De todas as obras de Fernando Pessoa publicadas postumamente, o Livro do Desassossego foi aquela que mais influência exerceu na actual apreciação crítica do autor e na forma como é enquadrado no panorama literário e cultural do século XX. Enquanto a empresa heteronímica, tal como se manifesta na obra poética do autor, já equivalia à total negação do eu como sujeito coeso e estável — atitude de máximo radicalismo dentro do Modernismo português e europeu —, o aparecimento do Livro do Desassossego, um não-livro por excelência, fez de Pessoa uma espécie de pós-modernista avant la lettre. Não, entenda-se, pelo seu discurso, mas pela sua prática, pelo seu exemplo. Estava longe de dizer que «não há nada fora do texto» (il n’y a pas hors-texte), frase com que Derrida rejeitou a noção de significados firmes e autónomos, considerando que cada significado é imediatamente um significante apontando para outro significado, de modo que a linguagem é um sistema em fluxo permanente sem uma realidade independente dela a que possamos recorrer; porém esta concepção, sem o discurso, foi magistralmente exemplificada pelo Livro do Desassossego, feito de um número indeterminável de textos sem lugar certo, em constante rodopio — uma obra pré-desconstruída e supostamente escrita pela figura ambígua de Bernardo Soares, «semi-heterónimo» que paira entre o real e o irreal, mas cuja «vida», em todo o caso, é apenas devaneio verbal, um sonho-texto sem fim. Mesmo a sua profissão, ajudante de guarda-livros, obriga-o a escrever. E a profissão de Fernando Pessoa, enquanto escritor, não era menos inútil, segundo o seu próprio ponto de vista. Acreditava num mundo real independente das palavras — e mesmo em vários mundos (no plano espiritual) —, mas a sua realidade (o seu feitio) pessoal condenava-o a escrever poesias e prosas que, no seu entender, não podiam nunca dizer com justeza o que estava fora delas. Para ele, a própria ideia de um texto significativo era problemática, convencido como estava de que a expressão humana não passa de rabiscos e apontamentos aproximativos: «Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.» (Trecho 148 do Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 7.ª ed., 2007, a edição sempre citada neste artigo, salvo indicação em contrário.) O Livro do Desassossego é isto: intermináveis notas à margem, que vão disseminando dúvidas enquanto tacteiam em busca de uma verdade que nem sequer se sabe qual poderia ser.

Esta obra literária, como poucas ou talvez como nenhuma outra, consegue retratar a alma ocidental não apenas do período modernista, mas também, e mais pungentemente, da segunda metade do século, quando a fragmentação do mundo e das suas dimensões política, social e religiosa chegou a ser sentida como uma característica essencial e não apenas como uma circunstância conjuntural. A este respeito, é curioso constatar que a obra pertence, editorialmente, ao último quarto do século vinte, datando a sua primeira edição de 1982 (Lisboa, Ática). No ano seguinte, como se respondesse às pessoas que julgavam a heteronímia um jogo literário sem importância de maior, Eduardo Lourenço disse: «[O] que o Livro do Desassossego mostra não é o artifício intrínseco da Heteronímia, mas o labirinto sem saída de um heteronimismo original de que os heterónimos e a heteronímia clássica que para nós [o] incarnam são ainda, e apenas, superficial e inconsistente manifestação. Se não temesse o paradoxo chocante, até, de certo modo, a sua camuflagem.» (Conferência proferida em Nashville, 27-31/3/1982, publicada in Lourenço, Fernando, Rei da Nossa Baviera, Lisboa, IN-CM, 1986.)

A composição do Livro do Desassossego percorre quase toda a vida adulta de Pessoa, desde os seus 25 anos de idade até ao ano anterior à sua morte, pelo menos. Alguns projectos do autor datáveis da Primavera de 1913 já mencionavam o título e em Agosto desse ano foi publicado, na revista portuense A Águia, um longo trecho de teor simbolista intitulado «Na Floresta do Alheamento» e identificado como sendo «Do Livro do Desassossego, em preparação». Conquanto não publicasse mais nada do livro até 1929-1933, período em que onze trechos saíram em revistas, escreveu mais de duzentos trechos a ele destinados na década de 1910. Nos primeiros tempos, segundo o seu autor, os trechos escreviam-se quase que automaticamente, por impulsos repentinos, mais do que por ambição. Numa carta dirigida ao poeta Armando Cortes-Rodrigues, em 2/9/1914, caracterizou o livro como uma «produção doentia», que ia «complexamente e tortuosamente avançando», e em 19 de Novembro, para o mesmo amigo, escreveu: «O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.» Juntando as referências contidas nas duas cartas, poderíamos propor «fragmentos complexa e tortuosamente avançando» como uma justa caracterização do Livro em progresso — uma progressão que nunca chega a um término.

Os «fragmentos» eram-no em dois sentidos: 1) por serem unidades discretas que, embora sendo temática e estilisticamente relacionáveis com outros fragmentos, tinham — cada uma delas — perfeita autonomia; 2) por estas «unidades» serem, frequentemente, pouco unas, salpicadas de lacunas ou abandonadas a meio, sobretudo na fase inicial. Acresce o facto de o autor nunca ter estabelecido uma ordem para os cerca de 500 fragmentos que deixou, pelo que são infinitamente combináveis, segundo variados critérios, incluindo o da mera aleatoriedade. Mais: é impossível identificar com precisão todos os fragmentos, ou trechos, que pertencem ao Livro, pois o autor escrevia-os nos mais variados suportes, rotulando-os por vezes, mas nem sempre, «L. do D.», e tencionava, em todo o caso, fazer uma escolha, «rígida quanto possível, dos trechos variadamente existentes» (segundo um apontamento tardio, Livro, p. 489). Por estes diversos motivos, pode dizer-se, literalmente e não em sentido meramente metafórico, que o Livro do Desassossego é virtual, permanentemente instável e, em si mesmo, inexistente, só passando a ser um objecto com conteúdos e contornos — um livro real — no momento em que um organizador intervenha e faça uma escolha dos materiais susceptíveis de inclusão (sem saber ao certo quais o autor teria escolhido), impondo uma ordem ao material escolhido (que nunca coincidirá com a que o autor — altamente indeciso a este respeito — teria estabelecido).

Não parece que Fernando Pessoa tenha chegado a ter mais do que uma vaga ideia do género de livro que pretendia, e esta ideia ia mudando, sem seguir uma linha evolutiva recta. Era, com efeito, «complexamente e tortuosamente» que o projecto andava para a frente. Numa terceira carta a Cortes-Rodrigues, esta datada de 4/10/1914, Pessoa classificou o estilo do incipiente Livro como sendo «um novo género de paulismo» e trechos como «Na Floresta do Alheamento» — com as suas muitas frases terminadas em reticências, a sua aura crepuscular e a sua fluidez imagística, que mal disfarça uma estase ontológica de base — têm um óbvio parentesco com o poema «Pauis» e com o drama «O Marinheiro», também escritos em 1913 (tendo sido as duas obras revistas antes de serem publicadas, em 1914 e 1915). Vários dos primeiros trechos («Peristilo», «Nossa Senhor do Silêncio», «Glorificação das Estéreis»), mais acentuadamente do que «Na Floresta», preconizam a Mulher como pura ideia, adorada pela sua beleza e virgindade inúteis, pelo seu valor conceptual enquanto «matéria» de sonho, eternamente intocável. «Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador», começa uma «Carta» a uma dessas senhoras etéreas. Mas a par de fragmentos «paúlicos» como estes, exacerbadamente simbolistas em tom e rebuscadamente vagos, surgem trechos que retratam o mundo real com extrema minúcia (alguns intitulados «Paisagem de Chuva», por exemplo) e também a paisagem interior — as sensações — do narrador. O trecho que principia «A manhã, meio fria, meio morna» descreve tanto o acordar da cidade de Lisboa como o despertar do autor implícito, enquanto vai num carro eléctrico em direcção ao cais. Há trechos que teorizam sobre como sentir intensamente («Educação Sentimental», «Milímetros (sensações de coisas mínimas)»), outros sobre a «Maneira de Bem Sonhar». Um impulso didáctico, frequente em Pessoa, manifestou-se cedo no Livro do Desassossego, cujas lições se destinavam não apenas a nós, que as lemos, como a quem as escreveu, como se de um manual para uso próprio se tratasse. O Livro do Desassossego é uma autobiografia menos descritiva do que prescritiva e, mais ainda do que prescritiva, pré-escrita, como se o acto de dizer equivalesse ao de fazer, ao de viver.

Pessoa elaborou, entre 1913 e 1915, uma meia dúzia de pequenas listas de trechos para o Livro (ver apêndice à Obra Essencial, v. I, Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006). Numa delas surge a indicação «Diário», que era um outro território por onde os fragmentos foram avançando, e que acabaria por dominar o livro. Datáveis ainda da década de 1910, há um «Diário ao Acaso» e um «Diário Lúcido», aos quais o autor talvez tenha pensado dar continuidade, mas que ficaram pelo caminho, limitando-se cada um deles a registar o desassossego de apenas um dia. O acaso e a lucidez afirmaram-se, no entanto, como duas marcas de estilo («o devaneio e o desconexo lógico», diria Pessoa noutras palavras, no já referido apontamento tardio) do Livro, que tendia, cada vez mais, a ser um diário onde as mais variadas reflexões podiam encontrar abrigo.

Que o desassossego retratado no Livro era aquele — ou se inspirava naquele — que o próprio autor sentia parece ser confirmado pelo facto de ele ter querido incluir, nas suas páginas, passagens de uma carta pessoal dirigida à mãe (datada de 5/6/1914) e de uma outra dirigida a Mário de Sá-Carneiro (14/3/1916). Porém a obra, que fora inicialmente assinada por Pessoa, passou a ser atribuída a Vicente Guedes em 1915, ou talvez ainda em 1914. Vicente Guedes (ver), personagem literária surgida por volta de 1909 como poeta, contista e tradutor, «abandonou» estas actividades em benefício da sua nova incumbência — ganhando, com ela, uma existência biográfica: «ajudante de guarda-livros» e morador num 4.º andar da Baixa lisboeta. Para ele, «ter consciência de si foi uma arte e uma moral; sonhar foi uma religião» (Livro, textos AP2-AP3). A evidência dos manuscritos sugere que o Livro do Desassossego entrou num estado de dormência a partir de 1921, para ressurgir oito anos depois, ora assinado por Bernardo Soares (ver), que teve a mesma profissão que o seu antecessor, a mesma requintada consciência de si próprio e a idêntica febre de sonhar como se fosse uma religião.

Metade dos trechos pertencentes ao Livro foi escrita entre 1929 e 1934, período áureo não apenas em termos quantitativos mas também pela beleza e genialidade da prosa produzida. Dos mais de cem trechos datados desta fase, o último foi redigido em 26/7/1934, parecendo que o Livro voltou então a hibernar. É provável, no entanto, que o autor ainda tenha escrito um ou outro trecho não datado, no próprio ano de 1935, pois na supracitada carta a Adolfo Casais Monteiro (escrita em 13/1/1935) alude a Bernardo Soares como uma personagem em actividade, que ainda lhe «aparece» de vez em quando.

Antes de morrer, Pessoa reuniu, num grande envelope, aproximadamente 300 trechos para eventual inclusão no Livro do Desassossego — «eventual», devido à «rígida» escolha que tencionava fazer entre todos os trechos que escreveu. Ao longo de décadas, investigadores têm localizado outros trechos explicitamente associados ao Livro, normalmente por ostentarem a sigla «L. do D.». Os cerca de 500 trechos existentes dividem-se, em partes mais ou menos iguais, pelas duas grandes fases: 1) 1913-1920, que inclui trechos simbolistas, por vezes extensos e geralmente com títulos, outros trechos de carácter diarístico, e outros difíceis de rotular; 2) 1929-1934, que consiste geralmente em textos susceptíveis de pertencerem a um diário de reflexões (e não de coisas ditas e feitas), embora haja um ou outro trecho (aquele datado de 28/11/1932, por exemplo), que tem o perfeito sabor simbolista do início da primeira fase. Quase nenhum trecho da primeira fase se encontra datado, ao contrário de quase metade dos trechos da última fase.

Pessoa reconheceu as dificuldades inerentes à reconciliação das duas fases num único livro (sendo talvez por isso que Bernardo Soares escreveu alguns trechos à maneira da fase antiga, como para lançar uma ponte entre uma e outra) e chegou a propor que os «trechos grandes, classificáveis sob títulos grandiosos, como a Marcha Fúnebre do Rei Luís Segunda da Baviera», fossem publicados num livro à parte (Livro, apontamento no Apêndice, p. 489). As edições do Livro do Desassossego organizadas por Richard Zenith agrupam os «Grandes Trechos» numa secção à parte, que se segue à secção principal, em que o restante material da primeira fase se mistura com os trechos da segunda fase. As edições de Teresa Sobral Cunha (uma das responsáveis, juntamente com Maria Aliete Galhoz, pela recolha e transcrição de trechos para a edição princeps, org. Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982) esforçaram-se por apresentar os trechos cronologicamente, dividindo-os em dois volumes (ou duas secções) diferentes, sendo o primeiro atribuído a Vicente Guedes e o segundo a Bernardo Soares (sobre a questão da pseudo-autoria do Livro, ver Bernardo Soares). Esta investigadora aumentou muito o corpus do Livro do Desassossego, acrescentando numerosos textos que não lhe tinham sido explicitamente atribuídos por Pessoa (que, como é sabido, nem sempre identificava o destino dos poemas e textos em prosa que escrevia). Zenith, seguindo um critério mais conservador, acrescentou relativamente poucos textos que só conjecturalmente fazem parte da obra e, no caso da Obra Essencial de Fernando Pessoa, vol. I, Livro do Desassossego, restringiu o corpus aos trechos cuja inclusão não levanta dúvidas.

Fragments d’un journal intime, de Henri-Frédéric Amiel (1821-81), autor suíço várias vezes referido no Livro do Desassossego, foi de algum modo uma inspiração para esta obra (mais pelo conceito de um «jornal íntimo» do que pela maneira como foi concretizado), o mesmo acontecendo com autores como Rousseau e Chateaubriand. Embora tonalmente diverso e tematicamente mais dispersivo, o Livro do Desassossego tem sido comparado com Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, romance de Rilke (1875-1926) principalmente constituído por reflexões e com um forte pendor autobiográfico. Publicado em 1910, não se afigura que Pessoa tenha chegado a ler esta obra (traduzida para francês, pela primeira vez, em 1923 e para inglês em 1930). Tão-pouco terá lido Italo Svevo (1861-1928), cujos protagonistas — particularmente o do romance A Consciência de Zeno (1923) — convidam a aliciantes comparações com Bernardo Soares, pelo seu sentimento comum de serem irremediavelmente uns inadaptados da «normalidade» da vida.

(Ver Leyla Perrone-Moisés, «A Prosa do Desassossego», in Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 2001; «O “Livro do Desassossego” Texto Suicida?», in Fernando, Rei da Nossa Baviera, Lisboa, IN-CM, 1986; R. Zenith, «Introdução» ao Livro do Desassossego, 7.ª edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.)

 

Richard Zenith