Por volta de 1930 Pessoa escreveu dezenas de trechos para este ensaio inacabado, em inglês, sobre o fenómeno e as condições da celebridade póstuma. O seu título alude a um obscuro grego que, em 356 a.C., lançou fogo ao Templo de Diana em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo, com a intenção declarada de imortalizar o seu nome. Os éfesos proibiram, por isso, que o nome do criminoso fosse pronunciado, o que só aumentou a sua notoriedade e garantiu a sua sobrevivência. Na actualidade, a figura de Heróstrato não costuma ser muito recordada, mas até ao século XX era uma referência histórica e cultural amplamente conhecida.

O ensaio de Pessoa foi inicialmente concebido como um estudo da celebridade nas suas várias manifestações — desde a fama alcançada por um herói militar, um político de sucesso, um actor ou um desportista, até ao renome de um líder religioso como Cristo ou um escritor como Homero ou Milton — e com respeito não apenas a indivíduos mas também a nações (por exemplo, a Itália durante o Renascimento ou Portugal na época dos Descobrimentos) e às respectivas línguas. A atenção do autor acabou, todavia, por incidir quase exclusivamente na celebridade literária, e não se afigura que as suas considerações neste domínio fossem desinteressadas. Com efeito, as condições indicadas como propícias para que um escritor se imortalize são exactamente aquelas que Fernando Pessoa reunia. Ele gozava de um certo respeito no meio intelectual lisboeta, mas até 1934 não publicara nenhum livro em português e quase era mais conhecido como crítico e comentador político do que como poeta. Os jovens da Presença, fundada em 1927, chamavam-lhe mestre, mas a revista coimbrã apenas representava os gostos dos seus directores, que, por muito que admirassem o seu caro colaborador de Lisboa, não percebiam a verdadeira importância da heteronímia (à excepção, talvez, de Adolfo Casais Monteiro). Ora, o escasso reconhecimento público dado ao poeta e o facto de a sua obra não ser devidamente compreendida podiam, segundo o seu ensaio, ser interpretados como sinais do seu génio, qualidade que se caracteriza por uma «inadaptação ao ambiente», precisamente por ser «geralmente incompreendido» pelo meio em que vive (Pessoa, Heróstrato e a Busca da Imortalidade, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p. 67). O citado trecho explica que Shakespeare «foi admirado no seu tempo como um homem espirituoso» mas «não como um homem de génio. Como poderia sê-lo? Era possível compreender o criador de Falstaff, mas não o criador de Hamlet.» Um grande escritor, aquele que ficará para a posteridade, encontra-se num grau adiantado, num estado efectivamente futuro, em relação àquilo que os seus pares escrevem e o público lê e aprecia.

O génio não se mede pela quantidade de obras produzidas e o ensaio adverte que a variedade «é a única desculpa da abundância. Ninguém deveria deixar vinte livros diferentes, a menos que seja capaz de escrever como vinte homens diferentes» (op. cit., p. 102). Esta auto-referência evidente lembra a previsão de Álvaro de Campos, no «Ultimatum», de que toda uma época encontrará expressão, já não através de 30 ou 40 poetas, mas sim na obra de um ou dois poetas, «cada um com quinze ou vinte personalidades». O princípio da representatividade, como condição favorável à canonização de um autor, foi mais explicitamente formulado em «Impermanence», um ensaio também redigido em inglês, antes de 1920, e deixado como um grupo de fragmentos não articulados. Convém considerá-lo em conjunto com o mais extenso «Erostratus», pois aborda as mesmas questões.

O princípio da novidade, pelo qual um génio ultrapassa a sua época, poderia parecer em contradição com o da representatividade, mas o artista superior que sobrevive devido a este último deve representar «todo o tipo de tendências e correntes» (em «Impermanence», op. cit., p. 219), o que naturalmente incluirá as vanguardas. E o maior escritor de todos será universal, representando elementos que atravessam todas as épocas. A fina argumentação de «Erostratus» resolve o paradoxo de um artista poder ser, ao mesmo tempo, representativo e inovador, tipicamente humano e também excepcional, com a seguinte afirmação: «A verdadeira novidade que perdura é a que toma todos os fios da tradição e os tece novamente num padrão que a tradição seria incapaz de criar. As ideias essenciais do génio são tão antigas como a sua base, que é a existência da humanidade» (op. cit., p. 91). É evidente que Pessoa — com os seus estilos que abrangiam, entre outros, o classicismo horaciano de Ricardo Reis, o simbolismo praticado pelo ortónimo na década de 1910, os 35 Sonnets de tipo shakespeariano, as odes futuristas do primeiro Álvaro de Campos e a escrita grau-zero de Alberto Caeiro — ambicionava essa «novidade que perdura» e que distingue os grandes imortais da literatura.

A noção de um ranking de escritores e das suas obras — com critérios objectivos que os classificam como maus, médios, bons ou geniais — talvez vá contra o espírito iconoclasta de alguns modernistas, pouco preocupados com os cânones literários. Em contrapartida, o critério pessoano de que o artista maior reunirá as mais díspares correntes, o que implica a relativização da inovação como necessidade primordial (o grande génio, alega o seu ensaio, nunca é um precursor [op. cit., p. 116]), pode ser equiparado à estética pós-modernista, caracterizável pelo gosto da citação e a mistura de estilos, bem como por um concomitante cepticismo quanto à possibilidade de se ser absolutamente novo. «Erostratus», com a sua insistência na primazia da tradição, sem a qual nenhuma inovação frutífera seria possível, lembra o ensaio de T. S. Eliot, «A Tradição e o Talento Individual» (1919), e prefigura a tese de Harold Bloom em A Angústia de Influência (1973).

 

 

 

 

Richard Zenith