O génio particular de Pessoa explica-se, pelo menos em parte, pelos dois ambientes que o moldaram: Lisboa, onde passou os seus primeiros sete anos e meio e toda a sua vida de adulto, e Durban, na que hoje é a África do Sul, onde viveu durante o período da sua formação intelectual e emocional, dos sete aos dezassete anos. A sua personalidade de base definiu-se, sem dúvida, antes de ele ir com a mãe de Lisboa para Durban, na colónia inglesa de Natal, mas a sua produção literária resultou claramente do encontro, ou choque, entre esses dois ambientes com as suas línguas e culturas tão diversas – sendo que Durban, naquela altura, era mais inglesa nos seus costumes e atitudes do que a própria Inglaterra.
Fernando António Nogueira Pessoa nasceu a 13 de Junho de 1888, no dia de Santo António, o santo padroeiro de Lisboa, com as suas manifestações religiosas e profanas em homenagem ao santo e à própria cidade. O dia de Santo António é o dia de Lisboa e nenhum outro poderia ser mais apropriado para o nascimento de Pessoa, o escritor emblemático da sua cidade natal. Pessoa, em adulto, raramente saía de Lisboa e escreveu sobre a cidade quer directamente (sobretudo no Livro do Desassossego), quer através de uma memória imaginária, pela voz do estrangeirado Álvaro de Campos, que nas suas visitas à pátria, quando ainda «vivia» em Grã Bretanha, redigiu «Lisbon Revisited (1923)» e «Lisbon Revisited (1926)», dois dos seus poemas mais notáveis.
Os pais de Pessoa estimularam a sua formação cultural, cada um à sua maneira. A família vivia em frente do Teatro de São Carlos, onde Pessoa, em pequeno, talvez tenha assistido a um ou outro espectáculo. De qualquer modo Pessoa terá adquirido o seu grande gosto pela música graças ao pai, que era um apaixonado crítico musical do Diário de Notícias, para onde trabalhava à noite, sendo funcionário público de dia. A mãe, originária da Ilha Terceira, era uma mulher invulgarmente culta e ensinou-o a ler a escrever muito cedo. Mas os primeiros anos de Pessoa em Lisboa também foram marcados pelas experiências de perda e separação. Precisamente um mês depois do seu quinto aniversário, o pai morreu de tuberculose e, seis meses depois, morreu o seu irmãozinho. Entre as duas mortes, a família mudou para uma casa mais pequena. Um ano depois da morte do pai,a mãe conheceu o seu segundo marido, João Miguel Rosa, um oficial da marinha que partiria meses depois para o seu posto em Lourenço Marques, sendo posteriormente nomeado cônsul em Durban, capital da colónia inglesa de Natal.
A possibilidade de a mãe ir ter com o futuro marido a África e Fernando ficar para trás, ao cuidado de parentes, terá dado origem ao seu primeiro poema, em Julho de 1895:
À Minha Querida Mamã
Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci.
Por muito que goste delas,
Ainda gosto mais de ti.
Esta quadra é frequentemente citada como uma prova da devoção filial de Pessoa, mas também demonstra um amor invulgar pela pátria – «invulgar» porque não se espera que um garoto de sete anos, cujas relações pessoais se limitam ao núcleo familiar, tenha uma noção clara do que é uma nação, quanto mais uma ligação emocional com ela. Ao longo da vida, ainda que criticasse os portugueses por serem provincianos e achasse os políticos portugueses uma desgraça e o seu sistema económico um fiasco, Pessoa manteve sempre uma firme lealdade à sua pátria.
Em Fevereiro de 1896, Pessoa e a mãe, que tinha casado com João Miguel Rosa dois meses antes por procuração, chegaram a Durban. Ao fim de três anos na Convent School, uma escola de freiras francesas e irlandesas, Fernando ingressou na Durban High School, onde recebeu uma rigorosa e excelente educação inglesa. Apesar de estrangeiro, destacou-se de imediato como um aluno brilhante e quando, em 1903, fez o «Matriculation Examination» da Universidade do Cabo, ganhou o Prémio Rainha Vitória, para o melhor ensaio em inglês do exame. Havia 899 candidatos.
A experiência africana de Pessoa foi basicamente livresca. Embora estimado pelos colegas de escola, não participava nos desportos nem cultivava muitas amizades, e não parece que a cidade de Durban, ou as terras em redor, lhe tenham deixado uma impressão muito marcante. Entre as centenas de composições literárias que produziu em adulto, nunca se referiu explicitamente a África até ao ano da sua morte, quando, num poema que evoca a mãe a tocar piano na casa de Durban, Un soir à Lima, recorda como a ouvia enquanto contemplava, pela janela, o «grande luar da África». O ambiente de Pessoa, durante a sua estadia africana, era sobretudo o da literatura inglesa: Shakespeare e Milton, os poetas românticos – Shelley, Byron, Keats, Wordsworth – e Dickens ou Carlyle na prosa. Também lia e admirava Poe.
Por pouco Pessoa não se tornou um escritor inglês. O que o «salvou» para a literatura portuguesa foi a viagem de um ano que a família – Fernando, a mãe, o padrasto e os meios-irmãos – fez a Portugal em 1901-1902. Foi aí que parece ter escrito os seus primeiros poemas em português (sem contar a já referida quadra dedicada à mãe), um dos quais foi publicado num jornal lisboeta em 1902. Tanto em Lisboa como na Ilha Terceira, onde a família foi visitar a irmã de sua mãe, Pessoa, que de repente dispunha de muito tempo sem trabalho escolar para o preencher, inventou vários jornais a brincar, que continham notícias, anedotas, comentários e poemas, assinados por uma equipa de jornalistas fictícios, alguns dos quais com uma biografia própria.
Regressado a Durban, Pessoa, já com 15 ou 16 anos, inventou Charles Robert Anon, o seu primeiro alter-ego com uma obra criativa substancial, que incluía poemas, contos e ensaios. A este proto-heterónimo inglês veio juntar-se o bem mais prolífico Alexander Search, quando Pessoa ainda estava em Durban ou logo após o seu regresso definitivo a Lisboa, no Outono de 1905. Search, que apesar de escrever em inglês tinha supostamente nascido em Lisboa e no mesmo dia que Pessoa, exprimia, como C. R. Anon, as preocupações intelectuais e as ansiedades existenciais de um jovem no limiar da vida adulta.
Em Dezembro de 1904, obteve, no «Intermediate Arts Examination», a nota mais alta da Província de Natal, que lhe teria merecido uma bolsa do governo para estudar em Oxford ou Cambridge não fora um pequeno senão: os candidatos à bolsa deviam ter frequentado uma escola do Natal nos quatro anos anteriores. Devido à viagem da família a Portugal em 1901-1902, Pessoa foi desqualificado. Então, em vez de ir para Inglaterra, o excepcional aluno de dezassete anos regressou a Lisboa, onde frequentou o Curso Superior de Letras durante quase dois anos antes de o abandonar. Não teve qualquer aproveitamento em termos lectivos, tendo faltado aos exames no primeiro ano por estar doente e no segundo ano devido a uma greve académica. Durante o Curso e posteriormente, passava longas horas na Biblioteca Nacional a estudar filosofia grega e alemã, as religiões do mundo, psicologia e darwinismo. Leu uma grande variedade de obras da literatura ocidental, sobretudo em francês (Hugo, Baudelaire, Flaubert e Rollinat, entre outros), em inglês e em português, preenchendo com as suas leituras nesta última língua uma séria lacuna causada pela sua educação sul-africana.
E escrevia sempre: poesia, ficção, textos de filosofia, sociologia e crítica literária. Nos primeiros anos de regresso à pátria, escrevia pouco em português exceptuando os trabalhos de Faculdade, mais frequentemente em francês (o seu solitário heterónimo francês, Jean Seul, surgiu por volta de 1907) e sobretudo em inglês. A sua ambição, mesmo depois de ter voltado a Lisboa, era ser um grande poeta da língua inglesa, tendo continuado a produzir poemas nessa língua até uma semana antes da sua morte.
O inglês de Pessoa era o inglês dos livros que lia, e estes incluíam romancistas contemporâneos, como H. G. Wells, Arthur Conan Doyle e W. W. Jacobs, mas faltava-lhe a naturalidade selvagem de uma língua materna. O seu inglês, ainda que fluente no sentido mais literal da palavra, era o seu inglês – uma variante da língua mais literária, ligeiramente arcaica e por vezes um pouco afectada. A poesia que escreveu neste inglês é interessante pelas ideias e as emoções que exprime, e até pelo seu hábil uso de artifícios poéticos. Mas, como uma câmara desfocada, o inglês de Pessoa introduz uma pequena perturbação que prejudica o resultado final.
A língua inglesa proporcionou a Pessoa um rendimento modesto mas constante, tendo ganho a vida como tradutor de textos vários e redactor de cartas em inglês e francês para firmas com negócios no estrangeiro. Também tentou enveredar, ele próprio, pela actividade comercial, sobretudo como intermediário entre as minas portuguesas e os investidores estrangeiros, mas não parece ter obtido grandes lucros, se é que obteve algum. Onde o inglês melhor o serviu, porém, foi na prosa e na poesia que escreveu em português. Se a literatura anglo-americana influenciou o que Pessoa escrevia, a língua inglesa em si mesma influenciou o modo como o escrevia. O inglês, com mais frequência do que as línguas latinas, repete palavras – para obter maior clareza, não complicar a sintaxe, ou produzir um efeito retórico – e Pessoa adoptou esta prática em português (no Livro do Desassossego, por exemplo). E se é verdade que os seus sonetos ingleses empregam uma sintaxe rebuscada oriunda dos seus modelos elisabetanos, é o inglês moderno que parece ter inspirado a fala directa, sem rodeios, que caracteriza a poesia atribuída a Alberto Caeiro e a Álvaro de Campos.
Após a sua primeira vaga de criação poética em português, quando tinha treze ou catorze anos (há mais de quinze poemas deste período que chegaram até nós), Pessoa não voltou a versejar na língua pátria (salvo raras excepções) até 1908, ano em que completou vinte anos. Em 1910 talvez já escrevesse tanta poesia em português como em inglês e dois anos depois publicou, na revista Águia, do Porto, três artigos sobre a nova poesia portuguesa. Fernando Pessoa seguia já o seu destino literário. Em 1913 publicou a primeira prosa criativa, um trecho do Livro do Desassossego, obra em que trabalharia durante o resto da vida, e em 1914 publicou, em português, os seus primeiros poemas da maturidade. Foi também nesse ano que nasceram quatro dos maiores poetas portugueses do século XX: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, os heterónimos, e Fernando Pessoa, o ortónimo. Este último assinava Fernando Pessoa mas já não era o mesmo Pessoa em carne e osso que vivia, na altura, com a tia Anica.
Pondo de parte toda a auto-ficcionalização, não há dúvida de que ocorreu uma profunda transformação, ou culminação, na arte literária de Pessoa. Se Caeiro, Campos e Reis eram o resultado mais visível dessa transformação, pois representavam algo totalmente novo, a heteronímia em si não era novidade. Além dos supramencionados heterónimos que escreviam em inglês e francês, dois dos jornalistas portugueses inventados por Pessoa na sua adolescência – Dr. Pancrácio e Gaudêncio Nabos – «escreveram» fora das páginas dos jornalecos onde as suas «carreiras» começaram, e o Sr. Nabos permaneceu «activo» até 1913, pelo menos. Vicente Guedes, o primeiro heterónimo a escrever extensamente em português, foi inventado já em 1908. A heteronímia remonta, na verdade, à infância de Pessoa, quando, com apenas seis anos, escrevia cartas a si próprio em nome de um certo Chevalier de Pas.
Tudo isto se torna fascinante quando penetramos mais a fundo no sistema heteronímico, que inclui um astrólogo (Raphael Baldaya), um frade (Friar Maurice), um filósofo (António Mora), vários tradutores (Charles James Search, Thomas Crosse, Vicente Guedes), diaristas (Bernardo Soares), um fidalgo que se suicida (Barão de Teive), mas ainda não explicámos (se é que isso é possível) o que terá desencadeado a explosão de 1914, que transformou Pessoa num grande escritor. Já referimos os estudos escolares e as vastas leituras que absorveu em criança e em jovem, durante e após o seu breve percurso universitário, devendo nós acrescentar a estes ingredientes os simbolistas franceses (Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e Maeterlinck, um belga que escrevia em francês), que leu entre 1909 e 1912. Foi também neste período que Pessoa mergulhou ainda mais na poesia portuguesa, desde as cantigas medievais (algumas das quais traduziu para inglês) até às obras contemporâneas de Teixeira Pascoaes (1879-1952) e outros saudosistas, que proclamavam a saudade nacionalista como um valor espiritual e uma energia criativa. O que parece, porém, ter provocado esta complexa mistura de aquisições linguísticas e literárias, produzindo uma espécie de reacção alquímica, foi Walt Whitman, talvez a mais importante influência individualizável na poesia de Pessoa e, de um modo mais geral, em Pessoa como artista.
Na sua curta vida, que durou apenas dois números, ambos publicados em 1915, o Orpheu introduziu em Portugal aquilo a que mais tarde se chamaria Modernismo. Alguns membros do grupo fundador, como Mário de Sá-Carneiro e Santa-Rita Pintor, estavam em contacto com os cubistas e futuristas de Paris, enquanto Pessoa – líder não oficial do grupo – se mantinha a par, através das suas leituras, das últimas novidades literárias na Grã Bretanha, Espanha, França e noutros países (obteve, por exemplo, exemplares da Blast). O Orpheu suscitou reacções de indignação e escárnio na imprensa e nos meios literários tradicionais, mas o génio da escrita pessoana foi silenciosamente reconhecido por alguns.
Em 1917 Pessoa publicou, sob o nome de Álvaro de Campos, um incendiário Ultimatum no primeiro e último número de Portugal Futurista, que foi imediatamente apreendido pela polícia. Embora não fosse pró-alemão, o clamoroso manifesto vituperava os estadistas ingleses, franceses e de outros países aliados, tanto como Guilherme II e Bismarck. Depois de verberar a época actual pela sua «incapacidade de criar grandes valores», o Ultimatum propõe a «abolição do dogma da personalidade» e afirma que «nenhum artista deverá ter só uma personalidade», já que o «maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças». O maior artista, por outras palavras, terá múltiplas personalidades («quinze ou vinte» estipula o manifesto mais adiante), exactamente como Fernando Pessoa.
Não era a primeira vez que Pessoa previa, ou promovia, a sua própria grandeza literária. No primeiro dos dois artigos sobre a poesia portuguesa que publicou em 1912, vaticinava o advento iminente de um «Grande Poeta» que remeteria «para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões». Fica claro, retrospectivamente, que Pessoa preparava o cenário para a sua entrada grandiosa (ou entradas, graças aos heterónimos). Mas a grandeza pessoal, sob a forma de imortalidade literária, foi apenas uma parte do seu sonho. No seguimento desses artigos, e igualmente publicado em 1912, Pessoa também previu o surgimento em Portugal de uma «Nova Renascença», que se derramaria para a Europa, «como da Itália para a Europa se derramou a outra Renascença».
Pessoa reformularia, posteriormente, a sua visão de uma Renascença portuguesa na doutrina do Quinto Império, nova glosa de uma velha profecia bíblica, do Livro de Daniel, capítulo 2.
O nacionalismo de Pessoa era tão construtivo quanto ardente. Não tinha ilusões sobre o relativo atraso de Portugal no panorama europeu e queria ajudar o país a pôr-se ao nível do resto da Europa. Tomou as culturas inglesa e francesa como modelos, pelo menos em certos aspectos, e considerou que o mundo anglófono era a melhor via para difundir a cultura portuguesa no estrangeiro. Já em 1909 planeara publicar, numa tipografia fundada com uma pequena herança deixada pela avó paterna, um grande número de obras clássicas e contemporâneas portuguesas traduzidas para inglês, bem como uma colecção de clássicos estrangeiros em português, incluindo as obras completas de Shakespeare. A tipografia, denominada «Empresa Íbis», deveria ainda publicar revistas, opúsculos políticos, obras científicas, e – last but not least – numerosas obras de Pessoa e seus heterónimos, em inglês e português. Mas os seus talentos empresariais deixavam muito a desejar, e a Empresa Íbis fechou as portas pouco depois de as abrir.
Em 1919, Pessoa encheu um caderno com abundantes planos para uma empresa ainda mais grandiosa, que deveria chamar-se Cosmópolis ou Olisipo e que se destinaria a fomentar o intercâmbio cultural e comercial entre a Grã-Bretanha e Portugal. Empresa diversificada, com escritórios em Lisboa e Londres, forneceria variadas informações a comerciantes e turistas e prestaria uma vasta gama de serviços – tais como tradução e interpretação, assistência jurídica, publicidade e relações públicas, pesquisa académica e comercial, redacção e revisão de textos, e muitos outros. Nas actividades exercidas em Lisboa incluir-se-iam uma firma dedicada à promoção de produtos portugueses e à montagem de novas indústrias, uma escola com cursos de gestão e de formação cultural, e uma editora que publicaria livros de autores contemporâneos e clássicos da literatura em edições económicas, bem como revistas, anuários e guias.
O que saiu finalmente de todos estes planos, em 1921, foi uma pequena editora e agência comercial chamada Olisipo, que pouco mais fez do que publicar meia dúzia de livros, entre os quais dois folhetos dos poemas ingleses de Pessoa, uma reedição de Canções, colectânea de versos do assumidamente homossexual António Botto, e um opúsculo do ainda mais assumido e ousado Raul Leal, cuja Sodoma Divinizada fazia exactamente o que o seu título prometia. Um grupo conservador de estudantes católicos lançou uma campanha contra essa «literatura de Sodoma», os dois livros foram apreendidos e Pessoa contra-atacou, publicando duas folhas volantes (uma das quais de Álvaro de Campos) onde criticava a pretensa moral dos estudantes e defendia com paixão os seus autores. Este episódio revela mais uma faceta do programa pessoano para sacudir e educar a sociedade portuguesa e até, se possível, a civilização europeia em geral, visto que um livrinho como o de Raul Leal teria suscitado a indignação pública em praticamente qualquer outro lugar do continente. Embora as tendências políticas de Pessoa fossem geralmente conservadoras, a sua defesa dos direitos do indivíduo – mesmo no campo sexual – era muito avançada para a época.
Em 1924, Pessoa fundou Athena, que nos seus cinco números demonstrou exemplarmente como a sua autopromoção literária se harmonizava com o seu desejo de elevar a cultura portuguesa. A revista, a começar pelo título e a elegante apresentação gráfica, era uma perfeita ilustração da Nova Renascença prevista por Pessoa doze anos antes e um mostruário do Grande Poeta – Fernando Pessoa –, que deveria liderar o renascimento cultural de Portugal.
O renascimento neo-grego que estes dois heterónimos deveriam prefigurar baseava-se no Neopaganismo, um sistema filosófico e religioso inscrito na sua poesia e explanado em textos teóricos assinados por Reis e António Mora, um heterónimo concebido como um «continuador filosófico» de Caeiro.
Talvez por causa da sua consciência implacável do caos geral da existência, Pessoa, não obstante a sua mania de duvidar de tudo, acreditava, ou queria acreditar, numa dimensão espiritual. Embora não soubesse o que havia (se havia alguma coisa) por detrás ou para além do que somos e vemos, Pessoa não tinha interesse nenhum em viver como o comum dos homens. Passou a vida inteira buscando a verdade, quando não estava a inventá-la, e esta busca conduziu-o a uma grande variedade de disciplinas e práticas esotéricas. Quanto aos astros, era um astrólogo apaixonado, produzindo centenas de horóscopos de amigos, parentes, figuras da história e das artes, e de si próprio. Mais significativamente, leu dezenas de livros e escreveu centenas de páginas sobre o misticismo, sobre tradições herméticas como a Kabala, a Rosa-Cruz e a Maçonaria, e sobre a Teosofia, a alquimia, a numerologia, a magia e o espiritismo.
Este interesse pelas ciências ocultas, aliado ao seu patriotismo, deu origem ao que Pessoa designou por «nacionalismo místico», resumido na doutrina do Quinto Império e imortalizado na Mensagem, versão lírica e esotérica de Os Lusíadas. A Mensagem, única obra da sua poesia em português que chegou a publicar em vida, não foi um mero exercício de saudade da glória de Portugal na época das descobertas. Aquela glória havia de ser também o destino futuro da nação e esse futuro era agora, como dizia o verso final: «É a hora!»
Pessoa, na verdade, estava muito envolvido na sociedade e na política do seu tempo, e era através da palavra escrita que tomava as suas posições, que incluíram, no seu último ano de vida, em 1935, uma afronta directa ao regime de Salazar, quando foi proposta (e depois aprovada) uma lei que proibia a Maçonaria e outras associações secretas.
E a vida privada de Pessoa? As suas relações familiares? Os seus amores? Pessoa mantinha laços estreitos com os parentes, vivendo até aos 30 anos com várias tias (quando não morava em quartos alugados) e com a mãe e a meia-irmã depois de estas terem regressado da África do Sul em 1920, a seguir à morte do padrasto. E Pessoa era leal aos seus amigos, na sua maioria gente ligada à literatura, com quem se encontrava nos cafés. Não se abria, porém, nem com os amigos nem com a família. Era bom conversador, espirituoso e, a seu modo, generoso, mas as suas emoções e a sua vida interior foram canalizadas para a sua escrita. Teve uma só ligação amorosa, que também foi em grande medida vivida através da escrita, numa série de cartas de amor trocadas em 1920 e de novo em 1929. Pessoa, sobretudo na segunda fase da relação, deleitava-se com brincadeiras mais literárias do que amorosas, assinando uma das suas cartas como Álvaro de Campos e jurando noutras que estava prestes a entrar num manicómio. A namorada, Ofélia Queiroz, contou, muitos anos depois, que Pessoa, a quem conhecera num escritório onde os dois trabalhavam, se declarou pela primeira vez com uma vela na mão e palavras pedidas de empréstimo a Hamlet: «Oh, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! Emextremo, acredita!» Acaso terá sido o simples nome dela que levou Pessoa a ter a ideia de a cortejar?
Richard Zenith