Publicado na revista Exílio, Lisboa, 1916, o poema é datado de 04-07-1913. Composto de 25 quadras em versos longos (com pequenas variações em torno de 15 sílabas métricas) e rimas alternadas, “Hora absurda” é representativo da fase modernista de seu autor – um Pessoa ainda muito próximo à poética simbolista, voltado para as próprias impressões, e que busca antes sugerir do que claramente definir emoções e estados de espírito inefáveis: “Minhas ânsias talhadas num mármore que não há.”
Logo no início o poema se apresenta como releitura radical do poeta que canta as belezas de sua musa. Afirmações como “O teu silêncio é...”, “E o teu sorriso no teu silêncio é...”, são sucedidas por “Meu coração é...”, “Minha idéia de ti é”, “Minha alma é...”, de modo tal que o(a) outro(a) é logo convertido(a) em pretexto para o interesse do eu lírico sobre si mesmo: “Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma”. Nesse canto desromantizado, portanto, o eu lírico está mais interessado em se aprofundar nas próprias sensações: “Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim mesmo... Sou a Hora”. E as estrofes sucedem-se como ondas de impressões justapostas e muitas vezes sem relação direta entre si.
Essa supressão da decorrência entre as partes fornece um indício do que seja essa “hora absurda”, isto é, uma hora estacionada, um momento eternizado e verticalmente explorado. O tempo psicológico é, afinal, o tempo descronologizado. O espaço exterior não são paisagens que se sucedem, como num passeio, mas que aparecem aos conjuntos, em flashes de imagens suscitadas por um sentimento que se torna mais complexo quando associado a elas.
Estamos já, portanto, num mundo próximo ao onírico: “Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!” Esse verso resume bem, e ainda em meados de 1913, a concepção do autor sobre a arte moderna, que num manuscrito provavelmente do mesmo ano, assim definiu: “Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontra-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho.” (Páginas de Estética, 2ª. ed., 1973, p.153) E não surpreende que se relacione com essa hora estática (e tão profundamente explorada n’ “O Marinheiro”, também de 1913) a qualidade plástica do poema: “O poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o ‘quadro’, a ‘paisagem’ é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior.” (Páginas de Estética, 2ª. ed., 1973, p.155) Não é outra a atitude do eu lírico, senão pintar a realidade com as tintas de sonho: “E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...”
- R. Lind considera que “‘Hora absurda’ é bem a demonstração de como o vago pode permanecer transparente em toda a extensão dum poema, uma vez que resulta dum programa de composição previamente traçado.” (Teoria poética de Fernando Pessoa, 1970, p. 23) O poema opera segundo as três categorias atuantes em “Pauis”: o vago, o sutil e o complexo, que, na verdade, haviam sido usadas por Pessoa como descritores da poesia saudosista. Lembre-se de que, n’A Águia, o autor afirma que a complexidade “traduz uma impressão ou sensação simples por uma expressão que a complica acrescentando-lhe um elemento explicativo que, extraído dela, lhe dá um novo sentido.”
Mais especificamente, há no poema a busca por concretizar com imagens plásticas o abstrato, de que resultam longas séries de composições metafóricas inauditas, em que a linguagem é predominantemente substantiva e os versos terminam por reticências. Nessas séries, como comprovam as duas primeiras estrofes do poema, a metáfora evolui para a alegoria. Mas esse expediente não objetiva o subjetivo, uma vez que as metáforas são geralmente compostas por elementos complicadores e/ou carregadas de um impressionismo penumbrista, de gosto decadente: “Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora... / As próprias sombras estão mais tristes... Ainda / Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora / Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...” O poeta não busca, portanto, associar sensações a paisagens já experimentadas; mais propriamente o efeito de identificação no leitor é substituído pelo de estranhamento. Atuam assim as muitas afirmações que negam a si mesmas: “Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro, / E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...”, as hipóteses de um irreal tornado real: “Ah, o teu tédio é uma estátua de mulher que há de vir, / O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...”, bem como as tautologias das coisas compostas de si mesmas: “E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...”
Já aqui se pode falar do lirismo intelectual do poeta que pensa e sente ao mesmo tempo, e que adianta metáforas e comparações que se amarrarão por fio narrativo mais visível em poemas como “Ode Marítima”.
Bibliografia:
Lind, G. Rudolf. “Duas tentativas de aperfeiçoamento do Simbolismo: o Paulismo e o Interseccionismo”. In Teoria poética de Fernando Pessoa. Porto: Editorial Inova, 1970. Pp. 35-74.
Sacramento, Mário. Fernando Pessoa, poeta da Hora Absurda. 2ª. ed. Porto, 1970.
Simões, J. Gaspar. “Do ‘paulismo’ ao ‘interseccionismo’”. In Vida e obra de Fernando Pessoa – história duma geração. 6ª. ed. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1991.Pp. 187-199.
Caio Gagliardi