A 15 de Abril de 1930, o conde Hermann de Keyserling, convidado pela Junta de Educação Nacional (dirigida por Agostinho de Campos, depois de ter exprimido a Alberto de Oliveira, ministro em Roma, a vontade de visitar Portugal), chega a Lisboa, para pronunciar três conferências animadoras de ideias que os jornais ecoaram em artigos assinados por Simões Dias, Vitorino Nemésio e outros. À primeira conferência, pronunciada na Soc. de Geografia, a 16, sob o título A Alma de uma Nação, seguem-se mais duas, a 21 e 22, partindo depois para o Porto, onde pensadores como Leonardo Coimbra e Santana Dionísio o escutaram. F. P. escutou certamente a primeira, pois escreve uma carta a Keyserling datada de 20 de Abril, e deve ainda ter lido os relatos jornalísticos bem desenvolvidos.
Na recepção oferecida na Academia das Ciências, a 15, Joaquim de Carvalho discursou realçando a importância da sabedoria, «tensão infatigável, sinónimo de uma qualidade espiritual, onde a inteligência e a vida se fundem, num centro irredutível a todo o exclusivismo, sempre sinónimo de limitação», concordando com Keyserling que «é de uma educação espiritual que o homem do nosso século carece», elogiando a escola da Sabedoria fundada por ele: «nos já vastos tipos de instituições escolares que a cultura europeia tem conhecido, a Escola de Sabedoria é a primeira escola onde se ministra um ensino sem conteúdo. Ninguém a demanda para aprender: sob a influência da personalidade desperta-se e intensifica-se o pensamento, e, acima de tudo, se forma uma orientação espiritual, sem cânones». Enalteceu ainda tanto as palavras de Keyserling, vindas de «quem compreende a sua vida como uma missão», inserindo-as nas vozes que se elevam contra «as pretensões do pensamento racional, crítico e analítico, como a sua visão «do primado da vida, libertada pela compreensão e espiritualizada pelo sentido», lembrando por fim o sentido universal de Portugal e «que se fomos os primeiros a ocidentalizar o Oriente, fomos também os primeiros a compreende-lo sem perder a nossa essência», dando o exemplo de Wenceslau de Morais.
Keyserling, ao agradecer as palavras, aceita este enunciado final de Joaquim de Carvalho e afirma, segundo o relato do Diário de Notícias de 16, que «nas poucas horas da sua presença em Portugal sentia-se já mais português do que suponha. Referindo-se ao pensamento português, afirmou que ele era, sobretudo, realista, apesar do seu romantismo. Assim como ele, orador, viajava, para se ampliar em matéria de conhecimentos, assim os portugueses foram para as descobertas, não por motivos de ordem material, mas sim para dilatarem a sua espiritualidade. E, assim, o português é um verdadeiro criador de almas».
Filósofo alemão, reformador prático do espírito, como se intitulava, fundador em 1919 da Escola de Sabedoria, ou Sociedade de Filosofia Livre, em Darmstaad, figura mundial graças aos seus livros de filosofia espiritual, de viagens e análises do que observava e compreendia, então com 46 anos de envergadura avantajada, foi bem recebido e os seus discursos realçaram a sua visão ou intuição da passagem da humanidade das épocas da crença e da ciência, ambas cegas, para a da compreensão em que o homem conhecendo-se a si próprio acabará por dar a plenitude espiritual ao desenvolvimento material, «realizando na Terra a nossa missão – essencialmente, fundamentalmente espiritual». O Espírito de um povo é apresentado como tensão, como «associação profunda do sentir, pensar e querer dos homens», que serve o sentido de vida nacional.
Considerado um ecuménico, conhecendo o Oriente e as suas visões e perspectivas, ainda que com limitações bem patentes em algumas apreciações do seu valioso e original Diário de viagem de um Filósofo, Keyserling, pensa que a humanidade não está já num estado de decadência mas sim de juventude e portanto, de renovação, de criatividade, de novos sentidos. Considerando-se um chefe de orquestra do espírito, queria que os seres humanos «se tornassem «conscientes da sua missão no mundo, capazes de exprimir pelos seus actos o sentido cósmico que as suas vidas comportam», pois assim «mais ricas serão as culturas que tais homens ajudem a constituir».
Ora a carta escrita mas provavelmente não endereçada por F. P. a Keyserling, em francês, dactilografada em três páginas e assinada enigmaticamente por um O. S., que tanto poderia ser Ordo Solis ou Sanctissimorum, como surge desdobrada em alguns fragmentos, mas que mais acertadamente é a Ordem Sebastianista (tanto mais que na mesma altura, a propósito da homenagem em Silves a Al-Motamide, F. P. assinava uma nota assinada com O. S., surgindo no texto a Ordem Sebastianista, 125-1), acabou por ser apenas publicada em 1988, no livro que então escrevi e intitulei A Grande Alma Portuguesa. Nela,F. P. não questiona tanto o que Keyserling disse como os seus pressupostos e bases: «Viestes a Portugal para compreender - nós teríamos preferido que fosse para conceber – a alma portuguesa. Muniste-vos da preparação ilógica para o fazer? Seria suficiente que estivesse munido do conceito da alma como tripla – comum aos platonizantes e aos cabalistas, como a outros (...) Que Portugal pensa ter podido ver? Há três e tudo está lá (...) Da terceira alma portuguesa feita de inteligentes e de entendedores, nada há a compreender. Quanto à primeira alma portuguesa, se a vossa intuição é subtil, tê-la-eis adivinhado. Talvez a tenhais mesmo deduzido da paisagem e da luz, mais até do que a aprendido nas próprias almas. Nisto tudo, viu bem, mas não tereis visto que o visível. O Portugal essencial – a Grande Alma portuguesa, em toda a sua profundidade aventurosa e trágica – foi-vos velada». Anote-se que esta tríade anímica surge de modo semelhante em textos como os dos três tipos de portugueses, apontando a génese do português essencial, ou «imperial», ao tempo de D. Dinis (55H-9). E continua a carta, explicando quem é, como nasceu, quais as transformações e o futuro da segunda alma, que é a Grande Alma portuguesa e que, de aventura material e conquista de costas, passará a uma aventura suprareligiosa que culminará de então a 200 anos. Termina exprimindo a «nossa simpatia intelectual. O. S.»
Anote-se que num texto anterior, F. P. aventava mesmo a data de 1924, segundo certas profecias, «para o Grande Regresso, em que a Alma da Pátria se reanimará (...) e se começará a realizar aquela antemanhã ao Quinto Império, justificando-o pelo «sebastianismo, hoje mais vigoroso que nunca, na assombrosa sociedade secreta que o transmite, cada vez mais ocultamente, de geração em geração» (125-2). Quanto à grande Alma portuguesa, que «nos vinha de mistérios antigos e de sonhos antigos (...) herdeira da divindade da alma helénica» e que urge reavivar ou reassumir é noutros textos significativos invocada, com as outras raízes, tal a árabe, «a alma árabe é o fundo da alma portuguesa» (48H-23), ou a cristã: «que Portugal tome consciência de si mesmo (...) Entregue-se à sua própria alma. Nela encontrará a tradição dos romances de cavalaria, onde passa próxima ou remota, a Tradição Secreta do Cristianismo, a Sucessão Super-Apostólica, a Demanda do Santo Graal» (125A-23). Assim, F. P., tão sensível à Alma da Pátria(«guardo na alma da alma/ a minha alma de português», ou ainda «Amor da Pátria – amor místico e santo/ Porque se compreende e não se explica -»), tentando-a revificar pelo Sebastianismo, o Quinto Império, a Ordem Templária de Portugal e a Mensagem, não poderia deixar de criticar em Keyserling a ignorância desse profetizado e esperado «Portugal que se levanta/ Do fundo surdo do Destino, E como a Grécia, obscuro canta/ Baco divino.// Aquele inteiro Portugal, Que universal perante a Luz/ Reza, ante a Cruz universal,/ ao Deus Jesus» (16-8).
De realçar que em 1932, na revista Descobrimento, dirigida por José de Castro Osório e na qual F. P. colaborava e interagia, saíam (já depois de publicadas na Revista de Occidente madrilena) as impressões psicológicas recolhidas por Keyserling, e que iriam constituir a parte consagrada a Portugal, da 2ª ed., do seu livro Analyse Spectrale de l’Europe, numa tradução portuguesa de Osório de Oliveira, autor de uma Psicologia de Portugal e outros ensaios (que se encontra na biblioteca de F.P.), onde, falando de Keyserling, aceita o seu carácter improvisador, mas dotado do sentido das coisas fundamentais, considerando porém o seu olhar europeu sobre Portugal insuficiente, dada a universalidade da nossa expansão e relacionamento.
As reacções não se fizeram esperar (às quais F. P. se tinha antecipado...), o que levou a direcção da revista a publicar uma nota explicativa e uma resposta de Keyserling, sobretudo a Agostinho de Campos (autor de um sugestivo livro Jardim da Europa, sub-intitulado Casos, Tipos, Aspectos de Portugal. Meditações e Heresias de um Português), que o acusara de ser um aventureiro intelectual «que precisa de vender o seu jornal», explicando que o espelho pouco lisonjeiro que apresentava de cada país era para os obrigar a reagir. E por fim saiu mesmo, num número posterior, um ensaio do director da revista, Castro Osório, sobre Portugal visto da Europa. O que é um facto é que na 2ª ed. da obra em causa, as últimas vinte linhas do capítulo («mal estudado, feito à pressa», segundo A. Campos) sobre Portugal foram cortadas, aquelas que referiam, por exemplo, que os portugueses «viviam de ilusões e de imagens do desejo. Identificam-se como povo, com as grandes individualidades da sua história, que, naturalmente já em vida eram excepções, não tendo nenhum Português de hoje o direito de se comparar com eles. Não querem convencer-se de que o facto de terem grandes possessões coloniais é um simples acaso: se a Inglaterra não tivesse interesse na sua conservação, elas já não existiriam e nenhum português moderno poderia criar um império colonial», afirmações estas, entre várias outras, que ferindo o patriotismo português talvez impulsionassem algumas das reacções, entre as quais se destacam as críticas bem fundamentadas de Celso (superficial e «padece de uma grave incontinência de palavras») e de Júlio Dantas («deixemo-lo pois, passar tranquilamente pelo mundo, trazendo a “Escola de Sabedoria” na algibeira – porque a escola é ele só») que expuseram também algumas das contradições da vida, obra e metodologia de Keyserling.
Anote-se por fim, que embora não haja qualquer livro de Keyserling no que restou da biblioteca de F. P., a sua vasta e desigual obra sobre a alma dos seres e dos povos, ainda que com as limitações de nem sempre haver o domínio profundo das histórias e culturas em causa, mereceria a simpatia intelectual expressa cortesmente por F. P. no final da carta, como aliás sucedera com mestres como Rabindranath Tagore ou Nicolas Berdiaef que elogiaram as capacidades e realizações do fundador da escola de Sabedoria, ainda hoje viva e nas mãos da família.
Bibliografia temática: obras de Keyserling, Jaime Cortesão, Sampaio Bruno, João de Castro Osório, Agostinho da Silva, Dalila Pereira da Costa, António Quadros, António Telmo, e o ensaio de Eduardo Frias, O Nacionalismo Místico de Fernando Pessoa, Braga, 1971, no qual compara Keyserling e F. P.),