Interregno, folheto escrito a convite do Núcleo de Acção Nacional e por este editado em 1928, é, seguramente, consequência do compromisso que Fernando Pessoa assinou com a pátria portuguesa. Insere-se, provavelmente, naquele “milhar de planos” que o poeta, desde muito cedo (1908), projectou para celebrar Portugal. O seu empenhamento na vida política portuguesa, de que Interregno é um dos muitos exemplos, não é senão o resultado do seu “intenso sentimento patriótico” (Obra Poética e em Prosa, II 79) e do seu “intenso desejo de melhorar a situação de Portugal” (ibidem). Naquele opúsculo, Pessoa analisa os factos e apresenta as razões que justificam, segundo ele, a necessidade de uma ditadura militar em Portugal (talvez sonhasse com um novo Presidente-Rei, um Sidónio Pais, renovado). Tendo em conta o seu objectivo ao escrever aquele texto, e para desfazer qualquer equívoco, o poeta acrescentou-lhe o seguinte subtítulo: Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal. Conforme comenta no prefácio que intitulou “Primeiro aviso”, Pessoa considerava este opúsculo a parte introdutória de uma futura obra, mais desenvolvida e completa, de que aquela seria a prefiguração. Segundo esse seu projecto, o livro que mais tarde pensava dar à estampa era constituído por, além da referida introdução, mais quatro capítulos, para o qual elaborou o seguinte esquema: “a primeira parte, que está neste opúsculo, é introdutória; a segunda tratará da Nação Portuguesa; a terceira do Estado Português; a quarta da Sociedade chamada Portugal”. (OPP III 795. Um pouco mais à frente, numa linguagem velada de estilo profético, diz-nos a propósito da última parte, conclusão, ou “peroração”, como lhe chama na parte final do seu folheto, que “o mais importante, se não se ordenar que fique por dizer, formará a quinta parte deste livro” (ibidem). Esta obra que idealizou, como a grande maioria de muitos outros dos seus projectos, só teve corpo no plano que a tinta traçou no papel. Ainda que, no caso particular de Interregno, seja possível perceber por que razão este seu desígnio não foi avante. Para tanto, basta ler a sua Nota Biográfica (OPP III 1935). “O folheto Interregno publicado em 1928, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito”: (OPP III 1428).

Por volta de 1932, data presumível, considerando a referência que o autor faz ao período que pensa ser o do verdadeiro interregno e que, segundo ele, se estende de 1926 a 1932, propôs-se escrever um segundo opúsculo que, não só tinha por alvo comentar as análises e comentários do seu primeiro escrito, como também e criticar o próprio regime. No texto que preparou para ser a introdução a este seu novo folheto (que não chegou a concluir), esclarece “escrevi, em princípios de 1928, um folheto com o mesmo título que o presente. Dou hoje esse escrito por não escrito; escrevo este para o substituir” (OPP III 1089). Mais adiante, depois de justificar a razão que o levou a atribuir o mesmo título ao novo opúsculo, propõe-se, antes de entrar no assunto propriamente dito, fazer duas advertências preliminares. A primeira explica “que, ao pôr uma tese contrária à do Governo de Ditadura, não ponho uma tese contrária ao Governo de Ditadura” (OPP III1090-1091); a segunda refere que “a tese do Prof. Salazar é um apanhado, aliás muito lúcido e lógico de princípios políticos já conhecidos – os da chamada «contra-revolução» ou seja os que distinguem e definem as doutrinas dos chamados integralistas” (ibidem), com quem o poeta cortou, por estar em pleno desacordo com os seus princípios ideológicos. O Interregno e as Suas Consequências foi o outro título que pensou dar a esta sua nova brochura, mas que acabou por rejeitar, pois, a seu ver, “os títulos grandes não são títulos, porque são descrições, como os sonetos caudatos não são sonetos, porque têm dezassete versos” (OPP III 1090).

            O folheto que publicou em vida com a chancela do Núcleo de Acção Nacional é constituído por cinco partes. A primeira parte, de carácter introdutório, o poeta intitulou-a “Primeiro aviso”; a segunda, terceira e quarta partes, que formam, por assim dizer, o desenvolvimento e justificação da sua teoria sobre a ditadura militar, apelidou-as, respectivamente “Primeira Justificação da Ditadura Militar”, “Segunda Justificação da Ditadura Militar” e “Terceira Justificação da Ditadura Militar”; à última parte, que se apresenta como uma espécie de conclusão, chamou-lhe “Segundo aviso”. O título “aviso” com que abre e fecha o texto do seu folheto revela-se bastante significativo: Pessoa institui-se uma espécie de profeta, não aquele que escreveu o seu livro “à beira-mágoa” como um dos três profetas de “Os Avisos” de Mensagem, mas o que tem a justeza de raciocínio para, por assim dizer, antecipar a visão de factos futuros. E se no “primeiro aviso” deixa o anúncio, ao fazer a apresentação do mal que assola Portugal – a ausência de uma mentalidade portuguesa –, de que só os portugueses superiores “dos que têm um cérebro” (OPP III 796) e não os “sub-portugueses que constituem a maioria activa da Nação” (ibidem) terão o dom para serem os intérpretes activos desta sua nova mensagem; no “segundo aviso”, além de resumir “os fins, imediatos e mediatos do presente opúsculo” (OPP III 817), deixa antever, caso os seus leitores consigam interpretar, as condições da “profecia”, o Portugal que está para vir, essa nação cujo presente se define por viver entre (o tal interregno) o passado que foi e futuro que há-de ser. Os apóstolos que entenderam a palavra do profeta tomarão este texto como o “Primeiro Sinal” da “Hora” (ibidem) prometida, tal como a injunção que escreveu no final de Mensagem: “É a Hora!”. Nos três pontos que constituem a justificação da ditadura militar, procurou provar “triplamente”, como diz, a necessidade de “uma Ditadura Militar em Portugal” (OPP III 815). A primeira explicação parte da premissa de que “Portugal é metade monárquico, metade republicano” (OPP III 757), facto que, segundo o seu autor, cria o estado de guerra civil latente; a segunda assenta no fundamento de que Portugal não tem um regime político definido; a terceira baseia-se no caso de o país não ter uma verdadeira opinião pública. Fernando Pessoa precisa, ainda, na primeira parte desta obra, que não defende a ditadura presente, mas apenas a necessidade da intervenção de uma ditadura militar em Portugal, naquele momento histórico.

Tendo na devida conta o objectivo do poeta ao publicar este opúsculo, não podemos afirmar que Interregno represente o apoio a um regime que ainda não existia (como, aliás, deixa claro no seu escrito), mas a urgência de ensinar a pensar em termos sociais e políticos.

 

 

Bibli.: Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, I, II e III, ed. António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão, 1986

 

Luísa Medeiros