Arquivo virtual da Geração de Orpheu

A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Z

 

 

A temática da doença está presente na obra toda de Pessoa, tanto na ortônima quanto na heterônima.  A obsessão da doença aparece nos escritos pessoais do poeta (notas íntimas, cartas a amigos e a médicos), em seus diagnósticos alargados à escala do homem em geral (escritos filosóficos) e da sociedade (escritos sociológicos e políticos). A doença ela mesma é freqüentemente tematizada em sua obra poética.

Em sua existência, Pessoa atravessou várias crises de depressão. A mais grave foi talvez a que ocorreu entre o segundo semestre de 1914 e o primeiro de 1915, e que ele descrevia em suas cartas a Armando Cortes-Rodrigues. Ele aí fala de “uma abulia absoluta ou quase absoluta”, “ao nível do Livro do Desassossego”, no qual ele trabalhava então intensamente e que ele definia como “uma produção doentia”.

Essa depressão tinha várias agravantes. “Lá fora, é a guerra”, dizia ele. Nele mesmo, outra guerra grassava: ele desejava unificar, por autodisciplina, os elementos divergentes de seu caráter, incompatíveis com a alta missão humanitária e patriótica à qual se sentia destinado. Tudo indica, portanto, que a explosão em quatro pessoas, ocorrida segundo ele em março de 1914, numa noite que ele chamou de “triunfal”, só foi “triunfal” enquanto ficção poética. Para o homem Pessoa, essa “explosão para dentro” nada resolveu. Pelo contrário, a descrição de sua “doença”, em cartas imediatamente posteriores à dispersão heteronímica, é sempre acompanhada do desejo de unificar sua personalidade, condição para alcançar a desejada “saúde”.

A própria heteronímia, concebida originalmente como um jogo que alcançaria, ao mesmo tempo, o objetivo estético de suprir uma “falta de literatura” em seu país, e o objetivo psicológico pessoal de compensar uma falta de unidade e de coerência, desembocou numa angustiante falta de ser. A heteronímia não curou Pessoa. Pelo contrário, como tudo o mais, ela é suspeita de morbidez: “É, não sei se um privilégio ou uma doença, a constituição mental que a produz”, escreveu ele, por volta de 1930, num dos prefácios possíveis às suas obras completas ((Páginas íntimas e de auto-interpretação, Ática, s/d, p. 95).

As referências à sua “doença” são mais numerosas na obra ortônima e no Livro do desassossego. A progressiva publicação dos poemas inéditos atribuídos a Fernando Pessoa “ele mesmo” expõem-no como constantemente depressivo. Na edição de sua Poesia 1902-1917 (Assírio & Alvim, 2005), podemos contar dezenas de ocorrências das palavras “doença” e “doente”. Apenas alguns exemplos: “A minha alma doente” (26-7-1910); “Corpo funéreo doente da vida” (22-6-1912); “Vaga sensação doente” (19-7-1914); “E sinto no meu ser como uma doença” (21-12-1914); “Um sonho eterno adiado para doente” (6-3-1915); “Adoeço de vida” (31-7-1915); “Meu pensamento adoece sempre” (idem); “Mas a minha alma é que é doente” (5-6-1917); “Coração doente, coração doente, coração doente...” (25-7-1917).

A depressão pessoal do poeta se inscreve num contexto mais largo, sociológico e cultural, que ele examina em seus escritos íntimos, filosóficos e políticos. Tais reflexões se assemelham a outras análises e prognósticos acerca da civilização ocidental, que proliferaram no fim do século XIX e início do XX. A ideologia do progresso, fundada sobre as conquistas científicas e técnicas desse período, tinha como contraponto o sentimento da decadência, expresso por numerosos filósofos, historiadores e escritores. Os estudos da patologia animal inspiravam o estudo de uma pretensa patologia social, suscetível ou não de tratamento.

Em sua juventude, Pessoa impressionou-se muito com a obra Dégénérescence, de Max Nordau (1899). Esse livro, que teve um êxito considerável, denunciava os poetas, os artistas, os revolucionários e os anarquistas como degenerados, perigosos para a civilização. Nordau via o decadentismo como uma doença social, “uma grave epidemia intelectual, uma espécie de peste negra”, cujos sintomas ele descrevia, para estabelecer, em seguida, um “diagnóstico” e um “prognóstico”. A temática da doença, individual ou coletiva, é pois característica daquela virada de século. Ela está presente em autores como Schopenhauer, Nietzsche, Freud (O mal-estar na civilização) e Spengler (A decadência do Ocidente), entre outros.

Sobre a questão da doença pessoal e coletiva, as colocações de Pessoa coincidem com as de Nietzsche. O filósofo  também se debateu, a vida toda, com a obsessão da doença, o medo da loucura e a busca compensatória da saúde. Em Humano, demasiadamente humano, ele escrevia: “Seria o que eu vivi - a história de uma doença e de uma convalescença - unicamente minha experiência pessoal?” Zaratustra será o convalescente que canta, e toda a busca do filósofo irá na direção da “grande saúde”. Sua reflexão geral sobre o niilismo e a vontade de potência pode ser vista como o alargamento, em termos filosóficos, dessa temática pessoal e geracional.

Como Nietzsche e outros pensadores do mal-estar na civilização, Bernardo Soares estabelece um diagnóstico: “Desde o meio do século dezoito que uma doença terrível baixou progressivamente sobre a civilização. Dezassete séculos de aspiração cristã constantemente iludida, cinco séculos de aspiração pagã perenemente postergada - o catolicismo que falira como cristismo, a renascença que falira como paganismo, a reforma que falira como fenómeno universal. O desastre de tudo quanto se sonhara, a vergonha de tudo quanto se conseguira, a miséria de viver sem vida digna que os outros pudessem ter conosco, e sem vida dos outros que pudéssemos dignamente ter. Isto caiu nas almas e envenenou-as” (II, 204).

Desse diagnóstico decorre a proposta de um movimento neopagão. Na apresentação do “neopaganismo”, o heterônimo António Mora explica seus fundamentos: “Vivemos uma vida que já perdeu de todo a noção de normalidade, e onde a higidez vive por uma concessão da doença. Vivemos em doença crónica, em anemia febricitante. O nosso destino é o de não morrer por nos termos adaptado ao estado de (perpétuos) moribundos” (Páginas íntimas e de auto-interpretação, Ática, s/d, p. 300).

A heteronímia pessoana foi, entre outras coisas, a encenação de uma alternativa: “saúde” grega ou “doença” cristã. Como Nietzsche em O Anti-Cristo, Pessoa atribui a infelicidade do homem ocidental ao cristianismo, ou mais precisamente, ao “cristismo” (não é o próprio Cristo que é incriminado, mas seus seguidores). Num texto de apresentação do “sensacionismo”, escrito provavelmente em 1916, ele dizia que “a longa doença chamada cristianismo” tinha feito com que os homens perdessem “a sensação da realidade” e a “visão directa e lúcida das cousas” que tinham os gregos e os romanos (Páginas íntimas e de auto-interpretação, Ática, s/d, p. 170). O neopaganismo pessoano não era um simples programa estético, apenas um dos numerosos neoclassicismos que floresceram em seu tempo, mas um programa de salvação pessoal e civilizacional.

O desdobramento em heterônimos e a teorização posterior desse fenômeno foram um recurso heróico visando à saúde mental. Não podendo suportar todas as contradições que seu raciocínio e sua auto-análise obsessiva lhe mostravam, ele “transbordou”. Assim como, do ponto de vista psicanalítico, cada heterônimo correspondia a um encaminhamento pulsional particular, cada um de seus alteregos assumiu uma via filosófica própria. O poeta tentou colocar cada heterônimo (ortônimo incluído) numa posição senão isenta da doença ocidental, pelo menos suportável sem excessivas contradições. Mas todos eles apresentam sintomas neuróticos ou psicóticos.

Fernando Pessoa “ele mesmo” sofre de melancolia e da sensação de ausência de si mesmo; Ricardo Reis sofre de depressão e abulia; Álvaro de Campos é histérico e ciclotímico em sua juventude, depressivo em sua maturidade; Bernardo Soares sofre de tudo isso ao mesmo tempo. Os quatro são decadentes, pois mesmo na vertente futurista de Álvaro de Campos, o ortônimo detecta a atração que os decadentes têm pela força, pelo dinamismo e pela saúde. A doença de que todos sofrem é psíquica. O mal-estar em que vivem é o mal-pensar em que sentem, diz o ortônimo, reconhecendo que “há doenças piores do que as doenças”, “angústias mais reais do que as que a vida nos traz”. “Sentir a vida convalesce e estiola”, diz Álvaro de Campos no poema “Opiário”. Quanto a Bernardo Soares, este reivindica a doença absoluta: “Doem-me a cabeça e o universo” (II, 170).

A filiação de todos esses doentes ao mestre Alberto Caeiro é uma busca de saúde. Caeiro seria a salvação: “Alegrai-vos, todos vós que chorais na maior das doenças da História! O grande Pã renasceu!” (Páginas íntimas e de auto-interpretação, Ática, s/d, p. 332). O mestre parece possuir o segredo da saúde: “Ah, como os mais simples dos homens / São doentes e confusos e estúpidos / Ao pé da clara simplicidade / E saúde em existir / Das árvores e das plantas!” O mundo real, a natureza, são para ele a saúde; já o conceito de Natureza, com maiúscula, é para ele “uma doença de nossas idéias”. O segredo residiria na supressão do pensamento, que faz adoecer o pensador: “O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso”. Pré-socrático, nominalista, pré-metafísico, Caeiro estaria isento da doença ocidental posterior.

Mas a grande saúde de Caeiro é factícia. Caeiro é um plano de saúde intelectual, e não um sujeito sadio. A saúde e a doença não são simplesmente vividas pelo ser natural que ele pretende ser; elas são pensadas em termos de lógica binária, uma não podendo existir sem a outra. No conjunto dos poemas de Caeiro, as alusões à sua boa saúde física e mental são tão numerosas e explícitas que parecem suspeitas. Como bem disse o ensaísta Eduardo Lourenço, Caeiro é uma “ficção consoladora”, “a cura fulgurante para o que não tem cura” (Pessoa revisitado, Porto, Editorial Nova, 1973, pp. 37 e 55). Em outro ensaio, o mesmo crítico observa que Caeiro representa uma tentativa de escapar às “duas doenças” (a do pensamento e a da alma) e de eludir a desconfiança ontológica com relação às palavras. Se aceitamos, com Eduardo Lourenço, que Caeiro não passa de uma ficção, somos levados a ver a realidade onipresente da doença na obra pessoana.

Embora Pessoa não tenha encontrado, em suas reflexões, a cura para sua “doença”, encontrou, dizendo-a, uma saída para a mesma. Muitos fragmentos do Livro exaltam as virtudes do “dizer”. Bernardo Soares indica o caminho pelo qual Pessoa salvou-se: “A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa” (II, 261). Se encontrar as palavras para dizer o sofrimento é um caminho de saúde, encontrar as palavras exatas da poesia e colocá-las à disposição dos outros é a função benfazeja dos poetas.

 

Leyla Perrone-Moisés