O paganismo politeísta de Caeiro provém de uma concepção pluralista da Natureza. Como diz Mora: «A religião pagã é politeísta. Ora a natureza é plural» (OPP 175). Este pluralismo, porém, parece dissolver-se, em Caeiro, num aparente monismo panteísta que parece divinizar, à maneira de Spinoza, o aspecto transiente e visível de Deus contido nos seus atributos, a natura naturata, sem nos elucidar sobre a realidade do seu aspecto eterno, substancial e criativo: natura naturans. «Mas se Deus é as flores e as árvores / E os montes e sol e o luar, / Então acredito nele …» (OP 208). Bem vistas as coisas, «Deus está em toda a parte excepto em si próprio» (OPP 38). Se Deus é idêntico ao Universo, então será meramente um nome para o Universo, o que tornará o panteísmo uma modalidade do ateísmo.
Os estóicos, para quem a teologia era uma parte da física, acreditavam firmemente na unidade e divindade da Natureza, cujo motor identificavam com o lógos spermatikós, veículo da Providência. No entanto, os estóicos não têm inconveniente em pluralizar a vis divina, aceitando a existência dos di immortales, o que parece contraditar o monismo assumido. Parece ser que cada deus não é senão a manifestação de uma mesma e única deidade sob diferentes nomes e roupagens. Tal pluralismo poderá justificar a multiplicidade heteronímica de Fernando Pessoa: «Assim eu me acomodo / Com o que Deus criou, / Deus tem diverso modo / Diversos modos sou» (OP 533). Na carta a Meneceu, Epicuro, defensor do pluralismo, diz-nos que a existência dos deuses é evidente, dado o conhecimento manifesto que deles temos. A teoria epicurista das «imagens» divinas coloca a sua apreensão num nível semelhante ao da percepção sensorial directa, o que permite a Ricardo Reis, corrigindo o objectivismo absoluto de Caeiro, afirmar «a crença na realidade exterior e absoluta dos Deuses antigos» (OPP 112). Tal posicionamento parece levá-lo a uma etapa remota da teologia helénica, anterior à reductio ad absurdum do antropomorfismo processada pelo pré-socrático Xenófanes. Lucrécio, o divulgador e sistematizador romano do epicurismo, é bem claro: poder-se-á chamar ao mar Neptuno, às searas Ceres, e usar o nome de Baco para designar o vinho, sempre que nos guardemos de contaminar o espírito com a torpe superstição religiosa. No entanto, por vezes, para complicar ainda mais as coisas, Reis parece enveredar por um posicionamento evemerista: « creio (…) na possibilidade do homem ascender a deus» (OPP 148). Segundo Lucrécio, os deuses, que vivem nos intermundia, nas suas sedes quietae, livres de qualquer perturbação, passando «em paz inalterável a sua plácida existência e a sua vida serena» (II 1093-94), não se ocupam minimamente com os homens e não regem o mundo. Não há, portanto, nenhuma razão para os temer. Caeiro não tem inconveniente em dar um lugar no seu panteão ao deus do Cristianismo, não ao sangrento Cristo de Velázquez cantado por Unamuno, mas ao cândido Menino Jesus, que é «a Eterna Criança, o deus que faltava» (OP 210). Ricardo Reis vai-lhe no encalço, integrando Cristo no seu panteão – e contrariando a aversão de António Mora, para quem «O cristismo é a inversão dos valores humanos» (OPP 185): «Cristo é um deus a mais, / Talvez um que faltava» (OP 255); «Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia / Como tu, um a mais no Panteão e no culto, / Nada mais, nem mais alto nem mais puro / Porque para tudo havia deuses, menos tu» (OP 271). Mas Pessoa e os seus heterónimos sabem perfeitamente que a reconstrução integral do paganismo é tarefa árdua: «Uma reconstrução real do paganismo parece tarefa estulta em um mundo que de todo, até à médula dos seus ossos, se cristianizou e ruiu» (OPP 146).
Luís de Oliveira e Silva
BIBL.: LONG, A.A. & SEDLEY, D.N. (2005) Les philosophes hellénistiques, Paris, Flammarion, 3 vls. ; LUCRÉCIO (1984) De Rervm Natvra, ed. Eduard Valentí Fiol, Barcelona, Bosch; Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, Porto, Lello, 1986.