«O problema das relações, reaes ou possiveis, entre o genio e a loucura data, como phenomeno intuitivo, da antiguidade, como phenomeno consciente ou scientifico dos meados do seculo dezanove». Assim começa um texto de Pessoa (Escritos sobre Génio e Loucura, p. 143), em que o poeta procura resumir a história das afirmações e teorias sobre as relações, «reaes ou possiveis», entre o génio e a loucura. Após lembrar algumas sentenças clássicas e um dístico de Dryden, Pessoa explica que o interesse «consciente» por essa questão – que já tinha ocupado «como phenomeno intuitivo» os antigos – surgiu com Moreau de Tours, nomeadamente «com a sua phrase celebre, “o genio é uma nevrose”» (ibidem, pp. 143-144). De seguida, cita The Insanity of Genius, de Nisbet; L’Homme de Génie, de Lombroso; e Dégénérescence, de Nordau – as duas últimas obras lidas nas traduções francesas disponíveis na altura.

Este texto (não identificado por um título, mas pelo incipit: «O problema das relações»), apresenta-nos um autor que de maneira autodidacta se informou acerca do que vinha sendo escrito em torno do génio e da loucura e que pretendia, após breve síntese das teorias vigentes, contribuir para a análise dessa questão fundamental, cuja preponderância reconhecia. (Digo de maneira autodidacta, porque os livros de Nisbet, Lombroso e Nordau foram lidos depois da greve académica, em Abril de 1907, que paralisou o Curso Superior de Letras, bem como muitos outros livros médico-filosóficos que foram visitados pelo poeta a partir de Maio desse mesmo ano – ou seja, após finalizada a sua formação académica.) Mas porque motivo Pessoa se começou a interessar de maneira tão apaixonada e até obsessiva por uma questão de índole psico-patológica e projectou escrever múltiplos ensaios – do qual o texto citado é apenas um exemplo – sobre as relações entre o génio e a loucura, para além de muitos outros textos sobre o mesmo assunto e outros afins, como a degenerescência?

Decerto coexistiram motivos de diversa ordem: históricos – a «invenção» da histeria e da neurastenia no século XIX; biográficos – a convivência com uma avó demente; intelectuais – a curiosidade provocada por certas obras cuja leitura o ocupara; e literários – a intuição das inúmeras possibilidades ficcionais incentivadas pelas várias teorias com a se familiarizava. Seria limitado responder à nossa prévia questão salientando apenas uma destes tópicos. É hoje pertinente: (1) situar Pessoa no contexto das doenças “de fim de século” – a frase célebre de Moreau de Tours, «o genio é uma nevrose», Pessoa reescrevê-la-á quando se declara um «histero-neurasténico»; (2) revisitar a sua biografia – a 25 de Julho de 1907 Pessoa escreve que está “próximo de uma nova vida mental”, «which shall of course be madness» (in João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa, 1950, vol. I, p. 87); (3) reconstituir e percorrer o trilho das numerosas leituras médico-filosóficas que ocuparam o jovem poeta e estudar as anotações que deixou nos livros da sua biblioteca pessoal; e (4) reconhecer a prontidão com que Pessoa passava do interesse intelectual e a análise abstracta, para a distância estética e a ficcionalização – citemos o exemplo de 1907, quando Pessoa começa a ler assiduamente sobre psicopatologia e envia cartas assinadas pelo «doutor» Faustino Antunes, cartas apócrifas que lhe permitiram inquerir acerca da saúde mental do «doente» Fernando António Nogueira Pessoa.

Este labor vê-se agora facilitado pela publicação do volume VII da Edição Crítica de Fernando Pessoa, Escritos sobre Génio e Loucura, em que figuram quase setecentos textos relativos aos dois temas indicados pelo título, a maioria dos quais inéditos até meados de 2006. Nessa edição o leitor encontrará a transcrição integral de uma área do espólio de Fernando Pessoa – aquela denominada, de maneira inexacta, «Ensaio sobre a Degenerescência (Génio e Loucura)», constituída por 235 originais – e as transcrições parciais de outras áreas do mesmo arquivo – como «Filosofia - Psicologia», «Cadernos» ou «Shakespeare-Bacon» –, dado que a maior parte dos textos agora editados se encontrava dispersa. A compilação e organização de todo esse material relacionado com a reflexão em torno do génio e da loucura permite consultar, entre outros, os textos seguintes:

– escritos que tratam dos temas do génio, da loucura e da degenerescência, e a relação entre o primeiro e o segundo, ou o primeiro e o terceiro;

– páginas de três cadernos de apontamentos em que existem mais considerações sobre esses três temas e outros afins, como as psicoses, a definição do padrão de normalidade e as bases psicológicas dos sistemas metafísicos;

– fragmentos dos projectos A Psychose Adeantativa (atribuído a Pantaleão), The Mental Disorder of Jesus (atribuído a Alexander Search), Ethopathologia, History of a Dictatorship e A Questão Shakespeare-Bacon, em que se evidenciam as leituras médico-filosóficas efectuadas por Pessoa;

– textos sobre literatura e psiquiatria, e as relações entre ambas, assim como sobre a arte e o artista (reflexões sobre a sua própria actividade artística e a de outros escritores, tais como Macaulay, Flaubert, Antero e Joyce);

The Door, Marcos Alves, Historia Amorosa de um Homem de Genio, casos da série Quaresma, Decifrador, e outras ficções, para além dos textos que constam em anexo.

«Depuis Hölderlin et Nerval, le nombre des écrivains, peintres, musiciens, qui ont “sombré” dans la folie s’est multiplié”, escreveu Foucault (Histoire de la folie à l’âge classique. París: Gallimard, 1972, p.555. Sem querer discutir esta afirmação potencialmente tão produtiva, o certo é que temos agora disponível o material que nos permite avaliar com método a singularidade da personalidade de Pessoa, evitando assim conclusões precipitadas. É reconhecido o seu fascínio pela psiquiatria, fascínio partilhado com tantos outros escritores, bem como o facto de ter considerado a génese dos seus heterónimos de um ponto de vista psico-patológico, porém há que ter atenção que toda a generalização comporta um inevitável empobrecimento da análise. Antes de estabelecer filiações conviria, pois, ampliar a discussão concreta em torno do que Pessoa escreveu de facto sobre génio e loucura. A recente edição revela-nos que esse material é era muito mais extenso do que se imaginava e de uma densidade teórica e ensaística tão elevadas, que toda interpretação impressionista do «caso» Pessoa seria errónea e limitada. Existe agora o esboço de uma biografia intelectual e artística que vem reforçar a ideia do escritor activamente participante nas discussões do seu tempo e capaz de erguer uma nova imagem da sua época. Génio e loucura são temas que acompanharam Pessoa ao longo da sua vida e que permitem, por isso, revisitar uma parcela significativa da sua produção.

 

Bibliografia básica.

 

Krabbenhoft, Kenneth. «Fernando Pessoa e as doenças de fim de século», in A Arca de Pessoa – novos ensaios, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2007.

Lind, Georg Rudolf, «Fernando Pessoa e a loucura», in Estudos sobre Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.

Pizarro, Jerónimo. Fernando Pessoa – entre génio e loucura. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007.

 

 

Jerónimo Pizarro