Identificação
Carta enviada de Paris, no dia 20 de Junho de 1914.
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Paris 20 junho 1914
Meu Querido Fernando Pessoa,
Não sei em verdade como dizer-lhe todo o meu entusiasmo pela ode do Álvaro de Campos que ontem recebi. É uma coisa enorme, genial, das maiores entre a sua obra – deixe-me dizer-lhe imodesta mas muito sinceramente: Do alto do meu orgulho, esses versos são daqueles que me indicam bem a distância que, em todo o caso, há entre mim e você. E Eu já me considero tão grande, já olho em desprezo tanta coisa à minha volta... Perdoe-me. Mas só assim eu posso indicar-lhe a justa medida da minha admiração. Não se pode ser maior, mais belo, mais intenso de esforço – mais sublime: manufacturando enfim Arte, arte luminosa e comovente e grácil e perturbante, arrepiadora com matérias futuristas, bem de hoje – todos prosa. Não tenho dúvida em assegurá-lo, meu Amigo, você acaba de escrever a obra-prima do Futurismo. Porque, apesar talvez de não pura, escolarmente futurista1 – o conjunto da ode é absolutamente futurista. Meu amigo, pelo menos a partir de agora o Marinetti é um grande homem... porque todos o reconhecem como o fundador do Futurismo, e essa escola produziu a sua maravilha. Depois de escrita a sua ode, meu querido Fernando Pessoa, eu creio que nada mais de novo se pode escrever para cantar a nossa época. – Serão tudo mais especializações sobre cada assunto, cada objecto, cada emoção que o meu amigo tocou genialmente. Em suma: variações sobre o mesmo tema. Eu quero percorrendo a ode destacar-lhe alguns dos versos que mais me abateram de admiração. Este verso fechando a 1.ª parte é uma fulgurância genial.
«Ah! como eu desejaria ser o souteneur d’isto tudo!»
Podia a ode não conter mais beleza alguma que só isto, quanto a mim, a imortalizaria.
Depois, como é belo e – de resto – de acordo com as teorias futuristas:
«Um orçamento é tão natural como uma árvore, E um parlamento tão belo como uma borboleta.»
Outra coisa enorme, duma emoção clara, e feminina, gentil:
«Up-la-ho jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!»
Ainda lhe cito como admirável, entre muitas outras, a passagem:
« A fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios» etc.
Outra maravilha o final com as suas onomatopeias.
Do que até hoje eu conheço futurista – a sua ode não é só a maior – é a única coisa admirável. O lê-la, creia, meu querido Amigo, foi um dos maiores prazeres da minha vida – pois fica sendo uma das peças literárias que mais sinto, amo e admiro. Rogo-lhe só que acredite nas minhas palavras e que elas estão longe ainda de traduzir todo o meu entusiasmo. A minha pena, confesso-lhe, é só uma: que não seja o nome de Fernando Pessoa que se escreva debaixo dela – isto apesar de todas as considerações. Não acho a ode um excerto (ou excertos). Acho-a pelo contrário – tal como está – um todo completo, perfeito em extremo, em extremo equilibrado. Depois de tudo isto, meu Amigo, mais do que nunca urge a Europa!...
Mando-lhe junto uma poesia minha. É bastante esquisita, não é verdade? Creia que traduz bem o meu estado de alma actual2 – indeciso não sei de quê, «artificial» – morto – mas vivo «por velocidade adquirida» – capaz de esforços mas sem os sentir: artificiais, numa palavra. Cada vez, meu querido amigo, mais me convenço de que escreverei dois livros: Céu em Fogo e Indícios de Ouro... Depois...? ... Não me «vejo» nesse depois...
O Pacheco vai-se embora, coitado, é claro, por causa da falta de dinheiro (não lhe diga que lhe disse isto). Ele fez ultimamente umas sanguíneas sobre a Duncan que são muito belas.
Peço-lhe a você que escreva, fale dos meus versos e não se esqueça do meu pedido pelo qual torno a pedir ainda muitas desculpas.
Dê muitas saudades ao Vitoriano Braga de quem em vão tenho esperado a prometida carta.
Admirável a poesia do Guisado que ontem também recebi. Admirável.
Um grande, grande abraço do seu
Mário de Sá-Carneiro
O Franco e Pacheco agradecem as suas saudades e enviam-lhas de novo.
P. S. Os versos que lhe envio hoje parecem-me a coisa minha que, em parte, mais poderia ter sido escrita por você. Não lhe parece? Diga. E diga detalhadamente do valor da poesia, pois eu ignoro-o. Não se esqueça!
1 Ref. a citação de Platão e o parêntese do burro puxando a nora, etc.
2 Isto muito mais sobre o soneto «Apoteose» do que sobre a poesia «Quasi».
Classificação
Dados Físicos
Dados de produção
Dados de conservação
Palavras chave
Alfredo Guisado
Carlos Franco
José Pacheco
Vitoriano Braga