Na esteira do que se vinha já verificando desde o romantismo, com desenvolvimentos ao longo de todo o século XIX, o modernismo manisfesta de modos  diversos uma auto-consciência dos artistas e dos poetas, que o tematizam com frequência. Assim é que temos, tanto nas artes plásticas ou na música e na dança, como na literatura, uma notória atenção à representação do artista enquanto figura social, representando-se por emblemas herdados do dandismo. Antes de mais convém lembrar que os verdadeiros dândis, como Brummell, Montesquiou, os nossos Garrett, Gomes Leal e António Nobre, ou como Oscar Wilde, estão longe de ser o que aparentam – frívolos e superficiais. De facto, o mais importante é ver, sob a capa gentil de certos textos, a vida interior que move o poeta ou o artista: tomem-se como exemplo as duas faces de Carlos (nas Viagens na minha terra), alter ego de Garrett; pense-se no Gomes Leal miserável mas de flor na botoeira (cf. o retrato que dele faz Raul Brandão, Memórias – I); ou evoque-se a elegância dândi de Oscar Wilde, mantida tanto quanto possível nos tempos da prisão. O artista, nestes casos como em tantos outros, tem uma face pública, solar, de requinte e mesmo de extravagância no traje, nos acessórios e no modo de estar (em alguns casos perto do efeminado ou do andrógino, trabalhado por alguns como afronta à sociedade); mas tem também uma face lunar, se não mesmo saturniana – a daquele que escreve ou pinta, etc., a sós consigo e com os seus fantasmas. A matriz romântica desta criação de si como artista ou como poeta está fortemente ligada ao dilema narcísico: por um lado, aquele que escreve (ou pinta, ou compõe) necessita de se defrontar com o espelho obscuro de si mesmo, para ir buscar às profundezas da alma e da atitude de reserva contemplativa a matéria da sua arte; por outro lado, ele é homem público, participa aparentemente da actividade social dos cafés, das tertúlias onde encontra pares com os quais desenvolve projectos, muitas vezes assumindo posições de liderança (v.g., o papel de mentor que Pessoa assume nos tempos de Orpheu). Estamos aqui pisando aquele terreno deslizante em que as fronteiras da vida empírica se cruzam com o erigir do sujeito na obra, e por isso há que deixar claro que não se trata de falar de biografemas, mas de atentar na criação de um eu protagonista, em cujos contornos podemos reconhecer traços que sabemos serem da biografia de tal ou tal autor. Concretizemos, lembrando que a encenação de si como artiste ou como clown que Almada Negreiros faz para apresentação da revista…   , é isso mesmo – encenação, criação de personagem, atitude de réclame para chocar o burguês, com ecos no discurso torrencial da poesia deste autor (basta pensar em ”Mima Fatáxa”, cruzamento heteróclito de planos discursivos e até visuais, produzindo o sentido de um texto que se quer experimental). Em segundo lugar, lembremos a estilização das figuras do outro na obra em prosa de Mário de Sá Carneiro: em A confissão de Lúcio, Ricardo de Loureiro é um dândi, literalmente posto em cena para ser o enigmático duplo de Lúcio; outras figuras o corroboram (Gervásio Vila-Nova ou o russo Sérgio Warginsky), e até a silhueta da evanescente Marta serve de duplo, no quadro da edificação do mistério que envolve a consciência de Lúcio. Não por acaso, logo no primeiro capítulo o episódio da festa e, nela, da dança da americana (recortada sobre as coreografias de Isadora Duncan e outras), dão o mote para a estesia dominante, envolvendo a personagem numa perturbação dos sentidos que prepara o desfecho. Algumas das novelas de Céu em Fogo situam-se num mesmo quadro de problemas, desenvolvendo-se em torno da alma doente de personagens que vão errando, entediadas, pelos cafés parisienses. Na obra poética, Sá Carneiro usa amiúde este retrato de um sujeito dândi, paralisado na sua relação com o real enquanto passa horas nos “Cafés” onde “esper[a] a vida” (“Cinco horas”), ou se deixa estar “aninhado a dormir” num quarto em “Paris, (…) por causa da legenda…” (“Caranguejola”) – quer dizer, por causa da edificação de si como figura de artista, perdurando na história na sua face cosmopolita e entediada, de dândi. Se pensarmos agora em Pessoa, à primeira vista parece que estas considerações não se aplicam ao seu caso. No entanto, leia-se a cuidadosa criação das efígies dos heterónimos na célebre carta a Casais Monteiro, que ele bem sabia destinar-se à publicação: Pessoa constrói para cada um dos heterónimos principais não apenas escorços biográficos, de formação académica ou ausência dela, mas ergue-os também como figuras, definindo-lhes estatura física e traços de carácter que antecipam traços das obras de cada um, incluindo evidentemente Fernando Pessoa ele mesmo, tão nome de autor e tão persona como todos os outros. Sabe-se como a biografia de Pessoa aponta para uma personalidade discreta (o que porventura melhor se espelha no semi-heterónimo Bernardo Soares, como ele próprio diz), o que se vê confirmado nos muitos testemunhos de amigos e companheiros, ou de Ofélia Queirós, que dele pôde ver o homem tímido e apagado, embora cheio de humor. Mas quando nos confrontamos com o edifício escondido da obra nas suas diversíssimas direcções, a pressupor necessariamente um trabalhador obsessivo, consciente de si e do valor, que quis secreto, do que escrevia, temos de reconhecer nele o peso imenso da face oculta do poeta, do faber incansável. Tal imagem do eu profundo e das suas múltiplas faces não se compadece com o vulto discreto das fotografias que o mostram descendo o Chiado ou às mesas dos cafés. Aquele que tão poucos dos seus contemporâneos souberam que ele era, esse era o eu nocturno, o eu que surdamente se ia erguendo como poeta e como intelectual, narcísica e proteicamente alimentado  de si mesmo, dos seus sonhos e saberes.  Em todos os casos (mais atenuadamente em Almada), a distinção entre o homem público de postura alinhada e convencional e o génio para si mesmo sonhando (paráfrase de um verso da “Tabacaria” de Campos), essa fractura é, nos poetas modernistas, um sintoma da cisão entre o eu e o Outro de si que tematizaram. Questão de todos os tempos, esta busca da identidade, no intervalo entre o que se é, o que se parece ser e o que se desejaria alcançar, adquire no modernismo um peso enorme. Modulado nas figuras de poeta que cada um deles, buscando-se também a si, sombria e angustiosamente construiu, este é um dos mais relevantes traços da estética modernista – um daqueles que não cessou, não cessará de nos inquietar.  

 

Bibliografia

Émilien Carassus, Le mythe du dandy, Paris, Armand Colin, 1971.

Patrick Favardin et Laurent Boüexière, Le dandysme, Lyon, La Manufacture, 1988.

Henriette Levillain. L’esprit dandy – De Brummel à Baudelaire – Anthologie, Paris, José Corti, 1991.  

 

 

 

Paula Morão