Florbela d’Alma da Conceição Espanca é autora de uma obra quase inteiramente produzida na década de 1920, à qual, no entanto, Pessoa e os demais feitores do primeiro Modernismo português jamais fizeram qualquer referência – ainda que tenham, provavelmente, dela ouvido falar, pelo menos depois da morte de Florbela, quando uma ruidosa e duradoura polêmica, suscitada pela idéia de homenagear a poetisa com um busto em praça pública, invadiu as páginas de vários jornais, de Norte a Sul do país, no princípio dos anos 30 (José Régio manifestou-se sobre o caso, chamando então atenção para a originalidade da poesia florbeliana). Prova também de que ao menos o nome da poetisa não lhes era estranho está nas duas folhas dactilografadas (numeradas 66 A-39 e 66 A-40) que se encontram no espólio de Pessoa, na Biblioteca Nacional, em Lisboa, onde se lê um poema de seis estrofes intitulado À Memória de Florbela Espanca (isto embora sejam certamente do punho de outro poeta). Mas se é certo que Florbela Espanca não participou do movimento modernista e  nem sequer chegou perto das inovações poéticas a que Fernando Pessoa e os seus camaradas se arrojaram, também é verdade que ela os acompanhou, a par e passo, no gosto das grandes mascaradas e na adopção de uma postura esteticista que tende a louvar tudo o que seja ostensivamente factício. Com efeito, toda a escrita de Florbela revela-se prenhe de uma teatralidade que se realiza na pintura de seres e objectos deliberadamente artificiais, visivelmente estereotipados, produtos de uma hábil sofisticação da linguagem. Quer a sua poesia, quer a sua ficção narrativa, quer ainda a sua prosa confessional – a do diário e mesmo a epistolar – aparecem ostensivamente marcadas pelo preciosismo de flores diversas, de fúlgidos brocados, de diamantes e outras gemas cintilantes que ornamentam um cenário em que sempre se apresentam cenas melodramáticas, contrastes artificiosos, exageros às vezes surpreendentes e máscaras frequentemente compostas com o auxílio oportuno do biografismo, valiosa estratégia através da qual a escritora se projecta sistematicamente no universo factício da sua criação literária, conferindo a si própria, deste modo, uma espécie de aura mítica que a aproxima das suas personagens de ficção – bem à maneira, aliás, dos esteticistas do fin-de-siècle.

Como poetisa, Florbela Espanca cultivou, sobretudo, o soneto, forma exclusiva – que ela algumas vezes soube mesmo explorar até à perfeição – da produção que se apresenta nos seus três livros de poemas publicados: Livro de Mágoas (1919), Livro de Sóror Saudade (1923) e Charneca em Flor (editado postumamente, em 1931). Além disso, um amigo e admirador de Florbela, o professor italiano Guido Battelli, acrescentou à segunda edição de Charneca em Flor, em Abril de 1931, vinte e oito sonetos inéditos, da lavra da poetisa, que ali se distinguiam sob o título de Reliquiae (a estes sonetos foram ainda acrescentados, em edições posteriores, outros cinco, de maneira que o conjunto de Reliquiae ficou com um total de trinta e três sonetos). Toda a sua poesia põe em destaque um sujeito lírico que é assumidamente feminino e que se compraz, à maneira de Narciso, em contemplar-se e, sobretudo, em exibir-se, ostentando máscaras convencionais, convenientemente sustentadas por uma preciosa retórica: ora surge a máscara da princesa encantada, que espera pelo seu príncipe redentor; ora a da monja enclausurada, que se afasta do mundo exterior para mergulhar em si própria e dar largas à sua imaginação onírica; ora a de uma feiticeira amorosa, que busca num parceiro ideal a imagem invertida de si própria; ora, ainda, a de uma velha, desiludida e solitária, que projecta numa Morte idealizada e personificada os sonhos que, na vida, não consegue realizar.

Florbela dedicou-se também à ficção narrativa: compôs em 1927 os oito contos que reuniu sob o título de As Máscaras do Destino, livro dedicado ao seu irmão, Apeles Espanca, que morrera, vítima de um acidente de aviação, aos 6 de Junho do mesmo ano. Neste livro de luto, que a Livraria Maranus, do Porto, editou postumamente, em 1931, a morte constitui um tema de tal maneira obsidiante que as personagens parecem viver, paradoxalmente, apenas em função dela. Com efeito, por força de uma saudade e de uma evocação obsessivas, os protagonistas desses contos anulam-se para dar lugar aos seus entes queridos, que morreram. Assim, os vivos são mortos e os mortos são vivos: as identidades interpenetram-se e sugerem ao leitor um jogo de máscaras cambiantes que, aliás, o título do livro anuncia logo à partida. De 1927 e 1928 são os demais contos de Florbela Espanca, reunidos no livro O Dominó Preto, que a Livraria Bertrand editou em 1982. Aqui os enredos desenrolam-se em cenários citadinos e no interior de recintos fechados, preciosamente decorados, aos quais Florbela Espanca não se dedicou em parte alguma da sua obra senão, curiosamente, nos seus contos. E se, aparentemente, é o motivo da femme fatale que confere unidade às seis narrativas que aí se apresentam, uma leitura mais atenta revela a presença dominante de um motivo subliminar que garante a mais perfeita coesão dessas narrativas no seu conjunto: é o motivo da alienação, que caracteriza, sem excepção, todos os seus protagonistas. Empolgadas por alguma ideia fixa que as obceca (via de regra, as personagens entregam-se a paixões amorosas avassaladoras), essas criaturas de Florbela movem-se como autómatos ou máscaras vivas, sem qualquer naturalidade, num mundo que também é, todo ele, artificial, repleto de estereótipos, de arquétipos do Bem e do Mal. Finalmente, depois de passar pela experiência da poesia lírica e da ficção narrativa, Florbela Espanca experimentou também, no ano de 1930 – o seu último ano de vida –, a escrita de diário, gênero supostamente mais propício às confissões, às revelações de um sujeito que se quer identificar, conhecer-se a si próprio e, quiçá, dar-se a conhecer aos outros. Contudo, ainda que seja mais adequada aos apelos pessoais da expressão autobiográfica, a diarística também prescreve, como gênero literário, um certo protocolo ao qual Florbela, de resto, nunca se mostra alheia. Narcisismo, encenação, histrionismo, vontade de tragédia e exibicionismo – marcas distintivas de uma postura que é, à socapa, encarecida pela poética florbeliana – são os termos norteadores da performance da personalidade feminina que se auto-retrata no Diário do Último Ano, dizendo-se e contradizendo-se sem qualquer pudor, apresentando-se assim, deliberadamente, como um sujeito autoral que é regido pelo paradoxo e que parece desejar, antes de mais — ainda que a princípio o negue —, mostrar-se aos outros, aos que o podem ler. E se o paradoxo é, com efeito, a mais destacada figura de linguagem desse Diário de Florbela — afinal, é a figura que nos apresenta a deliberada ambigüidade, a identidade dúbia, entre frívola e profunda, da autora —, não será, contudo, o único atrativo retórico do texto. A própria autora confessa, logo no fragmento inicial, que o auto-retrato do seu "ser misterioso, intangível, secreto" — ser que sente tédio e que se identifica com a divisa "Attendre sans espérer" — não é senão o resultado da prática esteticista que lhe não permite abrir mão do "prazer de fazer frases". É a sofisticação da linguagem que, mais uma vez, inscreve a escrita de Florbela, e o autor textual por ela criado, num espaço lúdico situado entre a verdade e a mentira, entre a realidade e a ficção. Florbela Espanca suicidou-se com overdose de medicamento calmante, na noite de 7 de Dezembro de 1930, apenas duas horas antes de ter início o dia do trigésimo sexto aniversário do seu nascimento.

 

BIBL.: A Planície e o Abismo, Lisboa, Vega;  Universidade de Évora, 1997; CORREIA, Hélia, Florbela(teatro), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991; JUNQUEIRA, Renata Soares, Florbela Espanca: Uma Estética da Teatralidade, São Paulo, UNESP, 2003.

 

 

Renata Soares Junqueira