Almada Negreiros escreve o Manifesto Anti-Dantas reagindo à estreia, a 21/10/15 no Teatro Ginásio em Lisboa., da peça Sóror Mariana de Júlio Dantas. Integrando-se no grupo «daqueles que, usando dum legítimo direito e com plena convicção», patearam a peça de Dantas, uma «baboseira teatral» da autoria de um «homem cuja mediocridade inchada de egotismo o levou a comparecer em cena, ao chamamento de meia dúzia de claqueurs, ignorantes e ineptos» (Almada Negreiros e.a., A Lucta, 25/10/15), Almada terá redigido o manifesto, ou parte dele, logo após a representação, lendo-o no dia seguinte a um grupo de amigos. No entanto, o Anti-Dantas só será publicado meses mais tarde, em edição de autor, entre Junho e Julho de 1916.

Se o manifesto de Almada surge na consequência directa de um evento específico – o que explica sem dúvida a presença, num texto deste tipo, da longuíssima e caricatural descrição da estreia de Sóror Mariana – este constitui, fundamentalmente, uma reacção violenta contra todos os que criticaram o grupo de Orpheu – em suma, contra o conjunto da intelectualidade portuguesa, representado pela figura emblemática de Júlio Dantas. Pois se o autor da Ceia dos Cardeais não era dos piores representantes da mentalidade marasmada das nossas letras, não deixava porém de ser, pelo seu currículo multifacetado e pelo seu discurso eminentemente acaciano, o mais representativo dessa mentalidade. Poeta, dramaturgo, romancista, cronista, jornalista, historiador, tradutor, professor e director da Escola da Arte de Representar, médico, deputado, embaixador, senador, e ministro, Júlio Dantas escreve sobre tudo e a propósito de todos com uma superficialidade e um reaccionarismo apenas disfarçados por alguma graça e alguma elegância.

Mas para além de constituir o expoente máximo do establishment cultural português da época, Júlio Dantas assina ele próprio, no número de 19/4/15 da Ilustração Portuguesa, uma crónica sobre os poetas de Orpheu intitulada «Poetas Paranóicos». Através desta nota Dantas denuncia a excessiva publicidade feita à nova revista literária que, «tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de algumas, senão de todas as suas composições». Por um lado, o médico-escritor afirma que «loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos extravagantes, que querem ser lidos, discutidos e comprados» e que «quem não tem juízo é quem os lê, quem os discute e quem os compra». Mas por outro lado, o título desta crónica refere-se manifestamente à tese de formatura em medicina de Júlio Dantas, Pintores e Poetas de Rilhafoles (1900), associando claramente os poetas de Orpheu à paranóia – que «rompe os muros dos manicómios e alastra, cá para fora, dando […] toda essa galeria de figuras de cera da literatura e da arte decadente» – e assimilando os seus poemas aos escritos do paranóico – «documentos pitorescos, variando com o conteúdo das ideias delirantes, gafos de neologismos e às vezes de arcaísmos, eriçados de expressões simbólicas, com abuso de capítulos, de maiúsculas, de itálicos», formulados numa linguagem «balofa, com períodos enormes e brilhos de brocado falso». Numa entrevista radiofónica concedida a 15/8/65 Almada referirá ainda, como estando na origem do seu manifesto, um inquérito organizado pela Capital acerca da suposta loucura dos poetas de Orpheu e dirigido a Júlio de Matos, Egas Moniz e Júlio Dantas – cuja resposta considera «indignante». Ora é provável que este inquérito, nunca localizado, tenha sido totalmente forjado pela personalidade teatral de Almada Negreiros de modo a reunir numa só peça vários alvos de acusação: o jornal A Capital, principal arauto das críticas a Orpheu, Júlio de Matos e Egas Moniz, pela entrevista concedida à Lucta a 11/4/15, e Júlio Dantas, pelo seu testemunho na Ideia Nacional, que ganha, assim, maior relevo.

O Manifesto Anti-Dantas representa também o culminar de uma animosidade antiga entre os modernistas e o autor d’A Severa. A 28/11/13, num texto sobre teatro publicado n’O Rebate, Mário de Sá-Carneiro refere-se ironicamente ao «genia[l] Sr. capitão-médico Dantas»; em Setembro de 1915 dedica-lhe a famosa quadra do poema Serradura, publicado por Almada no terceiro número de Sudoeste; sendo inúmeras as referências jocosas a Júlio Dantas presentes na sua correspondência com Fernando Pessoa: «o homem do Orpheu a assinar artigos na Ilustração ao lado do colega Dantas tem muito chiste não tem? Será descer – mas é com pilhéria» (Paris, 29/10/15); ou «viu a última Ilustração Portuguesa? […] vem […] lá uma página anunciando o número de Natal onde figuram os retratos dos colaboradores: Júlio Dantas, Augusto de Castro, etc., e... Mário de Sá-Carneiro, o homem do Orpheu! É fantástico! E podemos presumir que o nosso Dantas não deve achar a coisa muito bem...» (Paris, 12/12/15); e ainda, «pateada a Dantas publicamente – gente – do – Orpheu. Óptimo!» (Paris, 13/11/15). Quanto a Fernando Pessoa, encontramos já em 1913 pelo menos dois textos onde a figura de Júlio Dantas é parodiada. Em «Naufrágio de Bartolomeu», a propósito de Bartolomeu Marinheiro de Afonso Lopes Vieira, Pessoa escreve que «os homens do Portugal de amanhã», «educados na estupidez» e «levados ao anti-patriotismo», «terão por Shakespeare o Sr. Júlio Dantas, por Shelley o Sr. Lopes Vieira… e serão espanhóis» (Teatro: Revista de Crítica, 1/3/13). Num outro texto a propósito, nomeadamente, de Teatrália, publicação que apresenta colaboração dos professores da Escola da Arte de Representar, Fernando Pessoa refere-se ironicamente à revista, «iniciativa dos alunos da Escola da Arte de Representar» que não se «impon[do] como má […] tem claras pretensões a sê-lo», e ao «aluno» Júlio Dantas (Teatro: Revista de Crítica, 25/3/13). Já no âmbito da publicação de Orpheu, em 1915, Fernando Pessoa lamenta «a ignorância e incompetência dos nossos críticos, a incultura e a estupidez do nosso público, a indisciplina mental e o charlatanismo científico dos nossos pretensos homens de ciência», referindo «o Poetas e Pintores de Rilhafoles do Sr. Júlio Dantas» que «nem chega a constituir charlatanismo» (FP, Escritos sobre Génio e Loucura, p. 393).

O Manifesto Anti-Dantas e por extenso dirige-se explicitamente contra todos os Dantas de Portugal, contra um meio artístico e intelectual estéril e ultrapassado, incapaz de receber Orpheu senão com violência e escárnio. E assim, é enquanto «Poeta D’Orpheu / Futurista / E / Tudo» que Almada assina o seu texto, brandindo o estandarte futurista como mais uma provocação. Embora apresentado por um «Futurista / E / Tudo», o Anti-Dantas não assume os contornos nem de manifesto futurista, cujos princípios estruturais desrespeita, nem de manifesto do Futurismo, cujos ideais não proclama, adoptando no entanto elementos vários da poética futurista e aproximando-se formalmente da estética de vanguarda. Destinando-se à difusão de um programa determinado, os manifestos do Futurismo italiano usam os métodos da propaganda política, privilegiando uma linguagem persuasiva e sintética e assumindo um carácter essencialmente didáctico. O uso expressivo (plástico) da tipografia, a ausência de pontuação, ou o uso de onomatopeias – elementos característicos da poética futurista – são apresentados isoladamente e servem, geralmente, apenas como exemplo das teses defendidas. Ora o Anti-Dantas, para além de se apresentar totalmente redigido em caixas altas, apresenta uma página de rosto composta por tipografias várias cuja utilização não depende da esfera didáctica. O itálico, em «Futurista / E / Tudo», exprime graficamente o carácter jocoso e provocatório do futurismo de Almada, sendo usado, não no âmbito das suas habituais funções mas como signo puramente visual e portador de conotações novas. O aspecto gráfico do Anti-Dantas, em si, factor de provocação, não se destina a sublinhar o discurso propriamente dito do manifesto. A pequena mão negra que aponta , sinal tipográfico frequentemente usado na propaganda da época e que aparece seis vezes ao longo do texto, não mostra nem denuncia uma ideia chave, mas um ridículo «Pim !», servindo mais a derrisão que um propósito de compreensão. O mesmo se poderá dizer acerca das onomatopeias – «Basta Pum Basta»; «O Dantas […] Em Talento É Pim-Pam-Pum !» – que enfatizam o tom facecioso do texto. Ao adoptar alguns preceitos futuristas do ponto de vista da escrita, Almada reveste o Anti-Dantas dum vanguardismo provocador, defendendo, deste modo, a inovação literária de Orpheu contra a arte de «Todos Os Dantas».

Almada começa por atacar directamente Júlio Dantas, «Vergonha Da Intelectualidade Portuguesa», não só enquanto escritor – «O Dantas Saberá Gramática, Saberá Sintaxe, […] Saberá Tudo Menos Escrever Que É A Única Coisa Que Ele Faz !» – mas enquanto indivíduo – «O Dantas Nu É Horroroso», «O Dantas Cheira Mal Da Boca», etc. – imitando as popularíssimas nosografias da época, género de que o próprio Dantas se tornara especialista. Passa depois à crítica da primeira representação de Sóror Mariana, na origem do manifesto, fazendo pouco da peça em si mas também, indirectamente, de todos aqueles que, de perto ou de longe, contribuíram ao espectáculo. Sem nomear os alvos, o que seria desnecessário para qualquer leitor de 1916, Almada refere alguns grandes vultos do teatro português da época, nomeadamente, os actores Mário Duarte (futuro director da revista De Teatro), Mendonça de Carvalho e Maria Matos. Mas nisto não se «Resume A Literatura Portuguesa». Almada critica então abertamente Rui Chianca, Vasco de Mendonça Alves, Amílcar da Silva Ramada Curto, Urbano Rodrigues, André Brun, João Carlos de Melo Barreto, José Nunes da Mata, Faustino da Fonseca, Alberto Mário de Sousa Costa, todos eles, de uma maneira ou doutra, ligados ao meio teatral. Talvez porque para Almada o teatro seja uma arte onde «se reúnem todas as outras artes», «o escaparate de todas as artes». E é na verdade contra o estado de todas as artes e de toda a cultura portuguesa, que Almada Negreiros se revolta. Contra os jornalistas de «Todos Os Jornais», contra «Os Actores De Todos Os Teatros», contra «Todos Os Pintores Das Belas Artes E Todos Os Artistas De Portugal». Enquanto «Poeta D’Orpheu» insurge-se contra todos os que não souberam contribuir para o progresso da arte europeia, limitando-se a copiar modelos inúmeras vezes repetidos, e vendendo a sua arte aos aplausos de um público inepto ou de uma qualquer facção política. Almada posiciona-se contra «Todos Os Que São Políticos E Artistas» não deixando de aludir, com os «Menus Do Alfredo Guisado», ao afastamento deste colaborador de Orpheu, republicano convicto, em relação aos outros membros do grupo depois das intervenções de Raul Leal e Álvaro de Campos contra a figura de Afonso Costa, em Julho de 1915. A confusão entre arte e política em que Orpheu cairia pelas mãos de alguns jornais – sobretudo o República – é denunciada por Almada ao longo de todo o manifesto. Por um lado, ao citar nomes que, a par de Júlio Dantas, ocupavam paralelamente à actividade literária também cargos políticos de relevo. Por outro, criticando a consagração politizada de certos artistas – como o Dantas que «Ainda Apanha Uma Estátua De Prata Por Um Ourives Do Porto», alusão à mediática estátua de Afonso Costa mandada fazer em 1913 por um admirador – e de determinadas obras, como o Aljubarrota de Rui Chianca cuja estreia, a 1/12/12, suscitou por parte de «todas as classes do povo português», «ao verem ressurgidas e soberbas as figuras do nosso passado», «aqueles brados que solicitaram a Portuguesa, o acenar daqueles lenços, as aclamações que envolviam o presidente, figura simbólica e austera duma República digna» (A Capital, 13/12/12).

 

McNAB, Gregory, «Sobre duas intervenções de Almada Negreiros», in: Colóquio letras, n.° 35, Janeiro de 1977, pp. 103-110; SARAIVA, Arnaldo, «Pessoa “admirador” de Dantas? Dantas “admirador” de Pessoa?», in: Persona, n.º 4, Janeiro de 1981, p. 19; ALMADA NEGREIROS, José de, Manifestos e Conferências, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006.

 

Sara Afonso Ferreira