A atracção e investigação, imemorial, dos mistérios do além intensifica-se e generaliza-se no séc. XIX e F. P. fará parte dessa legião de seres curiosos ou desassossegados que procuraram desvendar o oculto ou até comunicar com espíritos desencarnados, para terem a certeza de que a alma sobrevive, ou para receberem respostas pessoais e mensagens ou ainda para compreenderem melhor os mistérios da vida fora do plano físico e as potencialidades psíquicas humanas.
Foi dos Estados Unidos da América, em 1847, que irrompeu a febre espírita de um modo bastante sensacional e pretensamente sobrenatural, a partir de duas irmãs Fox, que faziam ouvir toques de uma alma do além e que mais tarde vieram a confessar terem sido fraudulentas, antes de terminarem as suas vidas desgraçadamente. O principal impulsionador europeu será Allan Kardec (1805-69), um pedagogo discípulo de Pestazolli, que em 1857, publica o seu Livro dos Espíritos, a que se seguirão outros traduzidos e lidos avidamente por todo o mundo.
Em Portugal, o espiritismo desenvolve-se rapidamente, começando a surgirem grupos e revistas (pelo menos desde 1879), embora a doutrina católica da impossibilidade de comunicação dos mortos com os vivos denunciasse, mais até do que fraudes, o perigo de se contactarem os anjos caídos ou espíritos demoníacos, algo aceite pelos próprios espíritas, pois já A. Kardec advertira quanto aos «espíritos perturbadores». Estes receios manter-se-ão até hoje, devido ao perigo da abertura da alma ao invisível desconhecido. E se bem que uma nota na tradução da obra Conferências Teosóficas, de A. Besant, atribuída, infundadamente, a F. P., por Gaspar Simões e Moutinho da Almeida, explique tais aspectos, eles surgem também no Livro do Desassossego, como «a mão viscosa das larvas do astral, dos estranhos entes de corpos diversos e das presenças desencarnadas da matéria do plano físico».
Daqui a necessidade de uma investigação maior, como F. P. escreve: «Lentamente, se o ocultismo – oh, ilusão – se estudar, vir-se-ão achando explicações e razões para actos em aparência produzidos por espíritos», o que lhe parece então impossível (Espólio de Pessoa na Biblioteca Nacional: 53A-97). Mesmo assim F. P. adverte do interesse do estudo dos centros nervosos ("fisiopatológicos") e teoriza sobre as possíveis influências das circunstâncias e do médium, pois, admitindo a influência de um espírito, este «este não fala. Raro nos fala. Sugere respostas cuja formação se oferece no inconsciente do medium».
Numa sociedade, porém, que se estava a libertar da tutoria religiosa milenária, ameaças, medos ou exigências metodológicas já não poderiam reter quer a mera curiosidade geral quer a procura da verdade por métodos mesmo que pouco seguros e assim vemos reputados cientistas (frequentemente ludibriados) como W. Crookes, W. Barrett, O. Lodge, C. Flammarion, Lombroso e Ch. Richet, afadigando-se em sessões com médiuns escreventes, incorporantes, clarividentes ou projectivos. Em 1882 funda-se em Londres a Society for Psychical Research para submeter a critérios científicos as experiências e teorias e que publicará os relatos de milhares de casos. F. Myers, um dos presidentes, realçará e profetizará a importância da telepatia intercomunicadora dos mundos, mas já C. Richet ecoará a fraca qualidade das mensagens, sobretudo quanto a descrições da vida no além, ao dizer com humor: «se a sobrevivência consiste em ter a inteligência que mostram estes desencarnados, então prefiro não sobreviver».
Em Portugal não sabemos que livros e revistas terão passado pelas mãos de F. P. Na sua biblioteca há obras de W. Barrett, G. Delanne, Gustave Gelley, António Lobo Vilela bem como o Espiritismo Contemporâneo, de Martins Velho, editado na A. M. Teixeira, onde F. P. colaborara. Outra obra que encontramos, com uma pertinente análise do espiritismo e do ocultismo, é a do Dr. J. Grasset, L’ Occultisme Hier et Aujoud’hui. Le merveilleux préscientifique, comentada por F. P.(54-69, 70), e onde, distinguindo o hipnotismo, o sugestionamento e a pretensa acção de espíritos, Grasset atribui a causa dos fenómenos aos próprios participantes, consciente ou inconscientemente. Anote-se que F. P. teorizará também sobre as várias hipóteses das causalidades obtidas na interacção entre o médium e o experimentador-interrogador. De revistas psíquicas, só encontramos na biblioteca de F. P., The Psychic Research Quarterly, vol. I, nº 1, com um artigo interessante Further evidence of Supernormal and possible Discarnate agency, onde J. Arthur Hill conclui pela actividade de espíritos desencarnados já que, confessa, «nunca conseguimos descobrir qualquer paralelismo entre os nossos próprios pensamentos e o que era dito pelo médium».
Mas da época conhecemos, por exemplo, A Aurora d’Alem Tumulo, 1879, dos Açores, A Luz, Jornal de Estudos Psycologicos, publicada desde 1886, a Estudos Psychicos, revista mensal de animismo e espiritismo experimental, fundada em 1905, a Luz e Caridade, revista mensal de propaganda de Espiritismo cristão, fundada em 1917, órgão do Centro Espírita de Braga, a Veritas, revista de Iniciação nas Sciencias psiquicas, educação moral, intelectual e social, fundada em 1921, a Revista de Espiritismo, fundada em 1927, publicação bimestral de Metapsíquica, Esoterismo, Hipomagnetismo, Ética e órgão da Federação Espírita Portuguesa, nascida no ano seguinte ao do 1º Congresso Espírita Português, realizado em Maio de 1925, quando já havia núcleos em muitas cidades.
A aproximação de F. P. dever-se-á, para além do seu precoce interesse pelos mistérios e ciências ocultas, à sua natural aceitação de que admitindo-se a existência de presenças desincarnadas elas deverão ser «capazes de agir nas mentes das pessoas incarnadas» (54A-67, td.) e, sobretudo, à sua capacidade de despersonalização, de ser outros e muitos, de ser uma mão aberta à inspiração invisível, como o diz em mais de um poema, tal nos Passos da Cruz «Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela/ E oculta mão colora alguém em mim», ou num texto importante, provavelmente já de 1935: «Médiuns somos nós todos, e cada quanto menos tem um cordel que o prende a mão oculta que nos move. Médium qualquer pode ser, e todos o somos» (53B-20, in R. C.).
Assim, ao viver entre 1912 e 14 na casa da tia Anica, terá entusiasmado a família com sessões de espiritismo para as quais, segundo o primo Eduardo Freitas Costa, teria sido o próprio F. P. a levar uma pequena prancheta. E em 1916, F. P., numa carta à tia Anica, confessa que tendo sido, pela sua lucidez ou cepticismo, um atrasador dessas sessões, agora, pelo contrário experimentava escritas mediúnicas ou automáticas e visão: «É que tudo isto não é o vulgar desenvolvimento de qualidades de médium. Já sei o bastante de ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer, que o Mestre desconhecido, que assim me vai iniciando, ao impor-me essa existência superior, me vai dar um sofrimento muito maior do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo que vem com a aquisição destas altas faculdades». Expectativas que não se confirmariam.
As críticas ao espiritismo («deixe os espíritas e os teósofos orientais. São quanto muito público para iniciados. Nada mais são. Acredite» (2719M3-6), bem como ao ocultismo, à cabala e à maçonaria, que surgem no começo da sua tentativa de restaurador do paganismo transcendental, como nos textos de Mora, de R. Baldaya e R. Reis, ou nos intitulados 300, nos quais são vistos como desagregadores da civilização europeia, culminam com um extenso texto, talvez do final de 1917, designado por Um caso de mediumnidade. Contribuição para o estudo da actividade subconsciente do espírito (54A-78 a 82, dactilografado mas trabalhado inicialmente em manuscrito, 54B-23, e com diferenças significativas, pois a parte final, que consubstancia e denomina uma tese contra o ocultismo, não existia).
Neste texto disseca a génese (com raízes histerico-neurasténicas e depressivas) e o desenvolvimento da sua mediunidade, na qual refere a auto-sugestão pela leitura de obras de ocultismo e de teosofia, duas sessões de cartomancia e uma hipnose (o que não deixa de ser significativo quanto aos perigos das hipnoses deixarem mais aberto o paciente a sugestões e intromissões), apontando ainda os concomitantes psíquicos (em que minuciosamente anota dezanove, dos quais destacaremos a dispersão mental, fraqueza da vontade, apagamento da afectividade e irritabilidade). Em seguida, analisa as comunicações mediúnicas considerando-as mera acção do subconsciente dos indivíduos em causa, concluindo em onze alíneas, das quais destacamos que «a arte não se faz pelo subconsciente em liberdade, mas pelo subconsciente dominado (...) O espiritismo devia ser proibido por lei, pela mesma razão que as publicações obscenas e os espectáculos tendentes a suscitar nos cérebros fracos o vício e o crime». Na antepenúltima alínea, porém, admite: «quanto muito, os fenómenos do ocultismo e o espiritismo deviam ser, como na Antiguidade, pertença de uma seita restrita, e não lançados pela sociedade dentro, como se fossem para toda a gente». O texto termina com uma defesa da Natureza e dos sentidos limitados que temos, sob pena de violarmos as leis divinas, e finaliza com um Graecia Mater, dirige-nos!, bem de acordo com a sua fase neopagã.
E se de facto até meados de 1917 há cerca de duas centenas de escritas automáticas ou de comunicações em perguntas e respostas, onde se destacam um par de ensinamentos com mais originalidade e valor, “assinados” pelo platonista de Cambrige do séc. XVII Henry More, elas desaparecem depois, embora, ocasionalmente, F. P. assinale a irrupção de algum pensamento escrito inspirado, com os desenhos do triângulo ou da lemniscata. Dado que noutros textos aponta «o carácter fortemente anti-científico destas experiências», negando também que «dos fenómenos de escrita automática, etc., se poderá deduzir a existência dos espíritos», ou dizendo: «faz-se uma sessão, o espírito do falecido X é evocado, a voz do médium, a mesa de pé de galo ou a prancheta anuncia que apareceu. Como sabemos que apareceu?», concluindo que nunca saberemos se as comunicações provêem dos presentes, de outras forças (elementais) ou de outros espíritos, nem se são verdadeiras ou falsas» (54A-61, td.), deveremos ver a explicação de tal registo intermitente na inspiração superior que sentia espaçadamente, e sobre a qual se interrogava: «Não meu, não meu é quanto escrevo. / A quem o devo? / De quem sou o arauto nado?» (118-5).
Quanto às críticas e preconceitos contra o ocultismo e a maçonaria, eles acabam por ser substituídos por um crescente estudo de tais ensinamentos e metodologias de aproximação ao subtil e ao espiritual. A sua posição religiosa é a do gnosticismo cristão, e a iniciática a dos Templários e da Ordem de Cristo, como escreve em 1935 a Casais Monteiro, onde reafirma: «há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível de bruxaria, que é magia também) caminho este extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico (...)» (54-19).
No último ano da sua vida sai no Diário de Lisboa, de 4/2/35, a sua defesa da Maçonaria contra o projecto-lei salazarista de proibição das associações secretas (e lembremos que a Federação Espírita Portuguesa seria suspensa em 7/12/53 e apreendidos os seus imóveis e património). Ora nesse mesmo ano, em que avultara a nota auto-biográfica contendo a sua posição religiosa e iniciática, encontramos um texto inédito, bem confessional e esclarecedor:«O próprio movimento espiritista, absurdo em tantas formas e de tantos modos, perigoso em tantas e tantos, teve e tem a sua utilidade. Desvirtua e rebaixa o ocultismo, mas em certo modo o reflecte. Alguns, que começaram pelo espiritismo, seguiram mais tarde melhor caminho, em que contudo não haveriam entrado se não fora o espiritismo que posteriormente renegaram» (54B-2) .
Bibliografia: Obras de A. Kardec, F. Myers, Georges Gonzalès, René Trintzius, Martins Velho, António J. Freire, António L. Vilela, Isidoro Duarte dos Santos, ou as críticas de Herbert Thurston, Carlos M. Heredia, Lucien Roure, René Guénon, L’ Erreur Spirite, Bô Yin Râ, Le Livre de l’ Au-Delà.
Pedro Teixeira da Mota