(1856-1933)

John Mackinnon Robertson, jornalista, crítico literário, ensaísta erudito e político liberal, figura de proa do movimento racionalista e secularista britânico, foi um dos autores mais lidos e respeitados por Fernando Pessoa, em cuja biblioteca estava representado com mais de duas dezenas de livros. Robertson foi autor de prolífica obra, algo esquecida desde a sua morte, em que abundam os estudos literários, sociológicos, económicos, históricos e políticos. Sucedeu a Charles Bradlaugh à frente do National Reformer, órgão da National Secular Society. Nesta Robertson colaborou estreitamente com a livre-pensadora feminista Annie Besant - que mais tarde se ligou ao movimento teosófico e de cujas obras Fernando Pessoa seria leitor e até tradutor (Os Ideais da Teosofia, Lisboa, 1915). Como aconteceu com outros autores, as obras de Robertson foram, em geral, objecto de anotações à margem por Pessoa, o que mostra ter este sido um leitor fiel, mas não acrítico, ao longo de mais de um quarto de século. Aparecem referências esparsas a Robertson em vários escritos de Pessoa e, inclusive, num poema ao gosto republicano radical do pseudónimo pessoano Joaquim Moura Costa, com data de Junho de 1910 (publicado por Teresa Rita Lopes em Pessoa por Conhecer. II - Textos para um novo Mapa, Lisboa, 1990, p. 222), glosando o tema eminentemente robertsoniano do mito de Jesus:

 

Esse tal Robertson, diz Jesus Cristo

Ao seu divino Pai,

Tem o ousio de dizer que eu não existo.

 

Deixa-o, disse Deus Padre. Eis a verdade:

Tal pai tal filho; é natural assim.

Esse não existires é qualidade

Que tu herdas de mim.

 

Entre as obras de Robertson lidas por Pessoa saliente-se a compilação de estudos de mitologia comparada Christianity and Mythology (1900), uma  Short History of Christianity (1902) e, ainda do mesmo período, Pagan Christs (1903), bem como as posteriores The Historical Jesus (1916) e Jesus and Judas (1927). Todas estas obras põem em causa a existência histórica de Jesus e fazem de Robertson uma referência clássica das “teorias do mito de Jesus”, cujas origens remetem para o filósofo alemão Bruno Bauer. Foi à obra de Robertson, que Pessoa foi buscar os termos cristismo e cristista ¾ que tão frequentemente usaria nos escritos “neo-pagãos” de Ricardo Reis e António Mora, em textos do ortónimo e, inclusive, no Livro do Desassossego ¾ bem como o tema, igualmente glosado por Pessoa, da associação do cristianismo à decadência do império romano ou à ideia de degenerescência da civilização europeia, se o não retomou directamente de Edward Gibbon (sobre o qual existe na biblioteca pessoana um ensaio da autoria do próprio Robertson). Pessoa tinha também na sua biblioteca, numa edição de 1903, o Abrégé de l’origine de tous les cultes, de Charles-François Dupuis, um racionalista erudito francês do século XVIII que influenciou a mitologia comparada de Robertson. Terá sido, igualmente, nas obras de Robertson que Pessoa adquiriu muitos dos seus conhecimentos sobre mitologia e simbologia religiosa, cultos pagãos da antiguidade ou seitas gnósticas dos primeiros séculos do cristianismo. Das restantes obras de Robertson que Pessoa leu saliente-se uma história do livre-pensamento, A Short History of Freethought Ancient and Modern (1915); a obra The Dynamics of Religion: an Essay in English Culture History (em edição de 1926); ensaios de ética (1903); dois volumes de ensaios de sociologia (1904); um estudo sobre o papel do espírito científico na evolução dos Estados e da moral política (1912); quatro estudos sobre Shakespeare (de 1913 a 1930); uma biografia do líder do movimento racionalista e político liberal Charles Bradlaugh (cujo pseudónimo, “Iconoclasta”, o jovem Fernando Pessoa utilizou para um projecto de jornal por volta de 1910); enfim, ensaios sobre os escritores e pensadores William Archer, Tennyson, Browning, Carlyle, Emerson, Ruskin, Stuart Mill, Spencer, etc. As áreas temáticas contempladas são um indício da vasta influência de Robertson sobre Pessoa, embora no quadrante do pensamento racionalista e liberal essa influência se tenha articulado com a de vários outros autores ¾ predominantemente ingleses, mas também franceses, alemães, etc. À cabeça deles seria necessário apontar Herbert Spencer, que deixou profunda marca no pensamento filosófico, socio-económico e político de Fernando Pessoa, em particular no seu liberalismo ultraindividualista e anti-estatista. Em Robertson interessou sobretudo a Pessoa, ao lado da vasta erudição (de um autodidacta como ele), a faceta de livre-pensador e polemista de temas religiosos, mitológicos e literários. O seu criticismo antropológico e sociológico da religião alimentou o anti-cristianismo do jovem Pessoa e o anti-catolicismo que continuou a irromper nos escritos pessoanos da maturidade. O pensamento de Pessoa continha, não obstante, desde cedo, um veio essencial por ele próprio designado “espiritualista” ou, na esteira do poeta e pensador americano Ralph Waldo Emerson, “transcendentalista”. Passando ¾ como os contemporâneos modernistas Ezra Pound, Yeats e muitos outros ¾ por diversas influências esotéricas detectáveis nas suas leituras (Swedenborg, teosofia, espiritismo, astrologia, “experimentalismo psíquico”, etc.), o espiritualismo de Pessoa foi principalmente vertido nos moldes maçónico, rosicruciano e templário que o aproximarão, na fase de plena maturidade, duma versão gnóstica do cristianismo. Se bem que o esoterismo era basicamente estranho ao racionalismo ateu de Robertson e vários outros escritores com assento nas estantes de Pessoa (como o banqueiro racionalista Edward Clodd, autor de um opúsculo contra o ocultismo, de 1921), a sedução do oculto pode até certo ponto considerar-se também um fruto do mesmo movimento oitocentista de contestação das crenças e religiões dominantes ¾ a que não escapariam, no fim, a própria “religião racionalista” filha do Iluminismo e o “culto” positivista da ciência. O casamento aparentemente espúrio entre as influências do racionalismo secularista e das correntes esotéricas e neo-pagãs em voga nos meios literários e artísticos da viragem do século marcou, assim, a formação filosófica e espiritual do livre-pensador Fernando Pessoa, que, sem renegar o seu ecletismo, acabaria aparentemente por pender para uma espiritualidade sincrética precursora de formas alternativas de religião que conheceram grande expansão a partir dos anos 70 do século XX.

 

 

Bibliografia

 

José Barreto, “Fernando Pessoa racionalista, livre-pensador e individualista: a influência liberal inglesa” em S. Dix e J. Pizarro (org.) A Arca de Pessoa. Novos Ensaios, ICS, Lisboa, 2007, pp. 109-127; Odin Dekkers, J. M. Robertson. Rationalist and Literary Critic, Ashgate, Aldershot (UK), 1998.

 

 

José Barreto