(1850 – 1923)
Abílio Manuel Guerra Junqueiro fez os seus estudos liceais no Porto e em Coimbra, onde em 1873 terminou o curso de Direito. Estreou-se muito cedo nas letras, recitando em 1862 uma poesia no Teatro Académico de Coimbra, num sarau literário patrocinado por António Feliciano de Castilho. Entre 1864 e 1868 publica quatro opúsculos, que depois renegará, o último dos quais, O Século. I. Baptismo de Amor, traz um curto exórdio introdutório de Camilo Castelo Branco. Modelará a sua personalidade poética definitiva com João Penha na boémia de Coimbra, ganhando para sempre um vezo satírico. Foi aí que se aclimatou pela primeira vez às correntes frias e correctas da reacção anti-romântica, publicando em 1874 A Morte de D. João, o seu primeiro grande poema. Nele, processando o herói romântico, mostra-se um poeta de extraordinária fluência métrica, mas cujo verdadeiro domínio não é o verso, mas a metáfora.
Em 1876, Junqueiro é nomeado secretário-geral do Governo Civil de Angra do Heroísmo, Açores, e três anos depois, em 1879, é transferido para Viana do Castelo; filia-se nesse ano no Partido Progressista de Anselmo Braamcamp Freire, sendo eleito deputado pelo círculo de Moncorvo, Trás-os-Montes. Ainda nesse ano publica a sua primeira grande colectânea lírica, A Musa em Férias, onde se encadernam algumas das mais percucientes metáforas de Junqueiro. Compõe nessa altura o Grupo dos Cinco com Ramalho, Eça, Martins e Antero, de que ficou pose daguerreotipada, e publica em 1885 A Velhice do Padre Eterno, onde depois de matar o herói romântico, se propõe matar Jeová, passando do homicídio ao deicídio. Este desapiedado propósito, assumidamente realista, terá depois o seu termo, já num compósito enriquecido pelos acontecimentos revoluteantes do Ultimatum de 1890, que levaram Junqueiro a abraçar a causa republicana, trocando a cartola alta pelo chapéu braguês, no regicídio do Finis Patriae (1890), com o celébe poema de trinta versos “O Caçador Simão”, e no patricídio explosivo de Pátria (1896). Pelo meio ficava a publicação de Os Simples (1892), onde os processos metafóricos da poesia de Junqueiro, no rasto de Antero, se apuraram num jeito panteísta, capaz de unir, através de termos de substituição arrancados à alta filosofia especulativa ou à inefável esfera do pensamento religioso, os mais desencontrados extremos do mundo.
O afã de Junqueiro em demolir à força de metáforas as principais instituições do tempo, o seu gosto em matar as grandes personagens, num cortejo fúnebre que impressiona pela dimensão, e que tem paralelo com o propósito crítico do romance sociológico de Eça, não é todavia fruto exclusivo do realismo. Há nesse cuidado um abalo catártico, um clarão purgativo, que aproxima a poesia de Junqueiro, mesmo quando satírica, da tragédia clássica ou do acto bíblico, dando-lhe um fácies majestoso, que levou por exemplo um crítico exemplar como Sampaio Bruno a considerar Pátria como Os Lusíadas da nossa decadência (acidental).
Depois do regicídio de 1908, Junqueiro, mordido de remorsos, abandonou quase por completo os versos, dedicando-se a uma obra especulativa em prosa, A Unidade do Ser, ainda hoje inédita. Antes, publicara dois poemas, Oração ao Pão (1902) e Oração à Luz (1904), que levam ao paroxismo a metáfora unitiva, transcendentalizando o naturalismo do seu lirismo anterior, e estreara-se na prosa especulativa com a tensíssima “Carta-Prefácio” a Os Pobres (1906) de Raul Brandão.
Na Oração à Luz viu Fernando Pessoa a entrada da poesia portuguesa na meridiana luz do seu ofuscante meio-dia, chamando-lhe em 1912, no terceiro ponto da “Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico”, obra máxima da nossa actual poesia. E nesse mesmo lugar dirá: “De um canto à luz tira Junqueiro uma das maiores poesias metafísicas do mundo, poesia que se pode comparar só a Ode on the Intimations of Immortality de Wordsworth.” Pátria, por sua vez, será para Pessoa um dos vértices da trilogia de grandeza da poesia superlírica moderna, ao lado do Fausto de Goethe e do Prometeu Libertado de Shelley, constituindo desse modo a obra crucial da literatura portuguesa, aquela que arrumou Os Lusíadas num honroso segundo lugar (in República, 7. 4. 1914).
Atendendo ao alcance destas afirmações, percebe-se que estão ainda por estabelecer de forma séria e isenta as relações da poética pessoana com a de Junqueiro, como de resto com a de Pascoaes, tanto mais que aquela se viu envolvida por uma crítica didáctica, não literária, que, pretendendo ferir pedagogicamente o “caprichismo” revolucionário do autor de A Morte de D. João, acabou por se tornar um mal-entendido de incontroláveis efeitos nefastos, que só raros e desobrigados espíritos, como Amorim de Carvalho ou José Marinho, estiveram à altura de ultrapassar.
Bib: CARVALHO, Amorim, Guerra Junqueiro e a sua Obra Poética, Porto, Figueirinhas, 1945; FRANCO, António Cândido, O Essencial sobre Guerra Junqueiro, Lisboa, IN-CM, 2001; MARINHO, José, “Poesia e Verdade em Guerra Junqueiro”, in Ocidente, nº149-150, 1950.
António Cândido Franco