considerar como a dimensão aspectual ou mesmo modal da modernidade, visão a que podemos ligar reflexões como a de Compagnon e Berman; em outras ainda, ambas as dimensões convergem de forma límpida no argumento desenvolvido, casos de Gumbrecht e Prendergast.

A forma como o conceito de modernidade não só surge como problematizado mas sobretudo parece certamente, pelo menos em alguns casos, tornar-se ele mesmo problemático,  faz a meu ver parte indelével do modo como nos podemos relacionar com tal conceito e dos (des)entendimentos que com ele podemos ter. Talvez seja essa a razão pela qual parece haver uma insistência consensual sobre a passagem do singular “modernidade” ao plural “modernidades”[5], que Gumbrecht cristaliza através da sua feliz formulação de “cascatas de modernidade”.

A modernidade que aqui interessa é a que corresponde a um período que se abre sensivelmente em meados do século XVIII e que podemos considerar prolongar-se, sob transformações que não o afectam substancialmente, até hoje. Nele, parece tornar-se cada vez mais claro que é a dialéctica entre “tradição” e “novidade”, “velho” e “novo” (que a Querela dos Antigos e Modernos abre e sustenta, dando-lhe forma para o futuro, e de que a “superstição do novo” (Compagnon) é, no início do século XX, uma nova e distinta formulação) que é significativamente reencenada e se torna assim elemento central para a pensar.

O reconhecimento de diferentes ondas, ou “cascatas” de modernidade, tem consequências para a forma como nos posicionamos relativamente a elas. A proposta de Gumbrecht é neste ponto particularmente estimulante, ao distinguir entre uma primeira idade moderna, que marca a transformação ocorrida em torno do século XV, ritmada por eventos como a descoberta do Novo Mundo e a invenção da imprensa, ou seja, uma “modernidade renascentista”; um segundo momento, que historicamente ancora entre 1780 e 1830, que caracteriza como “modernidade epistemológica”, e para o qual a tese hegeliana do “fim do período da arte” surge como paradigma estruturante; e finalmente uma terceira noção, a de Alta Modernidade, situável nas primeiras décadas do século XX e cujas características mais salientes se situariam em torno da experimentação e de formas de radicalidade programática (23-25). A estes três momentos, substancialmente diferenciáveis, Gumbrecht acrescenta, de forma produtiva, a reflexão sobre a pós-modernidade como uma forma de modernidade tardia, com ênfase colocada sobre a sua construção temporal[6]. Estes períodos são por ele encarados como formas simultaneamente complexas e imbricadas, cuja “dinâmica da sua sequência em cascata” permite, sobretudo, confrontar o historiador “com o seu próprio tempo e o seu particular estatuto histórico” (idem).

A fronteira que distingue a primeira onda de modernidade daquela outra em que a questão epistemológica se torna central, vê-a Gumbrecht na “perda de confiança no conhecimento produzido pelo observador de 1ª ordem” (27), que considera ser elemento constitutivo da modernidade lato sensu. Esta perda de confiança (ou, se quisermos refrasear deceptivamente, esta desconfiança), que ele – a exemplo aliás do que ocorre com Prendergast - articula com a “crise da representação” analisada por Foucault, tornará efectivamente a questão epistemológica central à reflexão sobre o moderno, arrastando ainda consigo dois outros problemas: o da necessidade do posicionamento crítico, a implicar distância (mesmo se relacional, e cada vez mais consciente disso); e o da instabilidade do campo hermenêutico, visto que cada descrição do mundo é sobretudo uma redescrição, cujos limites e condições são então constitutivamente provisórios.

Ora é precisamente neste contexto que a noção de fronteira (como se vê epistemológica) recupera a sua centralidade, na medida em que permite confrontar a complexidade histórico-temporal como constitutiva e estruturante, nas sua próprias hesitações e “vontades” de distinção (que falam mais do que se liga do que daquilo que é separado). E é também aqui que a imagem da “cristalização”, vinda de Cesário Verde, pode ajudar a concretizar o meu próprio pensamento sobre a questão. O poema de Cesário é naturalmente o poema intitulado “Cristalizações”, cuja 1ª publicação ocorre em 1879 – mas o que ele sugere extravasa limpidamente dele, quer para a restante obra de Cesário quer para aquilo a que as fronteiras da modernidade apontam. Cristalizações: momentos precários de passagem do estado líquido ao sólido, que instavelmente fixam uma imagem-num-momento. Essa fixação essencial (porque sem ela não há cristalização) é instável por natureza (trata-se de um sólido que pode voltar ao seu primeiro estado líquido) e, por isso, se pode dissolver na sua afinal ilusória, porque precária, forma fixa (o diálogo, como fica visto, é pois também uma conversa que inclui a leitura que Berman faz da frase de Marx, all that is solid melts into air). A cristalização é uma imagem presente: e o presente é o momento do moderno por excelência, mas é também o seu tempus mais paradoxal, como Jameson deixa claro. Imagem presente cujo brilho cristalino, reflectindo a luz, reflecte também a sua precariedade. Intensidade e dissolução surgem assim como elementos que resultam de um processo de co-implicação, invisível apenas para quem, desta modernidade, continue a ter apenas a visão confiante de que a sua própria interrogação epistemológica à partida levou a duvidar. No poema de Cesário Verde, o brilho das imagens cristalizadas depende da sua dissolução também inscrita: o presente é o que brilha e o que apenas nos é dado viver mas é também, ao mesmo tempo, o que eterna e infatigavelmente se dissolve e repete em nós. Mais um passo e diremos: o presente é a própria fronteira, aquilo que olha para os dois lados e ao mesmo tempo separa e une:

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,

Vibra uma imensa claridade crua (...).

 

E os charcos brilham tanto que eu diria

Ter ante mim lagoas de brilhantes![7]

É nestes “charcos” subitamente transformados em “lagoas de brilhantes” que o corrupio do mundo se reflecte, no equivalente moderno da dança macabra medieval. E a ronda de personagens e coisas assim fixadas, na sua cristalina e precária imobilidade, apenas faz ressaltar a figura do sujeito poético, observando-se a observar, como Gumbrecht quer, e bem, que seja a posição fulcral do sujeito epistemológico moderno.

Ora esta posição auto-reflexiva (que tantos outros autores, de Compagnon a Jameson ou Prendergast, sublinham como determinante para a consideração da modernidade) implica, ainda segundo Gumbrecht, três transformações epistemológicas: a consciência da auto-constituição do sujeito enquanto corpo perceptivo (o que coloca o problema da mediação entre percepção e experiência conceptual); a “crise de representação” (Foucault), derivando da multiplicação, potencialmente infinita, das experiências e suas representações; e finalmente uma “aceleração do tempo” que, a partir do século XIX, afecta a própria possibilidade de estabilizar as suas representações. A história seria então para Gumbrecht, em proposta que julgo inovadoramente esclarecedora quanto ao carácter ao mesmo tempo fascinante e repulsivo com que ela tende a apresentar-se ao sujeito moderno, sobretudo a resposta possível a uma específica forma de ansiedade moderna. É também a isto que Cesário Verde responde com a sua noção de cristalização, cujo eco deceptivo poderemos encontrar, algumas décadas mais tarde, na poesia de Camilo Pessanha:

Imagens que passais pela retina

Dos meus olhos, porque não vos fixais?

Que passais como a água cristalina

Por uma fonte para nunca mais!... [8]

Podemos dizer: a cristalização transporta a história para uma dimensão de possibilidade; de algum modo, é a cristalização que torna possível a história do presente, ao mesmo tempo que não afecta a sua constitutiva e substancial transitoriedade – cada presente mergulhando no escuro do passado e engolindo dentro de si o que antes fora o seu futuro. E, por isso, a cristalização (a que vimos Cesário chamar, com sabedoria maior, cristalizações no plural, et pour cause) corresponde à intensidade com que o presente simultaneamente se mostra e se dissolve: a modernidade encontra na experiência da cristalização uma das suas imagens emblemáticas. Quando ela se torna impossível (e é disso que Pessanha fala, em contida ansiedade) é o próprio mundo como experiência e discurso que se mostra também como impossível, porque justamente não parece existir forma alternativa de fixar, por um instante que seja, as representações em crise (Foucault) a que o sujeito impotentemente assiste e de que participa. Se Zygmunt Bauman[9] argumenta em favor de uma “liquefacção” da modernidade, passagem do estado sólido ao líquido que assinalaria a sua progressiva maior “moleza”, penso que não são poucos os exemplos em que, pelo contrário, assistimos à tomada de consciência de que a representação (toda a representação) se mantém possível apenas enquanto a sua precária mas necessária cristalização ocorrer.

Articulada com esta, uma outra questão surge ainda como central, na argumentação de Gumbrecht: a consciência de que a cadeia evolutiva atinge o próprio tempo, fazendo com que cada instante apenas signifique na medida em que possa ser conectado com outros que não ele, antes e depois dele. Gumbrecht fala, a este propósito, de um presente experimentado enquanto “modificação do seu passado” e como “potencialmente modificado pelo seu futuro”. Ora, se é a articulação entre esta noção de tempo e a noção de subjectividade que está na base da concepção de uma história humana feita a partir dos homens, dentro da qual o sujeito “escolhe o futuro da sua preferência” (idem), não é a meu ver menos significativo entender que o passado de repente se amplia em múltiplas alternativas experienciais e hermenêuticas, e que o sujeito pode “escolher” (co-optar?) passados, tanto como “escolher” futuros (esta questão é central para alguns nomes do Modernismo, Valéry, Pessoa, Eliot, mas é de outra forma igualmente reconhecível em práticas literárias dele tão diferenciadas como por exemplo as de Yeats,  Herberto Helder, ou Le Clézio). Da mobilidade e flutuação dessas fronteiras derivam assim diferentes tipos de descrição do mundo, conforme os passados e os futuros escolhidos (isto é, imaginados) como os que estão na cadeia histórica do presente. Perceber o tempo como histórico torna-se então acto sem o qual não é possível imaginar o presente, não tanto como território fixo de uma substância mas sobretudo na sua qualidade de instável e entretanto infinitamente repetida representação.

Isto significa também que o presente inaugurado pela modernidade epistemológica, e de que hoje ainda participamos, é apreendido maioritariamente como ambivalente, ao mesmo tempo objecto de fascinação e de recusa. O encontro desses passados e desses futuros pode assim impregnar-se (sob ambos os modos) de uma indesmentível nostalgia (Boym[10]) – que não é então apenas o sentido de perda do passado mas, de modo igualmente forte, o sentido daquele futuro que nos rejeita, porque nunca o viveremos presente.

Tudo isto apenas é possível devido ao carácter por assim dizer pelo menos potencialmente anti-presente do presente, que surgirá implicado no carácter anti-moderno da modernidade, precisamente sublinhado por Theodor Adorno em Minima Moralia. Porque, se o presente se pensa a partir de (e se portanto contém) os germes substanciais daquilo contra que aparentemente se ergue (o carácter fatal da representação cronológica e histórica do tempo), então isto equivale a entender que as fronteiras históricas da modernidade são justamente lugares maiores por onde podemos pensar os embates constitutivos do moderno. Não no sentido de momentos transicionais frouxos e moles, antes no sentido que Prendergast (103) lhes atribui, ao propor-lhes um perfil substancialmente forte.

Embora de uma perspectiva destas diferenciada, cuja componente de inspiração sociológica se torna evidentemente clara, é esta forma de definir e entender o território da modernidade que permite por exemplo a Anthony Giddens[11] falar dela como de uma cultura do risco, sustentando aquilo a que chama (103) a colonização do futuro a partir do presente. O risco faz parte integrante da posição identitária do sujeito moderno e da sua forma de experienciar o tempo que vive, o que significa assim que os passados e os futuros por ele imaginados e empreendidos são fundamentalmente lugares de instabilidade e precariedade, que apenas a momentânea cristalização das representações dentro do presente pode por instantes fixar. Com certeza não será então por acaso que assistimos, na obra citada de Jameson, a uma relacionação entre modernidade e capitalismo: é que, se tomado a partir destas coordenadas, o “ser moderno” arrasta consigo, inevitavelmente, um pensamento sobre uma economia que não é apenas a dos mercados, embora a inclua, e que se projecta na própria forma como se “governa” a história dos passados e dos futuros a partir do território do presente

Neste sentido, as cristalizações do presente podem também ser entendidas como fronteiras da modernidade: aquilo que o presente cristaliza como imagem e representação de si fala, subterrânea mas não menos agudamente, das imagens e representações dos outros-de-si. Mais uma vez, o carácter anti-presente do presente surge como factor de identificação central – hesitação que estava já presente no diagnóstico que, em 1962, Henri Lefebvre realizava, na sua obra já clássica Introduction à la Modernité [12], ao sublinhar o carácter essencialmente contraditório da modernidade, polarmente fascinada pelo fantasma do novo e pela sombra do antigo (que Hölderlin ou Pessoa exemplarmente ilustram) – esse antigo considerado por Baudelaire[13], em “Le Peintre de la Vie Moderne”, como o “eterno e invariável” (455/6). Neste novo que, no presente, confronta a modernidade com o carácter marmóreo do eterno, reside afinal a historicidade do presente em que o próprio Baudelaire ancora, ao propô-la, a noção de modernidade:

Le passé est intéressant non seulement par la beauté qu’ont su en extraire les artistes pour qui il était présent, mais aussi comme passé, pour sa valeur historique. Il en est de même du présent. Le plaisir que nous retirons de la représentation du présent tient non seulement à la beauté dont il peut être revêtu, mais aussi à sa qualité essentielle de présent (454).

           

Aquilo em que Baudelaire claramente insiste é na dimensão histórica do tempo, que permite que o passado seja, em simultâneo, o presente que foi e o passado que é – o que quer dizer o futuro que talvez venha a ser. E não poderá deixar de se notar, por outro lado, a percepção rigorosa que Baudelaire tem do carácter dissolvente do presente como cristalização: imagem fixa de algo que, ao liquefazer-se (ou “evaporar-se”...), organizará a beleza do que foi como a percepção do carácter não-presente do passado, e a beleza do que é como a manifestação da sua “qualidade essencial” de presente. Em Baudelaire, pois, a esfera de acção estética é inseparável da esfera de acção histórica: e de algum modo poderemos dizer que “ser moderno” é para ele (e para os outros que depois dele vêm) perceber o presente como presente, assim como o passado como passado. Estamos pois longe de um confinamento da modernidade ao que seria uma pura percepção do presente como não-tempo: porque justamente o que ocorre é um inflacionado enchimento dos tempos que convergem tumultuosamente para o instante do presente, tornando-o o lugar geométrico em que não apenas experienciamos o vivido mas ainda experimentamos, em “cascata”, os vários não-vividos. De novo Baudelaire: La modernité, c’est le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et l’immuable. (467)

Para Baudelaire, é da conversação inteiramente repetida entre moderno e eterno, entre transitório e imutável, que pode nascer a representação artística do próprio presente – pois que, também já para ele, não há representação artística que não seja a do presente, que é a capacidade de reconhecer, nesse presente, os tempos-outros de que historicamente se alimenta. Assim, a modernidade escreve-se e descobre-se no confronto, que é fronteira, com os campos históricos diferenciados de que se reconhece diferente: porque só podemos apropriar-nos, para nossa e sua transformação, daquilo que nos é diferente. Nesse processo, “a modernidade torna-se digna de se transformar em antiguidade” (idem, 467/8), em reveladora e significativa formulação que dá conta da complexidade de um devir histórico que não é resumível através de meras oposições entre moderno e antigo ou entre novo e velho. Aquilo que aqui está também em questão é, muito seriamente, a dignidade da arte, dignidade possível, para Baudelaire, apenas na medida em que a conversação (que também é conflito e diferença) entre moderno e antigo possa revelar, simultaneamente, o moderno do antigo e o antigo do moderno: o seu carácter histórico.

Isto significa também, por outro lado, que o confronto entre antigo e novo se implica em ainda outras formas do mesmo diálogo, que vemos agirem em inúmeros campos de acção e reflexão diferenciados, como por exemplo o par “tradicional/revolucionário”, que Svetlana Boym considera como central para o entendimento do modo como a nostalgia moderna opera sobre futuros, para lá de sobre passados. Ora, a dimensão nostálgica, como bem viu Walter Benjamin, é uma das dimensões polares que Baudelaire tematiza na sua obra e em que ele centra a sua apreensão da modernidade (sendo a outra, evidentemente, o modo fremente da imersão no presente, que conversa e batalha com tal nostalgia). Desta perspectiva, julgo interessante notar a forma como Boym (19) sublinha esta constante interpenetração e codependência entre os movimentos de “idêntica repetição do passado” e de “ruptura radical” enquanto gesto distintamente moderno, considerando “traidora” a oposição entre “tradição e revolução.

É de tais interdependência e mútua implicação que nasce o projecto da modernidade, através das suas fronteiras, dos seus momentos e textos. Isto é também dizer que parece existir uma dimensão centralmente paradoxal dentro do projecto da modernidade que, em momentos dela tão distintos, quer Baudelaire quer Lefebvre, Boym, Compagnon ou Bruno Latour[14] apreenderam como seu elemento caracterizador. É neste sentido que Boym (29/30) arrisca falar daquilo a que chama “modernidade impura”, uma modernidade de fronteiras sujeitas a diversas formas de erosão, excrescência e precariedade. Isto quer também dizer, não só que haverá outras quem sabe igualmente visíveis, como também que estas poderão mover-se, tornando-se silentes: a modernidade não é uma língua morta.

                                                                       Helena Carvalhão Buescu

 



[1] Marshall Berman, All that is Solid melts into Air. The Experience of Modernity, New York, Verso Books, 1983 (1982).

[2]  Antoine Compagnon, Les Cinq Paradoxes de la Modernité, Paris, Seuil, 1990.

[3] Antonio Negri e Michael Hardt, Empire, Harvard UP, 2000.

[4] Refiro aqui algumas das reflexões em que esse carácter des-uniformizador da experiência e do conceito de modernidade ocupa um lugar central no argumento, escolhendo também as propostas que pessoalmente mais tensamente se me dirigiram, para lá das já acima referidas: Matei Calinescu, Five Faces of Modernity, Duke Univ. Pr., 1987;  Richard Terdiman, Present Past. Modernity and the Memory Crisis, Cornell Univ. Pr., 1993; Hans-Ulrich Gumbrecht, “Cascatas de Modernização”, in Joao Cézar de Castro Rocha [ed.]: Interseções. A Materialidade da Comunicação, Rio de Janeiro, 1998, pp. 23-39; Zygmunt Bauman, Liquid Modernity, Polity press, 2000; Fredric Jameson, A Singular Modernity.Essays on the Ontology of the Present, London, Verso Books, 2002; Christopher Prendergast, “Codeword Modernity”, New Left Review, 24, November-December 2003, 95-111.

[5] “[...] ‘modernity’, whatever it might be taken to be, will be cast in the plural form.” (Prendergast, 96).

[6] Recorde-se que esta co-implicação da pós-modernidade na modernidade é também o movimento que, entre 1977 (data da 1ª edição) e 1987 (data da 2ª), faz distinguir as duas versões do título de Calinescu: o que era antes apenas “faces da modernidade” torna-se em 1987, e com a inclusão de um capítulo sobre o pós-modernismo, “cinco faces da modernidade”.

[7] Cesário Verde, “Cristalizações”, Cânticos do Realismo e Outros Poemas. 32 Cartas, ed. de Teresa Sobral Cunha, Lisboa, Relógio d’Água, 2006, 123.

[8] Camilo Pessanha, “Imagens que passais pela retina”, Clepsydra, ed. Paulo Franchetti, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, 102.

[9] Bauman, Liquid Modernity.

[10] Svetlana Boym, The Future of Nostalgia, New York, Basic Books, 2001.

[11] Anthony Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, Celta Editora, 2001.

[12] Henri Lefebvre, Introduction à la Modernité, Paris, Minuit, 1962.

[13] Charles Baudelaire, “Le Peintre de la Vie Moderne”, 1863, Curiosités Esthétiques. L’Art Romantique et Autres Oeuvres Critiques, Paris, Garnier Frères, 1962.

[14] Bruno Latour, Nous n’avons jamais été Modernes, Paris, Gallimard, 1997.