Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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A heteronímia forja-se ao longo das primeiras experiências literárias de Pessoa, mas apenas em 1914 se encontra constituída como um sistema de poetas. A data célebre de 8 de Março de 1914 é uma referência mítica, como se sabe, mas indica um momento de real consolidação.

a noção de «proto-Pessoa», que Eduardo Lourenço propõe (1983: 189-213), abre uma possibilidade textualmente fundada de ler a obra de Pessoa sem recurso à ficção dos heterónimos, antes remetendo para uma unidade profunda entre todos os textos que escreveu. A principal razão reside numa leitura da síntese inicial que seria corporizada por Alexander Search. E a sua temática fundamental ficaria para sempre centrada no Tempo e na Morte. E, de resto, outras leitura críticas privilegiam essa unidade, a mais influente das quais terá sido a de Jacinto do Prado Coelho logo em 1949. A invenção do desdobramento heteronímico, no entanto, cria uma topologia poética que não é escamoteável. A colocação num ou noutro dos heterónimos é sempre um elemento relevante para a interpretação de cada texto.

A história da heteronímia começa por se confundir com a teoria do Sensacionismo, e há um texto de Campos, «Modernas Correntes na Literatura Portuguesa», do tempo de Orpheu, em que a posição da heteronímia nesse momento literário aparece assim delineada: «Em Portugal hoje debatem-se duas correntes, antes não se debatem por enquanto, mas em todo o caso a sua existência é antagónica. / Uma é a da Renascença Portuguesa, a outra é dupla, é realmente duas correntes. Divide-se no sensacionismo, de que é chefe o sr. Alberto Caeiro, e no paulismo, cujo representante principal é o sr. Fernando Pessoa» (Páginas Íntimas, 125-126). Mas, na verdade, esta é apenas um estação de um caminho que há-de ter levado algum tempo. É por esta altura que tomam lugar os propósitos de lançamento público dos heterónimos enquanto autênticas mistificações literárias, de que dão testemunho certos apontamentos para artigos de jornal e até para uma entrevista com Caeiro (Pessoa Por Conhecer, 391-402). Mas essas intenções são abandonadas, e, no ano seguinte, escreve Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues, a 19 de Janeiro de 1915, que mantém o seu «propósito de lançar pseudonimamente a obra Caeiro-Reis-Campos» (Correspondência, I  142), mas desiste de ter para com o público a atitude de um «palhaço», a que considera que Pauis está também associado (Correspondência, I 143).

De todo o modo, os três heterónimos estabelecem uma relação directa com o Sensacionismo. Numa passagem não datada, mas que deve ser de 1915 ou 1916, assinada por Thomas Crosse, Pessoa distingue os três poetas segundo os tipos de Sensacionismo que representam: «Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tal como são. Ricardo Reis tem outro tipo de disciplina: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de modo a enquadrar-se num certo ideal de medida e regra clássicas. Em Álvaro de Campos, as coisas devem simplesmente ser sentidas» (Páginas Íntimas, 343).

Outra conexão se estabelece, desta vez com o Neo-Paganismo. O «Programa do periódico de Caeiro, R. Reis, etc.», provavelmente de 1917 (Pessoa Por Conhecer, 380), é um projecto que estabelece um plano de publicação que seria uma promoção simultânea do Neo-Paganismo e da heteronímia. Ora, este programa haveria de ser remodelado – vindo a dar a Athena, que vai ganhar um lugar de grande relevo na apresentação pública dos heterónimos, pois nesta revista surgem juntos pela primeira vez.

A nota bibliográfica de 1928, publicada na presença, é a primeira exposição geral pública do tema, do ponto de vista da sua teorização: «O que Fernando Pessoa escreveu pertence a duas categorias de obras, a que poderemos chamar ortónimas e heterónimas» (Crítica, 404). Quanto às «obras heterónimas de Fernando Pessoa», elas «são feitas por, até agora, três nomes de gente – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos. Estas individualidades devem ser consideradas como distintas da do autor delas. Forma cada uma uma espécie de drama; e todas elas juntas formam outro drama» (Crítica, 404). Desembocando numa frase-síntese: «É um drama em gente, em vez de em actos» (Crítica, 405). Aqui, a noção de que os três heterónimos constituem um todo organizado, de índole dramática, é par da noção de que o autor deles é Fernando Pessoa, o dramaturgo daquele drama – embora tenha algumas dúvidas sobre o grau de realidade relativo de autor e de personagens.

Em 1931, ano grande de publicação para Pessoa, saem na presença o poema VIII de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, e as Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro, de Álvaro de Campos, verdadeiro evangelho da religião sensacionista ou neo-pagã. Saem igualmente, na revista Descobrimento, cinco fragmentos de O Livro do Desassossego, primeiro afloramento público de Bernardo Soares, o grande nome dos seus últimos anos de produção e outsider do sistema tal como estava já instalado. As Notas para a Recordação representam as formas de coexistência dos vários nomes: «O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro» (Notas para a Recordação, 42). Assim, os três heterónimos, mais Mora e o ortónimo, vêem-se envolvidos numa mesma história. A sua interdependência torna-se essencial.

Numa carta de 1931 a João Gaspar Simões, Pessoa escreve: «O ponto central da minha personalidade enquanto artista é que eu sou um poeta dramático; tenho incessantemente em tudo aquilo que escrevo a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro - eis tudo» (Correspondência, II 255). A insistência na tese dramática regressa.

Noutra carta a João Gaspar Simões, a 28 de Julho de 1932, já explica que Bernardo Soares «não é um heterónimo, mas uma personalidade literária», e que os «Poemas Completos de Alberto Caeiro» teriam «o prefácio de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a Recordação do Álvaro de Campos» (Correspondência, II 269). Isto é, regressa a definição da heteronímia como um drama em que as personagens são Caeiro, Reis e Campos. Aliás, nessa mesma carta (curiosamente, enviada ao presencista menos receptivo à teoria do fingimento), Pessoa acrescenta: «Não sei se alguma vez lhe disse que os heterónimos (segundo a última intenção que formei a respeito deles) devem ser por mim publicados sob o meu próprio nome (já é tarde, e portanto absurdo, para o disfarce absoluto)» (Correspondência, II 270).

o último momento desta definição encontra-se, é claro, nas cartas a Adolfo Casais Monteiro de 1935. Aí, a tese da natureza dramática da heteronímia é retomada e expandida a um ponto extremo, envolvendo sem restrição toda a sua produção escrita: «O que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo, VIAJO. (Por um lapso na tecla das maiúsculas saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade […]» (Correspondência, II 350). A ideia que generaliza e dá sentido final a toda a obra de Pessoa é esse instinto de despersonalização, esse gesto fulcral de ir «mudando de personalidade» que surge associado ao símbolo de uma permanente viagem.

 

Fernando Cabral Martins