História da edição
Em vida, Fernando Pessoa publicou doze trechos do “Livro do Desassossego”. O primeiro foi “Na Floresta do Alheamento”, com a nota final “Do Livro do Desassossego, em preparação”, no nº. 20 de A Águia, datado de Agosto de 1913. Os restantes foram publicados, dois em 1929 (in A Revista. Propriedade da ‘Solução Editora’), um em 1930 (in Presença, nº. 27), cinco em 1931 (in Descobrimento, vol. I), e três em 1932 (in Presença, nº. 34, in Revolução e in Revista Editorial).
As publicações póstumas iniciaram-se em 1938, com um fragmento incluído na revista Mensagem (sob o título “Diário Lúcido”, da responsabilidade da revista, que igualmente atribuiu a autoria do texto a Vicente Guedes). Em 1960, Maria Aliete Galhoz publicou dez fragmentos na edição Aguilar da “Obra Poética”. Em 1961, Petrus (Pedro Veiga) reeditou em brochura autónoma, sob o título “Livro do Desassossego. Páginas Escolhidas”, todos os textos até então publicados. Entre 1961 e 1982, data da edição princeps da Ática, publicaram-se, em periódicos ou livros, mais dezanove textos inéditos.
Foi Jorge de Sena, então no Brasil, quem primeiro tomou, em 1960, a iniciativa de organizar e editar o “Livro”, proposta que foi aceite pela Ática. Devido a uma série de vicissitudes, o projecto nunca chegou a concretizar-se e em 1969, Sena, já radicado em Madison, foi forçado a desistir dele, tendo todavia deixado um notável estudo que seria o prefácio da obra, postumamente publicado na revista Persona.
Foi só treze anos mais tarde, em 1982, que a Ática publicou em dois volumes a edição princeps, sob o título “Livro do Desassossego por Bernardo Soares”,com organização e prefácio de Jacinto do Prado Coelho. A recolha e transcrição dos textos foi da responsabilidade de Maria Aliete Galhoz (que já havia colaborado no projecto de Jorge de Sena) e Teresa Sobral Cunha.
Em Portugal, o “Livro” voltou a ser publicado em 1986, por António Quadros (em duas edições diferentes, Lello & Irmão e Europa-América) e, num volume antológico, por Maria Alzira Seixo ((Editorial Comunicação); em 1990-1991, por Teresa Sobral Cunha, em dois volumes (Presença); em 1998, por Richard Zenith (Assírio & Alvim), com sucessivas reedições.
Salientem-se, entre as primeiras edições em línguas estrangeiras, em versões mais ou menos extensas relativamente à edição Ática: em 1984, a versão castelhana de Ángel Crespo (Seix Barral); em 1985, a versão alemã de Georg Rudolf Lind (Ammann Verlag); em 1986, a versão italiana de Maria José de Lancastre (Feltrinelli), a edição organizada no Brasil por Leyla Perrone-Moisés (Editora Brasiliense); em 1988, a primeira versão em francês, de Françoise Laye (Christian Bourgois); em 1991, em Inglês, as versões de Margaret Jull Costa (Serpent’s Tail), Alfred MacAdam (Pantheon Books, Nova York) e Iain Watson (Quartet Books, Londres) e a versão integral de Richard Zenith (Carcanet).
O “Livro” foi também traduzido, pela primeira vez, em Búlgaro (1997), Catalão (1990), Checo (1992), Dinamarquês (1997), Esloveno (2001), Finlandês (1999), Grego (1987), Hebraico (2000), Húngaro (1989), Neerlandês (1990), Norueguês (1997), Polaco (1995), Romeno (2000) e Sueco (1991). É mais um paradoxo pessoano a circunstância de, em muitos países estrangeiros, nomeadamente nos de língua inglesa, ter sido “O Livro do Desassossego” que revelou e desde logo consagrou Fernando Pessoa como prosador antes que poeta. As traduções mais recentes são, na sua generalidade, feitas a partir da versão de Richard Zenith (Assírio & Alvim) que é certamente a mais fiável das até agora publicadas.
George Monteiro escreveu que o Livro do Desassossego “is a post-modernist reader's dream. There is no single text for it and it now exists in several texts in the original Portuguese and in several texts in English translation". A edição do “não-livro” de Bernardo Soares levanta três tipos de problemas. À partida, a questão da autoria; depois, a identificação e escolha dos fragmentos a incluir no volume; e, finalmente, a organização ou arrumação dos textos.
Quanto à autoria, Teresa Sobral Cunha, na sua edição da Presença, separa a obra em dois volumes, atribuindo ao primeiro a dupla autoria de Vicente Guedes e de Bernardo Soares, com a justificação de que só em 1929 Soares aparece como “autor público e deliberado”. No segundo volume, inclui os fragmentos atribuíveis apenas a Soares. Na sua segunda versão, de que apenas foi publicado um volume (Relógio d’Água, 1997), Teresa Sobral Cunha atribui a respectiva autoria exclusivamente a Vicente Guedes. Todos os restantes organizadores do “Livro”, portugueses ou estrangeiros, assumem Bernardo Soares como único autor.
Em relação à selecção dos fragmentos, a grande dificuldade reside na identificação dos textos que Fernando Pessoa teria destinado ao “Livro”, para além daqueles que publicou em vida e dos inéditos que expressamente indicou como destinados à obra de Bernardo Soares. É típica desta dificuldade a epígrafe aposta por Pessoa a um fragmento: “A. de C. (?) ou L. do D. (ou outra coisa qualquer)”. Como salientou Richard Zenith, é notória a frequência com que Pessoa mudava as atribuições de autoria e os seus planos editoriais: “ mesmo os textos atribuídos a uma obra ou a um heterónimo podem suscitar dúvidas”. A inclusão de trechos descobertos no espólio de Pessoa que poderiam integrar-se no “Livro” é, assim, uma tarefa delicada, que depende exclusivamente do critério do organizador.
Relativamente à arrumação dos textos, os fragmentos que constituem a edição Ática, são ordenados "por manchas temáticas, sugerindo nexos e contrates pela simples justaposição". Jacinto do Prado Coelho previa, desde logo, que novas edições diferentemente planeadas viessem apresentar outras propostas não menos aceitáveis, de entre as quais o leitor escolheria aquela com que mais se identificasse.
Na sua edição Europa-América (1986), António Quadros propôs uma nova organização dos textos da edição Ática, dividindo-os em dois volumes separados correspondentes às duas fases da escrita do “Livro”: a fase inicial, até 1929, simbolista e decadentista, de Fernando Pessoa ele-próprio e a fase final de Fernando Pessoa-Bernardo Soares, essencialmente divagante, diarístico e confessionalista. Antecipando esta proposta, embora em termos mais restritos, a versão em Castelhano de Ángel Crespo (1985), tinha também separado os fragmentos nitidamente decadentistas, apresentando-os em apêndice do volume.
Leyla Perrone-Moisés salienta na introdução à sua edição do “Livro” (1986), que a organização era de carácter temático, embora não seguisse a mesma ordem da edição Ática. Esclarece, porém, que nada obriga o leitor a ler os fragmentos na ordem em que são apresentados: é mesmo possível pensar-se numa edição em páginas soltas, como cartas de baralho, que possam ser lidas em infinitos arranjos. Na esteira de Perrone-Moisés, Richard Zenith oferece nas suas edições uma arrumação assumida como subjectiva: esperando que o leitor invente a sua própria, aconselha que o “Livro” seja lido sempre fora de ordem, que é “a ordem correcta para ler esta coisa parecida com um livro”. Numa síntese feliz, um crítico brasileiro, Gustavo H.B. Franco, propõe que o “Livro do Desassossego” seja considerado como “uma espécie de BLOG avant la lettre”.
De todas as polémicas levantadas pela publicação póstuma da obra pessoana, as que se referem ao “Livro do Desassossego” são das que mais tinta fizeram correr. Logo após a publicação da edição Ática, Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho envolveram-se num debate sobre o critério de organização da edição. Em anos posteriores, as edições de Teresa Sobral Cunha (1991) e as de Richard Zenith (1991, em Inglês e 1998, em Português) deram origem a uma acesa polémica com vários intervenientes acerca dos critérios de inclusão e de arrumação seguidos em cada uma delas.
Bibliografia essencial
- Jorge de Sena, “Introdução ao ‘Livro do desassossego’”, in FERNANDO PESSOA & Cª. HETERÓNIMA (ESTUDOS COLIGIDOS 1940-1978). Lisboa: Edições 70, 3ª. ed. ,2000, pp. 145-206).
- Arnaldo Saraiva, “A edição do ‘Livro do Desassossego’”, in Persona 7. Porto: Centro de Estudos Pessoanos, Agosto 1982, pp. 58-60.
- Richard Zenith, “Introdução” , in FERNANDO PESSOA. LIVRO DO DESASSOSSEGO. COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA. Edição (...). Lisboa: Assírio & Alvim, 4ª. ed., 2007, pp. 9-36.
José Blanco