Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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O filósofo alemão Immanuel Kant teve um papel bastante ambivalente na obra de Fernando Pessoa. Por um lado, Pessoa reconheceu em Kant uma das figuras mais relevantes na vida intelectual da Alemanha. Assim, Pessoa identificou nas terras alemãs, especialmente depois de Lutero, um “movimento de ordem intelectual, cujas figuras culminantes são Goethe e Kant.” (F. Pessoa, Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, Ática, Lisboa 1980, p. 42). Por outro lado, verificamos que Kant aparece na obra de Pessoa (da mesma maneira como na obra de Friedrich Nietzsche) como um género de bête noire. Esta relação complexa conduziu Pessoa (António Mora) a planear escrever uma espécie de “contrathese á Critica da Razão Pura de Kant”, acompanhada pela tentativa em reconstruir novamente as bases teóricas para um “objectivismo pagão” (F. Pessoa, Obras de António Mora, INCM, Lisboa 2002, p. 161). O motivo principal para esta oposição pode ser designado por filosófico, tal como, de uma certa maneira, religioso. Recorrendo particularmente ao “subjectivismo” de Kant, Pessoa (António Mora) entendeu o filósofo de Königsberg como um pensador algo perto do cristianismo: “Kant foi cristianissimo. (…) Da metaphysica de Kant alhures trataremos. Basta que se note o seu centralizar na alma tudo. O subjectivismo christão levado a theoria maxima (…).” (F. Pessoa, Obras de António Mora, INCM, Lisboa 2002, p. 264).

            Para estabelecer e divulgar o “objectivismo pagão”, o filósofo António Mora “passava a vida a mastigar Kant e a tentar ver com o pensamento” (F. Pessoa, Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, Estampa, Lisboa 1997, p. 74) para depois argumentar ferozmente contra a filosofia deste pensador alemão. A contraposição pessoana pode ser explicada sobretudo através de dois problemas essenciais na metafísica kantiana. Em primeiro lugar, estamos confrontados com a célebre perspectiva de Kant a partir da qual apenas podemos ter um conhecimento a priori, ou seja apenas um conhecimento de coisas que se encontram dentro do tempo e têm extensão no espaço. Em segundo lugar, não temos a capacidade de conhecer as coisas como elas verdadeiramente são. O nosso conhecimento baseia-se na forma como as coisas nos aparecem, ou na maneira como nós pensamos subjectivamente sobre elas. Isso significa que não podemos entender a coisa “em si” (Noumena), mas sim apenas como a coisa nos aparece. Só podemos conhecer um objecto tal como nos é dado através das nossas sensações. Trata-se de um raciocínio que provocou talvez em Pessoa uma das suas primeiras dúvidas em relação à existência de Deus. Embora exista a ideia de Deus, o mesmo não pode ser entendido através das nossas sensações. Ou seja, a nossa razão não tem a capacidades de chegar, através das sensações, à existência de Deus. Pessoa percebeu esta conclusão lógica perfeitamente. Isto significa que, enquanto toda a nossa razão se baseia simplesmente nas nossas sensações, todas as provas sobre a existência de Deus não passam de meras especulações: “O que Kant constatou foi que a ideia de Deus existe. O que não podemos dizer é se a essa ideia corresponde uma realidade ou não, e se uma realidade corresponde, se essa realidade é exactamente como a ideia.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos II, Ática, Lisboa 1968, p. 162).

            Para além disso, no caso do “idealismo transcendental” de Kant, o mundo exterior é sempre uma imaginação “subjectiva”. Esta conclusão torna-se para Pessoa (António Mora) problemática, tendo em conta que o mundo exterior, entendido como uma imaginação “subjectiva”, significa ao mesmo tempo uma realidade que apenas existe através da consciência singular de cada um. Isto é, a consciência subjectiva tem de ser considerada automaticamente como uma realidade. Neste caso, atribuiríamos à consciência automaticamente os atributos da realidade, e assim a realidade só pode existir através da consciência: “Dos erros que consistem em attribuir á Consciencia as qualidades da Realidade, o principal e mais grave é aquelle que, sobretudo desde Kant, corre na philosophia como o seu insophismavel principio basilar – o de que a Realidade existe, senão apenas, por certo que primariamente, atravez da Consciencia.” (F. Pessoa, Obras de António Mora, INCM, Lisboa 2002, p. 296).

Todavia, o problema filosófico continua para Pessoa na questão sobre a existência de uma realidade independente da nossa consciência. Ou seja, como podemos conhecer objectivamente a realidade? Como será possível atingir um conhecimento da realidade que não é dominado pela nossa consciência subjectiva? Embora se possa encontrar uma resolução para esta questão na “contrathese á Critica da Razão Pura de Kant” de António Mora, uma resposta mais adequada revela-se num lugar relativamente inesperado. Ou mais exactamente, uma resposta concreta encontra-se na poesia de Alberto Caeiro que parece às vezes quase uma reincarnação desta “contrathese”. Para verificar este argumento, precisamos simplesmente de relembrar uma conversa entre os heterónimos, registada por Álvaro de Campos nas suas Recordações. Esta conversa foi um encontro de “todos os do grupo”, e o assunto principal da discussão foi o conceito da realidade. Através da filosofia kantiana, uma coisa pode teoricamente apenas existir enquanto é reconhecida pelas funções da razão. Estas funções da razão (qualidade, quantidade, relação, modalidade) baseiam-se nas doze categorias necessárias (tal como negação, possibilidade, pluralidade, necessidade, unidade, causa, efeito, etc.) que ajudam a distinguir um objecto do outro. Porém, estas categorias não fazem parte do objecto em si. Ou seja, estas categorias não têm existência própria: elas existem simplesmente dentro da “razão pura”. Assim, as categorias ajudam na percepção do objecto em si, embora este mesmo exista independentemente da nossa razão e das nossas sensações que servem, no caso de Kant, apenas como um conhecimento empírico. Assim, as sensações não são comparáveis à experiência prática. No caso de Alberto Caeiro, a relação parece ser a contrária e as sensações tornam-se fonte principal do conhecimento. Neste caso, a poesia de Caeiro sugere que são exactamente os objectos que são portadores das categorias. Embora Pessoa utilize a palavra atributo em vez de categoria, e embora (ao contrário de Kant) não reconheça a realidade como uma categoria, ele explica a “contrathese” na sua conversa pessoal com Caeiro da forma seguinte: “(…) v. está a elaborar uma filosofia um tanto ou quanto contrária ao que v. pensa e sente. V. está a fazer uma espécie de kantismo seu – criando uma pedra-noumenon, uma pedra-em-si. (…) Para Kant esses atributos – peso, tamanho (não realidade) – são conceitos impostos à pedra-em-si pelos nossos sentidos, ou, melhor, pelo facto de que observamos. V. parece indicar que esses conceitos são tão coisas como a própria pedra-em-si. Ora isso é que torna a sua teoria difícil de compreender, ao passo que a de Kant, verdadeira ou falsa, é perfeitamente compreensível.” (F. Pessoa, Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, Estampa, Lisboa 1997, p. 62). Este raciocínio tem uma importância enorme em toda a obra pessoana. Embora Pessoa nunca tenha estabelecido qualquer sistema filosófico, podemos encontrar esta concepção repetidamente na sua obra. Assim, António Mora escreve por exemplo: “Longe de os objectos estarem dentro das minhas sensações, as minhas sensações é que estão dentro dos objectos.” (F. Pessoa, Obras de António Mora, INCM, Lisboa 2002, p. 292).

Sumariamente podemos afirmar que Caeiro representou, involuntariamente, uma clara contraposição à filosofia de Kant. Ao contrário de Kant, o objectivo filosófico de Pessoa consiste na tentativa em restabelecer novamente as sensações (sem intervenção da nossa razão subjectiva) como fonte principal da experiência e do conhecimento. O grande veículo para este objectivo é Caeiro que representa quase uma negação completa de toda a filosofia idealista que dominou, a partir de Kant, durante muito tempo a vida intelectual no ocidente. Neste sentido, podemos ler alguns versos do mestre Caeiro como verdadeiros manifestos anti-kantianos, tais como: “O que nós vemos das cousas são as cousas. / Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? / Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos / Se ver e ouvir são ver e ouvir? / O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê, / E nem pensar quando se vê / Nem ver quando se pensa.” (F. Pessoa, Alberto Caeiro – Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa 2001, p. 58). E, finalmente, é possível verificar que este conflito com Kant representa em Pessoa uma parte importante para o desenvolvimento geral do fundamento filosófico-poético-estético da sua obra, o que se torna ainda bastante visível nos pilares do seu sensacionismo: “1. Todo objecto é uma sensação nossa; 2. Toda arte é a conversão de uma sensação em objecto; 3. Portanto, toda arte é a conversão de uma sensação numa outra sensação.” (F. Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Ática, Lisboa 1966, p. 168). Neste sentido, a obra de Fernando Pessoa seria hoje completamente diferente se não tivesse existido esta confrontação intensa com o filósofo alemão Immanuel Kant.

 

BIBLIOGRAFIA

Dix, S., “O Poeta «animated by philosophy» ou A Admiração perante a Existência do Universo”, in: Dix, S. e Pizarro, J. (org.), A Arca de Pessoa, Lisboa 2007.  

 

 

Steffen Dix