Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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Semanário de crítica literária e artística prolongou-se, de 1934 a 1940, por 326 números, tendo sido sucessivamente dirigido por Artur Inês, João Antunes de Carvalho, Ferreira de Castro, Rodrigues Lapa, Brás Burity, Adolfo Barbosa, Guilherme Morgado e Manuel Campos Lima.

O Diabo apresentava-se como um periódico “rebelde às ideias feitas e mumificadas em século de escravidão mental e social.” (…) Declarava que não era um “jornal político, mas antes uma tribuna elevada do Pensamento Português” e que pugnava pela “Arte nos seus novos e múltiplos aspectos.” Esta linha editorial está em consonância com a ideologia libertária professada pela maioria dos seus fundadores, a qual se manteve, grosso modo, durante os primeiros três anos de publicação.

O contexto político-social condicionou o teor de O Diabo. A consolidação do Estado Novo, que vira aprovada a Constituição de 1933, o aumento da repressão no nosso país, o fortalecimento da censura, a ascensão do nazismo, a guerra civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial foram preocupações recorrentes dos jovens que nele colaboraram.

O seu percurso editorial não foi linear: à primeira fase, impulsionada por escritores libertários, seguiu-se uma segunda, na qual pontificava Rodrigues Lapa (nº 73 / 140), eventualmente aquela que se revelou, em termos artístico-literários, a mais profícua. O desentendimento daquele ensaísta com o editor conduziu à sua demissão e a um subsequente período incaracterístico. No último ano de publicação (nº 275 / 326), prevaleceu em O Diabo uma linha que se identificava com os princípios consignados pelo realismo socialista; os jovens que a enformavam assumiam o materialismo dialéctico e histórico como catalisadores da compreensão e transformação da sociedade e do universo. Por outro lado, um artigo de Álvaro Cunhal intitulado “Nem Maginot nem Siegfried” (nº 285), propondo uma equidistância relativamente aos dois blocos que se digladiavam na Segunda Guerra Mundial, gerou ampla controvérsia, tendo-se registado então o abandono dos escritores anarquistas, exarado numa carta publicada pelo Diário de Lisboa (20/1/1939),bem como de outros que se não identificavam com a instrumentalização da arte para fins políticos.

A abrangência foi uma das constantes deste periódico, tendo sido nele equacionados os diferentes saberes: filosofia (António Sérgio, Abel Salazar, Sant’Anna Dionísio), educação, música (Fernando Lopes Graça, Luís de Freitas Branco, teatro (Redondo Júnior), cinema (Roberto Nobre), história (Vitorino Magalhães Godinho, Fernando Piteira Santos), divulgação científica (Dias Amado e Ruy Luís Gomes), crítica de arte. O esperanto, a cultura brasileira, o feminismo, a liberdade individual versus a colectiva e a abolição da pena de morte tiveram também nele uma tribuna activa. As suas páginas foram ainda enriquecidas por inquéritos, entrevistas, polémicas, números especiais, caricaturas e a divulgação de inéditos relevantes.

A crescente politização de O Diabo e as suas propostas cada vez mais inequívocas foram atentamente escrutinadas pela censura, tendo os cortes sido frequentes. Em 1940, registou-se uma investida das autoridades contra a imprensa oposicionista, sendo então encerrados vários periódicos, entre outros este que ora analisamos.

 

Modernismo

 

Inicialmente, O Diabo apresentou, em consonância com os ideais libertários, uma grande abertura a todas as correntes estéticas. Durante a direcção de Rodrigues Lapa, o Modernismo teve um estatuto mais pronunciado, sendo então a Presença considerada “uma excelente revista”. Na sua última fase, registou-se a publicação de alguns dos principais manifestos do neo-realismo e, concomitantemente, foram desencadeados vários ataques àquele periódico. Em O Diabo foi então discutido o estatuto da arte, estando em confronto duas filosofias bem distintas: o imperativo categórico, por parte do artista, de intervir, de transformar a sociedade, de ser activo na denúncia do status, optando por um estrito racionalismo e pelo materialismo dialéctico para concretizar tais desideratos; a esta perspectiva, perfilhada pela direcção de O Diabo, opunha-se energicamente a dos modernistas, que pugnavam pela autonomia e especificidade da arte, pelo individualismo – no senso mais lato da palavra –, pelo psicologismo, pela originalidade, por uma “literatura viva”, liberta de modelos asfixiantes, pela sensibilidade, a inteligência e a imaginação, pelo apelo aos escaninhos mais remotos da mente humana, não sendo despiciendo, consequentemente, o papel do inconsciente, da irracionalidade, da intuição e do onírico. Nesta época, os modernistas tiveram em José Régio e em Adolfo Casais Monteiro os seus mais estrénuos advogados.  

O primeiro Modernismo esteve presente nas páginas de O Diabo. Alfredo Guisado publicou dois textos relevantes para a compreensão da obra e da personalidade de Fernando Pessoa: o primeiro redigido na sequência do falecimento do poeta, equacionando a omnipresença heteronímica (nº 77); o segundo sobre as linhas de força do Orpheu (nº 81); César da Silva fez um depoimento de carácter biográfico sobre aquele poeta, com particular incidência na sua empatia pela astrologia; Adolfo Casais Monteiro colaborou com vários textos, entre outros, “Introdução à leitura dos poetas modernos” (nº 132 / 133), no qual se insurgiu contra o verbalismo e o artificialismo das imagens, próprios de uma literatura académica e distante do pulsar da humanidade, bem como a sua utilização com objectivos adventícios à sua natureza específica; em “Sobre o que a arte é, e sobre algumas coisas que não poderá ser”, aquele ensaísta advoga que o artista “comunica a sua inquietação humana”, não é “um ser de afirmação ou negação: é sim um ser de expressão.” O corolário deste postulado é, na sua opinião, líquido: “a arte é, não serve”, ou seja, não se deve esperar dela a defesa de uma causa. Por idêntica senda trilhou João Gaspar Simões em “Apostila a um Discurso sobre a Inutilidade da Arte” (nº 228).

Miguel Torga e Edmundo Bettencourt, escritores de vulto da Presença, muitos anos depois da sua demissão daquela revista, colaboraram esporadicamente em O Diabo, com os poemas “Adeus” e “Aparição” (nº 235).

As opiniões redutoras expressas por Ressano Garcia numa conferência intitulada “A Pintura Avançada”, que teve lugar, em Abril de 1939, na Sociedade Nacional de Belas Artes, foram ampla e criticamente comentadas na época. O Diabo realizou então um inquérito sobre a essência da arte moderna, ao qual responderam vários críticos e artistas (nº 240). Modernistas (Almada Negreiros, Adolfo Casais Monteiro e João Gaspar Simões) e neo-realistas (Mário Dionísio e Álvaro Cunhal), em consonância com a sua filosofia estética, equacionaram-na então de forma distinta. Aquele oportuno inquérito, que contou ainda com a colaboração de António Pedro, Arlindo Vicente Bento Janeiro, Frederico George, Manuel Mendes, José Bacelar e Miguel Barrias, apresenta relevância porquanto é elucidativo acerca da forma como um sector não despiciendo da intelectualidade se posicionava perante a arte.

O sectarismo relativamente à Presença imperou na última fase de O Diabo: as críticas não primaram pela elevação e elegeu-se o sarcasmo como arma de arremesso. Aquele órgão modernista foi então considerado “um jornal exclusivamente literário, dedicado a e para um reduzido cenáculo modernista para o qual a literatura é uma divina recreação (…)” (nº 63); para outros articulistas era “uma revista de papel de cor que como a linda Inês está nas margens do Mondego, ‘posta em sossego’, indiferente aos males do mundo, aos dramas da vida contemporânea, feita capelinha exígua e bonita com imagens rosadas, de fresco pintadinha, de literatozinhos, literatices e literatelhos. Feminina, 100 % rapariga, gosta que a adulem, lhe digam que é duma adorável fragrância, que exala embriagante perfume de rosas ‘príncipe negro’, que vai através do país, com os seus cinco exemplares e meio de tiragem, espalhar a beleza, transformar as urtigas em cravos vermelhos, as piteiras em glicínias, os cardos em açucenas (…) ” (nº 159).

Por sua vez, a Presença, pela pena de José Régio, replicava com não menor acutilância, acusando-o de ser “amorfo”, “pesado” e “desequilibrado por tremendos ‘nabos’, nada jornalísticos (…); é em O Diabo, de tendências e de cadáveres que escrevem, manifesta a inexistência de uma orientação decidida, de uma directriz (…)” (nº 46). Noutro passo, é criticada a sua “literatura de amadores, cheirando a bafio”.

A leitura de O Diabo constitui um documento importante para a reconstituição da época. Com efeito arquiva textos que nos permitem avaliar a forma como alguns sectores mais progressistas equacionavam o papel e a natureza das artes na sociedade. 

        

Bibliografia:

GUIMARÃES, Fernando – A Poesia da Presença e o Aparecimento do Neo-Realismo. Porto: Inova, 1969; PIRES, Daniel – Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX. Vol. 1 – 1900 - 1940.Lisboa: Grifo, 1996; RÉGIO, José – “Ainda os Semanários Literários” in Presença (Coimbra), nº 47, Dez. 1935.

 

Daniel Pires