Fradiquismo designa um conjunto de valores estéticos e de convicções existenciais que Fradique Mendes (FM), carismática figura de fim-de-século, corporizou e representou. Eça de Queirós (EQ) utilizou esta sua criação para, sobretudo a partir de 1888, introduzir na sua escrita a profícua mediação de uma voz-outra, propiciadora de um dinâmico dialogismo. Ora, um dos motivos chave que evidencia a importância do Fradiquismo na obra eciana reside nesta função de consciência dialogante e problematizadora que o (exercício de) estilo fradiquiano consubstancia, porventura mais do que nos temas do debate que Eça faz o seu duplo suscitar, os quais, permanecendo embora relevantes e interessantes, não são totalmente inovadores se comparados com os que atravessam a globalidade do texto eciano. Assim, o que melhor tipifica o estatuto estético-ontológico de Fradique é a sua condição de interlocutor por excelência, que propicia o cruzamento e o confronto de uma pluralidade de ideias, numa variedade de tons.Esta ‘vocação’ pode interpretar-se como uma espécie de projecção de um vincado traço do criador-Eça, que foi sempre um 'correspondente', não só no plano estrito da escrita mas, mais amplamente, ao nível das ideias, assumindo uma incessante atitude de abertura dialógica e comunicante, multiforme e cosmopolita, relativamente à cultura e aos valores do seu tempo. Por outro lado, Fradique não foi só um ‘intermediário' qualificado, tacticamente usado por Eça para se libertar da conjuntural anuência à disciplina da escola naturalista. O Fradiquismo deve ser assimilado numa perspectiva mais larga e estrutural que o isente dessa como que relação de causalidade com o debatido afastamento eciano do realismo-naturalismo.

Em síntese, ao mesmo tempo que constitui uma brilhante mediação que o Eça da maturidade utilizou para revitalizar diferentes outros motivos e procedimentos estilísticos e literários, o Fradiquismo configura-se como equivalente expressivo do aparecimento de uma fundamental dimensão de alteridade que terá, pelo menos, duas consequências. Por um lado, a adopção de uma atitude de desdobramento estético-literário propícia à sua representação e, por outro, o abandono, por parte de Eça-autor, do lugar de instância suprema que assegura a 'verdade' narrativa. É precisamente esta acepção do Fradiquismo, estratégica e conscientemente encenada pelo escritor que, desocultando uma inovadora propensão anti-monológica para a teatralidade e a pluralidade, vem fundamentar, ao nível teórico-textual, a coexistência de uma diversidade de instâncias discursivas em frequente contraposição, muitas vezes antagónica, sem a possibilidade de uma unidade estável e conclusiva, assim legitimando a inclusão que aqui se propõe do Fradiquismo na modernidade literária.

Acresce que a composição do Fradiquismo constitui uma ilustração quase programática de um conjunto de princípios – a consagração do valor do indíviduo livre e auto-suficiente, do seu direito a “ser absolutamente ele próprio, de fruir ao máximo a vida“ e, por conseguinte, uma valorização da singularidade subjectiva e da "personalidade incomparável", elementos que compõem essa mitologia individualista, cuja significação é, como se conhece, central no imaginário da cultura moderna.

Parte substancial do negativismo que caracteriza a heteróclita e "desancorada" personalidade fradiquiana – essa ausência de uma “direcção fecunda” – diagnosticada em função da inexistência (altamente desconcertante para os seus contemporâneos, incluindo Eça) de "um fim superior", que reduziu, ou mesmo anulou, a eficácia concreta das suas possibilidades de realização, pode ser tida como um sintoma dessa época dita de crise que foi o declinar do século XIX. Na verdade, e por mais paradoxal que pareça, o fim-de-século e, com ele, o Fradiquismo enquanto seu reflexo estético-cultural, "traduzia também a consciência aguda de que esses tempos eram tão originais que não podiam ainda ser vividos senão negativamente, pela fuga ao que neles emergia, quer dizer, o primeiro esboço de uma sociedade de massas, cuja simples visão provocava uma espécie de náusea, ao mesmo tempo social, política, espiritual para os que apercebiam essa emergência como o anúncio da morte do indivíduo" (LOURENÇO, 1993:320-321).

Nesta particular óptica, com efeito, o âmago mais significativo do Fradiquismo não só reside no indivíduo que o corporiza, como praticamente se reduz a esta incerta singularidade individual, na qual a 'lógica' dândi se inscreve como uma 'segunda pele'. Fradiquismo e Dandismo, constroem-se pois, de modo essencial, em torno da questão do sujeito o que, em última análise, os mostra como fenómenos culturais e literários inseparáveis de uma interrogação sobre a desconcertante identidade desse 'personagem' que, de forma única, os põe em cena.

Para além disto, é também verdade que, se a índole fradiquiana foi unanimemente considerada como tendo um fundo negativo, atribuído à congénita fluidez que a inibe e à falta de unidade que, do ponto de vista prático, a torna inoperante, não se pode dizer que essa apreciação seja isenta. Na realidade, ela surge como resultado da influência de alguns sistemas de ideias oitocentistas (positivismo, optimismo progressista, racionalismo idealista, etc.) que, no caso vertente, se alheiam da multiplicidade de formas e da variedade de particularidades, mais ou menos idiossincráticas, que identificam os valores individualistas, apressando-se a espartilhar o inesgotável manancial inerente a uma singularidade livre e subjectiva, segundo estreitos códigos normativos e semânticos, drasticamente redutores da sua “indeterminação constitutiva".

Mas permanecerá a avaliação da negatividade de Fradique tão acentuadamente depreciativa se for pensada de acordo com diferentes critérios mentais e culturais? Um exemplo poderá talvez documentar certo desfasamento preconceituoso que se pretende sugerir ter afectado a apreciação do Fradiquismo. Sabe-se que, para dissolver de vez as velhas e ilusórias certezas do passado por forma a criar uma "nova consciência definidamente portuguesa", o poeta-teorizador do nosso Modernismo apelará essencialmente à pluralidade e ao desenvolvimento de uma atmosfera de "desagregação mental" (PDE:193). Ora, esta verdadeira "flor de preço" para os poetas órficos será procurada através da prática desassombrada de várias atitudes que, muito embora convencionadamente negativas, ressurgem naquele específico contexto cultural, revigoradas e esteticamente revalorizadas. Trata-se aqui, evidentemente, da contradição, do paradoxo, da incoerência e, com elas, do desdobramento e da dispersão.

Acrescente-se que Fradique Mendes não deixa de ser também "a encarnação abstracta e impossível" de um ideal geracional. Neste sentido, o sentimento, como apontou Eduardo Lourenço, de "uma desvalia trágica, insuportável, da realidade nacional sob todos os planos" e a mágoa provocada pela sempre frustrante comparação entre a portuguesa mediocridade e a grandeza europeia pensante e culta - essa incontornável  referência mítica a que "chamam extasiados, A Civilização" -, são motivos que contribuíram para agravar esse desorbitadamente ambicioso ideal crítico que marcou toda a famosa geração que, por isso mesmo, acabou por se considerar vencida. É fácil intuir quanto o uso e abuso desta "crítica inclemente e sagaz" (ACFM:103), sistemática e sintomaticamente praticada por Fradique, pode "esterilizar” o impulso para a acção, inibindo as suas realizações concretas. Por outro lado, sabe-se como o auto-denominado fracasso geracional dos “Vencidos da Vida” foi sobretudo relativo, ou melhor, tendo em conta a invulgar excelência dos seus membros, o nível da sua alegada derrota não pode ser avaliado nos termos que usualmente aferem a vulgar mediania, mas naqueles outros, mais absolutos, que definem uma rara excepcionalidade. Por isso, embora corresponda a uma postura inegavelmente elitista, o vencidismo deve ser interpretado tendo como horizonte o sentido exigente que Eça lhe atribuiu, ao definir de forma emblemática a paradoxal essência do conhecido "grupo jantante": "para um homem o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou - mas do ideal íntimo a que aspirava"(CIFM:186).

O Fradiquismo deve, pois, ser relativizado em termos de 'cosa mentale', fenómeno no qual se interseccionam, fantasiosamente, o "sonho poético", a "transcendente ironia", e uma "vivaz invenção" (ACFM:114), mas que não prescinde daquele traço de bom gosto realista, lúcido e bem humorado, tão indissociável do seu criador. Através desta peculiar mistura, Eça faz-nos também perceber que o aristocratismo elitista personificado ao nível estético e intelectual pelo dândi Fradique, tendo legítima qualidade para opinar de forma tão crítica quanto pertinente sobre a realidade portuguesa que o cerca, não chega a ser capaz de alterar efectivamente o medíocre estado de coisas que tão eficazmente avalia.

Assim, o contorno e o valor da peculiar positividade veiculada por este "fino céptico" apenas podem ser vislumbrados pela negativa, ou seja, precisamente através dos fortes indícios de antecipação de que Fradique dá mostras. O seu inventor-Eça vislumbra já o que será a 'consciência infeliz' e dividida da modernidade, embora a sua capacidade visionária, por isso mesmo que se configura antes do que está para vir, se afirme sobretudo num espaço que representa o limiar de um ser-moderno, que apenas num tempo posterior a Eça virá a tornar-se plenamente afirmativo da sua condição.

 

 

Bibl.: Lourenço, Eduardo, O Canto do Signo. Existência e Literatura (1957-1993), Lisboa, Editorial Presença, 1993. Pessoa, Fernando, Páginas de Doutrina Estética, selecção, prefácio e notas de Jorge de Sena, Lisboa, Inquérito, 1946. – PDE. Queirós, Eça de, A Correspondência de Fradique Mendes, Obras de Eça de Queiroz, fixação do texto e notas de H. Cidade Moura, vol. 7, Lisboa, Edição "Livros do Brasil", s/d. – ACFM. Cartas Inéditas de Fradique Mendes e Mais Páginas Esquecidas, Porto, Lello & Irmão Editores, 1973. - CIFM

 

 

Ana Nascimento Piedade