Na fórmula criada pelo primeiro verso de um famoso poema do Pessoa ortónimo, «O poeta é um fingidor». Segundo Ambiente, texto em prosa de Campos, «Fingir é conhecer-se». São duas citações que marcam a poética anti-romântica de Pessoa. Em vez da confessionalidade de um Eu ou da expressão de uma personalidade heróica ou decadente, como no Romantismo, Pessoa inventa com os heterónimos uma forma de transmitir emoções através de personagens de poeta. Nesse teatro interior, a poesia metamorfoseia-se no que parece ser um artesanato de formas, um gesto de fabricador que se acrescenta ao gesto de criador. É este, aliás, o fundo do argumento que contra ele utilizam contemporâneos seus como Teixeira de Pascoaes e, depois, José Régio (aquilo a que chama o «abuso do cálculo intelectual») ou Gaspar Simões.

Só que a poética do fingimento em Pessoa se ergue paredes meias com uma outra, que releva do que tradicionalmente se chama inspiração. Num poema do ortónimo há o verso «Não meu, não meu é quanto escrevo». E em Campos pode ler-se (poema datado de 18-12-1934): «Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta / Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?». No artigo de apresentação de Athena, em 1924, Pessoa escreve: «Da sensibilidade […] nasce a arte per o que se chama inspiração»,  acrescentando logo, no entanto: «A só sensibilidade, porém, não gera a arte». Neste texto desenvolve uma teoria do equilíbrio entre o individual e o colectivo, a sensibilidade e o entendimento, a arte e a ciência, teoria essa que corresponde a um ideal de harmonia de teor neo-clássico, que, aliás, toda a revista espelha. Ora, aí a inspiração é valorizada como a condição da arte, embora a razão seja essencial ao trabalho que a produz: «Pobre de sensibilidade e de pessoa, a arte é uma matemática sem verdade. Por muito que um homem aprenda, nunca aprende a ser quem não é; se não for artista, não será artista, e da arte que finge se dirá o que Scaliger disse da de Erasmo: ex alieno ingenio poeta, ex suo versificator — poeta pelo engenho alheio, versificador pelo próprio» (Crítica, 219-220). Nota-se aqui, aliás, o verbo «fingir» numa acepção com valor negativo. É, talvez, um momento da evolução de Pessoa. Ou deverá antes dizer-se que é este um dos seus modos de pensamento, um entre os muitos possíveis, e que, em termos historicos, não virá a ser o dominante, ou o mais visível. Esta ideia de um artista que tem que inventar a partir de si a «verdade» da sua arte, o que, de certo modo, até antecipa a «sinceridade» que se tornará o cavalo de batalha da presença, é uma afirmação de originalidade que prefigura a estética presencista. É, mais uma vez, a acentuação do concreto, do pessoal e único, no sentido em que Mestre Caeiro o ensina.

Por outro lado, na «Carta sobre a Génese dos Heterónimos», Caeiro é dado como uma epifania, aparecendo a Pessoa por completo e por inteiro – como Atena da cabeça de Zeus – num transe que o faz ser outro, como numa possessão. Caeiro é a manifestação do génio de Pessoa – para o próprio Pessoa. Caeiro aparece sem intervenção de Pessoa, e isso quer dizer que Pessoa não finge ser Caeiro, não é um actor que num dado momento encarna a personagem de Caeiro, mas se nos apresenta como o médium através do qual Caeiro existe. Depois, na mesma carta, escreve que tratou de lhe «descobrir» os dois discípulos «instintiva e subconscientemente». Dois anos antes, numa carta a João Gaspar Simões de 25 de Fevereiro de 1933, propõe a publicação pela presença dos Indícios de Oiro, e também, a seguir, de O Guardador de Rebanhos, que define como a sua obra-prima, nestes termos a propósito: «obra que, ainda que eu escrevesse outra Ilíada, não poderia, num certo íntimo sentido, jamais igualar, porque procede de um grau e tipo de inspiração (passe a palavra, por ser aqui exacta) que excede o que eu racionalmente poderia gerar dentro de mim, o que nunca é verdade das Ilíadas» (Correspondência, II 288). E, em 1934, num artigo publicado na revista O Fradique intitulado «O Homem de Porlock», Pessoa conta o episódio em que um certo visitante, ao interromper Coleridge na escrita do Kubla Kahn, levou a que esse poema ficasse reduzido a fragmentos, por essa interrupção ter cortado o fio que unia Coleridge ao sonho em que o poema lhe era revelado. Como depois acrescenta: «É que todos nós, ainda que despertos quando compomos, compomos em sonho» (Crítica, 491).

Há, portanto, um entendimento da criação poética que tem uma matriz nesse «êxtase» em que as palavras são dadas sem esforço nem cálculo àquele que escreve: êxtase, ou inspiração. Estes exemplos revelam um paradoxo constitutivo da poética de Pessoa. Anti-romântica pela posição e pela atitude, parece recuperar a exaltação e o transporte que caracterizam a mais funda das tradições românticas. É de uma grande ambição o sistema que cria, e com uma tal amplidão que inclui toda a experiência histórica. E, num texto fragmentário, Aspectos, que versaria a sua criação heteronímica, pode ler-se: «Finjo? Não finjo. Se quisesse fingir, para que escreveria isto? Estas coisas passaram-se, garanto; onde se passaram não sei, mas foi tanto quanto neste mundo qualquer coisa se passa, em casas reais, cujas janelas abrem sobre paisagens realmente visíveis. Nunca lá estive – mas acaso sou eu quem escreve?». Aliás, o próprio «curioso fenómeno do desdobramento», como o descreve a Mário Beirão numa carta em que explica de que modo lhe apareceu o soneto Abdicação (Correspondência, I 80), é definido como um acontecimento inesperado e involuntário.

Mas é preciso ver ainda, para não esquecer a acepção pejorativa que pode ter (e normalmente tem) em Pessoa o termo «inspiração» (pelo menos, na medida em que se opõe à intelectualização essencial ao processo poético), o que se lê num dos artigos para  Revista de Comércio e Contabilidade: «Da simples “vontade” vivem só os pequenos comerciantes; da simples “inspiração” vivem só os pequenos poetas» (Crítica, 359). E também o que se lê num artigo de 1932, «O Caso Mental Português», de modo claríssimo: «Os nossos escritores e artistas são incapazes de meditar uma obra antes de a fazer, desconhecem o que seja a coordenação, pela vontade intelectual, dos elementos fornecidos pela emoção, não sabem o que é a disposição das matérias, ignoram que um poema, por exemplo, não é mais que uma carne de emoção cobrindo um esqueleto de raciocínio. Nenhuma capacidade de atenção e concentração, nenhuma potência de esforço meditado, nenhuma faculdade de inibição. Escrevem ou artistam ao sabor da chamada “inspiração”, que não é mais que um impulso complexo do subconsciente que cumpre sempre submeter, por uma aplicação centrípeta da vontade, à transmutação alquímica da consciência. Produzem como Deus é servido, e Deus fica mal servido. Não sei de poeta português de hoje que, construtivamente, seja de confiança para além do soneto» (Crítica, 440).

Finalmente, e indo um pouco mais longe, no prefácio que Ricardo Reis prepara para a obra de Alberto Caeiro lê-se uma definição que intensifica a ideia de inspiração até a tornar, mais que numa experiência, numa gnose: «A obra, porém, e o seu paganismo, não foram nem pensados nem até sentidos: foram vividos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão» (Alberto Caeiro, 16).

 

 

 

Fernando Cabral Martins