(1749 – 1832)

Para além de Shakespeare e Milton não houve nenhum outro poeta europeu que Pessoa tenha apreciado mais do que Johann Wolfgang Goethe. No que diz respeito a esta preferência pelo mestre alemão, Pessoa orientou-se provavelmente já muito cedo, durante os seus estudos em Durban, nas críticas do escritor americano Ralph Waldo Emerson ou do ensaísta escocês Thomas Carlyle, cujo pensamento foi profundamente influenciado pela literatura alemã. Por outro lado, Pessoa viu em Goethe quase sempre um antípode que viveu no lado solar da vida. Ao contrário do “correspondente de línguas estrangeiras” insignificante da baixa lisboeta, o ministro de Weimar foi famoso, celebrou a sua existência, teve sucesso literário, amigos poderosos e várias histórias amorosas. Goethe foi para Pessoa, sem dúvida, um homem de génio e autor de uma obra de génio, como podemos ler num rascunho que o criador dos heterónimos escreveu em 1932 por ocasião da celebração dos cem anos da morte do famoso autor de Werther. A grandeza de uma frase de Goethe é para Pessoa sempre uma “consequence of genius”. Porém, não podemos dizer que a genialidade de Goethe provocou qualquer inveja. Pessoa não admira apenas a variedade dos interesses em Goethe, a sua curiosidade em fenómenos ocultos ou as famosas Conversas com Eckermann (considerado por Friedrich Nietzsche, em 1878, como o melhor livro alemão), os dois têm também muitos pontos em comum em termos poéticos.

Um destes pontos mais óbvios pode ser à primeira vista o Fausto que Pessoa considerou como “literary achievement” de Goethe (F. Pessoa, Escritos sobre Génio e Loucura T.I, INCM, Lisboa 2006, p.373). E, especialmente neste ponto, somos aparentemente convidados a comparar os dois autores. Porém, a comparação entre o Fausto de Goethe e o Fausto de Pessoa esconde desde o princípio várias dificuldades que obrigam a uma certa precaução. Embora Goethe se tenha considerado a si próprio um classicista, o seu Fausto pode ser entendido como uma obra-prima do romantismo, ou seja uma corrente literária que Pessoa rejeitou aberta e repetidamente. Não há a mínima dúvida de que Pessoa foi capaz de mostrar com os fragmentos do seu Fausto um típico estado mental do século XX., mas a sua clara rejeição do romantismo não permite qualquer comparação entre o Fausto alemão do século XVIII e o Fausto português do século XX. Trata-se de duas figuras absolutamente diferentes. Numa comparação directa seríamos obrigados a concordar com Eduardo Lourenço que deu a entender que um confronto deste tipo iria revelar o Fausto de Pessoa como um “desastre objectivo” ou um “naufrágio romântico”. E embora possamos ouvir alguns ecos do Fausto de Goethe, especialmente no diálogo entre Fausto e Maria, e embora seja possível afirmar que o Vicente no Fausto de Pessoa pode ser entendido como uma figura análoga ao Famulus Wagner em Goethe, a “tragédia subjectiva” de Pessoa é desde o início marcada por uma situação psicológica que corresponde muito mais ao típico niilismo dos primeiros anos do século XX do que a qualquer “espírito da utopia” ou ao “princípio da esperança” que caracteriza o ideal fáustico em Goethe.

Bastante mais fecunda e atraente do que qualquer paralelo suposto entre os dois Faustos seria talvez uma confrontação directa entre o paganismo em Pessoa e em Goethe. No convívio com Goethe, uma das observações mais chocantes para os seus contemporâneos foi a sua franca e demonstrativa auto-designação enquanto pagão. Goethe entendeu, sob o conceito do paganismo, sobretudo a antiguidade clássica e recorreu na sua própria obra várias vezes à vida, religião, moral e arte dos gregos, incluindo a “verdadeira mentalidade pagã trágica” dos antigos. Isso significa que o paganismo de Goethe se baseia principalmente no seu respeito pela antiguidade e na sua própria ideia sobre a natureza. É especialmente nos gregos antigos que Goethe encontra a realização do seu ideal da humanidade. Porém, nos últimos anos, Goethe distanciou-se um pouco do seu paganismo e revela no último ano da sua vida, numa carta de 1831 ao arquitecto alemão Sulpiz Boisserée, a sua preferência para um grupo religioso que se tornou conhecido através do nome Hypsistarier. Esta designação vem etimologicamente da palavra grega hypsistos que pode significar em termos religiosos mais ou menos “o superior”. Trata-se de uma seita que viveu nos séculos III e IV na província romana de Capadócia, juntando religiosamente elementos do paganismo grego e do judaísmo. Goethe entendeu esta seita como uma orientação religiosa independente que encontra o seu espaço entre o paganismo, o judaísmo e o cristianismo, rezando a um ser supremo que é representado na perfeição máxima das coisas. Hoje em dia, íamos dizer que esta seita está ligada aos fenómenos que podem ser designados por certas formas de esoterismo. É um facto curioso, mas também em Pessoa é possível observar, especialmente nos últimos anos, um certo distanciamento do seu paganismo ligado a uma clara viragem para o esoterismo. Não podemos provar que Pessoa conhecesse esta seita de que Goethe falava nos seus últimos anos, nem queremos fazer entender que Pessoa teve uma orientação religiosa idêntica à de Goethe. Contudo, é comum nos dois a relativização do paganismo nos últimos anos de vida e a tendência em encontrar uma certa síntese destas três formas religiosas, consideradas como os pilares da civilização europeia.

E, finalmente até na morte existe uma certa semelhança entre Goethe e Pessoa. Enquanto Goethe no seu último dia em 1832 queria mais luz (“Mehr Licht!”), Pessoa perguntou, no leito da morte, em 1935, pelos seus óculos.

 

BIBL.:  Carius, K.-E. (org.), Goethe e Pessoa, Lisboa 1992.                 

 

 

Steffen Dix