Pacheco, José Coelho de Jesus (1894-1951) – amigo de Fernando Pessoa, a quem escreve uma carta, em 20.2.1935, agradecendo a oferta de Mensagem que, como diz, gostou mais de receber «do que se a [sua] fábrica [lhe] mandasse um automóvel ainda que fosse com dedicatória». A referência ao automóvel tem que ver com o facto de J. Coelho Pacheco (sobrinho do amigo e sócio de Pessoa, Geraldo Coelho de Jesus) ser representante de várias marcas de automóveis e de aparelhagem eléctrica, com uma firma na Rua Braamcamp, em Lisboa. A carta, saudosa, manifesta a grande admiração de Coelho Pacheco pelo poeta Fernando Pessoa, de quem cita de cor alguns versos, e evoca ainda a amizade literária que uniu os dois, nos tempos de Orpheu e de A Renascença. Coelho Pacheco foi mesmo redactor desta última revista, dirigida por Fernando Carvalho Mourão, colaborando no nº 1, Fevereiro de 1914, com um texto em prosa intitulado «O Jornal dele» e assinado «Pela cópia, J. Coelho Pacheco». No mesmo número, o texto intitulado «Zizi», assinado com o pseudónimo Line, descobrir-se mais tarde ser também da sua autoria. Em 1915, o jovem Coelho publica, em três
números sucessivos da Illustração Sportiva, «Automobilismo, a técnica moderna» e, em Fevereiro e Março de 1916, no Correio Literário, surge como autor de um soneto, «A natureza», e de uma curta narrativa, «Mangas de Alpaca». Muitos anos depois, assina a tradução do romance de Jules Verne, A aldeia aérea (Lisboa, Bertrand, 1937). Entretanto, num plano dos colaboradores do nº 3 da revista Orpheu, Pessoa inclui o nome de Coelho Pacheco, como também já fizera relativamente à colaboração para a abortada revista Europa (antecessora de Orpheu), onde, no nº 2, apareceria Coelho Pacheco com «um poema interseccionista» intitulado «Eu sem Mim». Significa isto que a sua produção escrita era considerada, por F. Pessoa, merecedora de figurar ao lado da sua e da de Sá-Carneiro. Ora, em Orpheu 3, que, como é sabido, não chegou a circular mas cujas provas tipográficas seriam dadas a conhecer anos mais tarde (1984), encontra-se o longo poema «Para além doutro Oceano», atribuído a um misterioso C. Pacheco. Desconhecendo-se, então, a existência daqueles planos, desde logo C. Pacheco foi aceite como uma personalidade literária pessoana. Estranhamente, apesar deste suposto estatuto semi-heteronímico, o desdobramento do nome em Coelho Pacheco passou a surgir com alguma frequência. De facto, esta designação tomou corpo a partir do momento em que Maria Aliete Galhoz escreve (na edição da Obra Poética de Fernando Pessoa, Rio de Janeiro: Editora Aguilar, 1965), a propósito do poema citado: «Numa nota do punho de Pessoa de um projecto de paginação de Orpheu 3, está assinado Coelho Pacheco» (E3, 87-26?); ou quando Teresa Rita Lopes assinala a existência do plano para Europa, no qual, como afirma, se refere a colaboração «desse pouco falado Coelho Pacheco que é apenas conhecido por outra colaboração noutra revista, no número 3 de Orpheu» (Pessoa por Conhecer, vol.I, 1990: 119). Esta designação afigurava-se, então, algo imprecisa, a menos que se deixasse de atribuir a Pessoa a autoria do poema. A favor desta autoria estariam as suas evidentes marcas pessoanas e a dúvida sobre a capacidade, para fazer um poema de tão grande fôlego e qualidade, do verdadeiro Coelho Pacheco. Contudo, alguns investigadores foram chamando a atenção para as debilidades do poema, como Arnaldo Saraiva, que, na introdução à edição da revista Orpheu 3 (Ed. Ática), sublinha que «a frase, rara e bizarramente pontuada, é mais torturada e tortuosa do que nos outros Pessoas, e acusa às vezes um certo desmazelo (…)»; como a própria Maria Aliete Galhoz, que, na nota acima citada, considera não ser esta uma composição «de primeiro plano, nem como sentido poético nem como expressão estética»; ou Patrick Quillier que, na sua edição de La Plêiade, a rotula mesmo de «très médiocre poème». Por outro lado, já em 1986, Nuno Júdice, pronunciando-se relativamente à interessante colaboração de J. Coelho Pacheco em A Renascença, avança a hipótese de ele ser também «muito provavelmente» o autor de «Para além doutro Oceano», «apesar das marcas que traduzem a influência – se não se tiver dado o caso de uma participação directa – de Pessoa neste texto» (A Era de Orpheu, Lisboa: Ed. Teorema). De qualquer forma, não deixava de se achar estranho que, sendo Fernando Pessoa um criador de ficções, por excelência, tivesse tido necessidade de se servir de um amigo (ou do seu nome) para aparecer em público. Ou teria o poeta efectivamente levado a sua blague heteronímica tão longe, a ponto de inventar uma personalidade fictícia que, afinal, existia? Finalmente, é ainda de novo Maria Aliete Galhoz quem, num artigo intitulado «O equívoco de Coelho Pacheco» (in As Mãos da Escrita, ed. da Biblioteca Nacional, 2007), se penitencia pelo seu «equívoco» de pioneira, concluindo, face às evidências repertoriadas, pela não autoria pessoana do poema e pela sua atribuição a José Coelho Pacheco. Faltava, porém, uma prova indesmentível. Não existindo no espólio pessoano, além dos citados planos, qualquer rascunho autógrafo ou sinal do poema, qualquer apontamento ou carta que permitissem afirmar categoricamente que C. Pacheco era mesmo mais uma sua personalidade literária, restava a hipótese de que o real José Coelho Pacheco tivesse, por sua vez, deixado, aos vindouros, a solução do enigma. Alertada pela controvérsia, uma sua neta, Ana Rita Palmeirim, empreendeu uma investigação, encontrando numa pasta com papéis do avô, o manuscrito autógrafo do polémico «Para além doutro Oceano». Estava reposta a verdade. Graças a esse trabalho de pesquisa, podemos não só desfazer um equívoco que perdurava desde 1953 (data de uma edição especial da editora Inquérito, incluindo poemas destinados a Orpheu 3, entre o quais o poema em questão), como aceder à real dimensão literária de um modernista injustamente esquecido. Ana Rita Palmeirim pôs à nossa disposição, em 2016, uma preciosa biografia do avô, intitulada José Coelho Pacheco, o Falso Semi-Heterónimo de Pessoa (ed. da Biblioteca Nacional de Portugal), que integra também uma antologia dos textos publicados, bem como um conjunto diversificado de outros textos (poesia, prosa, teatro), deixados inéditos por Coelho Pacheco. 

Manuela Parreira da Silva

(Julho de 2022)