Segundo a grande escritora do modernismo inglês, Virginia Woolf, ‘On or about December 1910, human nature changed…’. No contexto português, o que terá levado a mudanças, com a implantação da República a 5 de outubro de 1910, foi o aumento da visibilidade da mulher na res publica, quer como agente de mudança com as reivindicações feministas de Adelaide Cabete e Ana de Castro Osório, quer como produtora cultural num mundo em que a renovação modernista iria em breve assomar.

Porém, num panorama em que a revolução do Orpheu foi da exclusiva responsabilidade de artistas do sexo masculino,  coloca-se inevitavelmente a pergunta do papel que poderá ter tido a produção feminina. Se atendermos ao facto de, tal excepção que confirma a regra, Fernando Pessoa possuir apenas um heterónimo feminino, uma jovem corcunda cujo único trecho conhecido (“Carta da Corcunda ao Serralheiro”) é ‘naturalmente’ em prosa, as assimetrias do posicionamento feminino e masculino quanto à actividade artística ficam desde logo sobejamente elucidadas. Enquanto que a autora da carta tem um corpo aleijado de nascença e se mantém à janela (um topos amplamente glosado na literatura portuguesa), o destinatário encontra-se numa posição de supremacia, sende detentor de ‘chaves’ e nem sequer a vê.

            Alargando este caso pessoano para o panorama das letras portuguesas, torna-se igualmente clara a posição excêntrica e a invisibilidade da mulher. Porém, na prática, algumas escritoras da época do modernismo conseguiram desenvolver estratégias para contornar a marginalização a que estariam votadas (‘de nascença’ segundo a óptica masculina predominante), afirmando-se como obras de grande pujança literária.

Os três grandes vultos femininos do modernismo português são sem sombra de dúvida Florbela Espanca, Judite Teixeira e, mais tardiamente, Irene Lisboa. Todas elas são escritoras que funcionaram à margem, não apenas do modernismo tal como tem sido definido até hoje (ou seja, prioritariamente através de ‘grupos’, o que tende a excluir as mulheres), mas também à margem do surto das poetisas dos anos 20, cujos expoentes máximos de uma sensibilidade ‘moderna’ são na década de 20, Virgínia Vitorino e Fernanda de Castro (esta última mulher de António Ferro). Numa década extremamente fértil para a mulher nas letras, a crítica rapidamente constrói um ‘guetto’ para as mulheres-poetas, ao conceder apenas um lugar de segunda às ‘poetisas do amor’, como vieram a ser frequentemente rotuladas.

Das três escritoras excepcionais que inauguram a nossa modernidade, apenas a trajectória de Florbela Espanca conheceu uma plena, embora atribulada e póstuma, integração no cânone. Em vida, publicou Livro de Mágoas (1919) e Livro de Soror Saudade (1923). Postumamente vieram a lume Charneca em Flor (1931) e Reliquiae (1931, integrado na segunda edição de Charneca em Flor). Além destas colectâneas de sonetos, escreveu dois livros de contos, As Máscaras do Destino (1931) e O Dominó Preto (1982) e um diário, Diário do Último Ano (1981).

Os versos, contidos na forma tradicional do soneto, aproximam-se das preocupações temáticas de um Sá- Carneiro, desdobrando-se em tentativas de obsediantes (des-)construções da identidade. A sua consagração como poet(is)a singular fica registada, por exemplo, com um lugar na Antologia de Poemas Portugueses Modernos, de Pessoa e Botto, logo em 1935, sendo a única mulher  a figurar nesta antologia, com o notável soneto “São mortos os que nunca acreditaram”.

A radicalização da proposta poética de Espanca confirmou-se com Charneca em Flor, onde um conteúdo cada vez mais subversivo assinala um desejo de romper o equilíbrio formal do soneto e questiona os limites do ‘eu’, tema caro ao modernismo. Subjacente a uma poética que encerra um incontido desejo de extravasamento, nomeadamente através da sensualidade fremente que percorre esta última colectânea, vislumbra-se a incessante procura de maneiras outras de estar no mundo. Assim sendo, a poetisa rejeita os seus alter egos criados por olhares masculinos – ora Soror Saudade virginal e muda, ora princesa incompreendida – e despe (literal e metaforicamente) estas identidades redutoras para imaginar e criar, numa elaborada ‘performance’ modernista, realidades novas. Confrontando-se com o mito do génio de estro masculino no celebérrimo ‘Ser Poeta’, Florbela surge então como sujeito poético que se pode visionar ‘liberta’ num rodopio de imagens. Paradigmático a esse nível é sem dúvida o soneto ‘Loucura’, publicado no conto ‘A Margem dum Soneto’, que configura a necessidade da loucura genial para libertar ‘tantas almas a rir dentro da minha’.

 Ainda mais radical porventura, e por isso menos susceptível de integração no cânone literário até ao início da década de 1990, afigura-se o projecto de Judite Teixeira com a publicação de três obras poéticas Decadência (1923) Castelo de Sombras (1923) e Nua (1926). Decadência, apreendido pelo Governo civil de Lisoba em 1923, ao mesmo tempo que as Canções de António Botto e a Sodoma Divinizada de Raul Leal, explora ousadamente o desejo feminino em suas várias configurações. Como directora da revista Europa em 1925, revista essa de que sairam apenas três números, Teixeira tem uma proposta vanguardista para a época, ao tentar colocar a mulher em primeiro plano, (por exemplo a capa do número 2 reproduz um quadro de Milly Possoz).

A poesia de Teixeira, amiude centrada sobre o corpo feminino, convoca um imaginário lésbico (‘A estátua’, ‘Perfis decadentes’), que gradualmente se revela como não sendo meramente onírico. Em Nua (título que porventura terá algum eco do soneto florbeliano ‘Charneca em flor’, soneto esse publicado pela primeira vez na revista Europa) o desafio às normas sexuais vigentes fica patente na secção intitulada ‘Volúpia’ que joga com a ambiguidade da identidade sexual do/a amante. Nessa mesma obra, o poema ‘A Infanta de mãos pálidas’ já não tem por pano de fundo um sonho e chega a encenar um diálogo com a amada.

Se tematicamente a poesia de Teixeira representa uma sexualidade feminina fora dos parâmetros da época, formalmente também se desvia da tradição poética, com uma clara tendência para o verso livre. Neste seu posicionamento excêntrico, Teixeira lembra em certos passos  a trajectória de um Alvaro de Campos. Aliás, esta reivindicação artística do direito e da necessidade de ‘sentir tudo de todas as maneiras’ fica registrada na conferência ‘De Mim’ (1926), em que cita Oscar Wilde.

Completamente descurada pela crítica até hoje, Teixeira publicou igualmente as duas novelas de Satânia (1927). A primeira, ‘Satânia’, tem um enredo semelhante ao famoso Lady Chatterley’s Lover, que cronologicamente antecede por pouco. Se as convenções sociais são desafiadas neste texto ímpar, também se lê nas entrelinhas o questionamento da ortodoxia sexual a todos os níveis, malgrado um desenlace em que a protagonista acaba por se afogar. Já na segunda novela, ‘Insaciada’, o enredo culmina num suicídio masculino, o que permitiria a continuação da amizade entre as duas protagonistas femininas.

Se Espanca e Teixeira são as expoentes mais notáveis do primeiro modernismo na sua vertente feminina, a sua luta pelo poder simbólico passa ainda nitidamente por uma tentativa de identificação com a concepção tradicional do artista, cujo génio e loucura se manifestam ao longo da obra.  É preciso aguardar o início da década de 30, altura em que surgem as primeira publicações de Irene Lisboa na Presença, para que se comece a delinear uma sensibilidade que ponha em causa o mito do artista genial.

Dado que hoje em dia o semi-heterónimo Bernardo Soares faz parte integrante da galeria de figurações pessoanas, conviria considerar em que medida Irene Lisboa lhe corresponde com o diário Solidão (1939). Com efeito, breves fragmentos, quer de Bernardo Soares quer de Irene Lisboa, foram publicados na Presença durante a década  de 30. A poesia de Lisboa (que deve aqui ser mencionada, embora o primeiro livro de versos, Um dia e outro dia, date apenas de 1936) inaugura uma nova fase da escrita feminina na transição para o segundo modernismo, pela forma inédita como põe em causa as conturbadas relações entre o conceito de génio e as suas complexas ramificações a nível de género literário e género sexual.

É facto assente que o modernismo pretende alargar as concepções do ‘eu’. Este movimento de vanguarda  prima pelo seu experimentalismo e abertura ao ‘outro’ mas, paradoxalmente, até agora o experimentalismo de autoria feminina tem sido fortemente menosprezado e marginalizado pela história da literatura, à excepção de Espanca cuja obra de sonetista dificilmente é passível de integração no espaço por excelência masculino do modernismo tal como tem sido entendido até hoje. A absurdidade de tais contradições tem de ser urgentemente avaliada e repensada. Em pleno século XXI, temos de imaginar uma definição mais moderna do modernismo, que seja suficientemente abrangente para abarcar a sensibilidade e a produção feminina (e não apenas pseudo-feminina) em todas as suas complexidades. Só assim as três escritoras aqui referidas poderão passar a ocupar o lugar de relevo que por direito lhes cabe no modernismo português.

 

Bibliografia

Garay, René Pedro Judith Teixeira : o modernismo sáfico português (Lisboa : Universitária Editora, 2002),

Pazos Alonso, Cláudia Imagens do Eu na Poesia de Florbela Espanca, (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997).

Sapega, Ellen W ‘Para uma aproximação feminista do modernismo português’, Discursos, 5 (1993): 67-80

Soares Junqueira, Renata Uma estética da teatralidade (São Paulo: Editora UNESP, 2003)

 

 

 

Claudia Pazos Alonso