O termo, em Pessoa, tem ligações semânticas, literárias e culturais com “decadentismo”, “finissecularismo”, “declínio histórico”, “declínio filosófico” e, num sentido bem preciso, com “degenerescência”. No modo como se apresenta lexicalmente acima,  o termo ocorre em períodos diferentes da produção pessoana. (“O monoteísmo é a religião da dacadência”, “Antes tivesse sido aquele poeta decadente...”, “meu destino é a decadência”). Como se pode depreender dessas ocorrências, o uso do termo pode implicar conotações divergentes, senão opostas.

Comecemos por examinar a questão a partir de uma referência histórica: sua relação com o estilo literário de época: o decadentismo. O uso particular desse termo foi discutido no artigo de Paul Bouget, “Théorie de la Décadence” (Nouvelle Revue, 1881) e tem como referência inicial o famoso verso de Verlaine “Je suis l’empire à la fin de la décadence”.Essa apologia ao declínio, datada, portanto, da segunda metade do século XIX, na verdade tem raízes anteriores, no momento particular do ultra-romantismo. Com algumas diferenças importantes. De fato, não foi indiferente aos românticos mais exacerbados o sentido agônico da existência, a tensão entre a permanência e a impermanência. No entanto, para os chamados “decadentistas”, o ponto mais dolorosamente vital da referida contraposição não estaria no resultado do processo, mas no processo em si. É que um elemento decisivo impôs-se na reflexão filosófica daquele período alterando substancialmente a percepção do homem naquele período: o movimento e sua inexorável dinâmica, colocando em questão a hipótese de uma harmonia estável que definiria o universo. Entre o sentimento produzido pela percepção de um chão coberto de folhas caídas ou pela visão de folhas caindo indefinidamente, a atenção agora se volta para este segundo tipo de visão, por conta do fato de que ao homem conta o processo contínuo de  sua inserção num  movimento  cego, destituído de qualquer sentido lógico ou teleológico. Isto se traduziu em termos de estilo de época num repertório bastante variado de imagens em que se conjugam algumas tendências imagéticas bem características: imagens declinantes (crepusculares, outonais) imagens imprecisas, cambiantes (tremulações, transparências), imagens que remontam ao inexorável fluxo temporal (sugestão de movimento, evanescência). A esse conjunto de procedimentos deu-se o nome de decadentismo, termo também muitas vezes usado com sinônimo de simbolismo sobretudo na França.

Pessoa tentou perceber as manifestações poéticas de Portugal de sua época, nitidamente tributárias dessa nova tendência. Em “A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico” (ensaio publicado em A Águia, 1912), tentando afastar-se da tendência dominante na época (a que ele denomina simbolismo)  por ser absolutamente subjetiva, Pessoa apontaria na nova poesia portuguesa um traço que, para além da subjetivação, seria também profundamente objetiva, por tratar ela sempre da natureza e nela inspirar-se. Três seriam  as características desse tipo de poesia. Primeiro, a nitidez, que se refere ao caráter conciso e definido de sua forma, dita epigramática (sintética, concisa, vincante, segundo seus termos). A segunda característica seria a plasticidade, a fixação expressiva do visto ou ouvido como exterior, não como sensação, mas como visão ou audição. A terceira característica viria a ser a  imaginação (pensar e sentir por imagens). Essas formulações, que guardam muito do raciocínio sempre paradoxal de Pessoa, decorrem de um esforço do autor de distanciar a poesia portuguesa contemporânea de um tipo de poesia viciosamente subjetiva, desfocada e esteticamente desequilibrada. Evidentemente, o foco da reflexão pessoana aqui é a  poesia simbolista no seu período “escolar”, codificado e estereotipado, em que estaria mais a serviço da desinteligência humana. Daí que, na verdade, cada termo definidor se alia necessariamente a seu oposto (a objetividade confere realidade à subjetividade, a plasticidade é uma fixação “expressiva” do exterior e as formulações imagéticas não resultam de divagações, mas de um pensar e sentir, ao mesmo tempo sujeitos e objetos dos mesmos processos). Tudo isso leva Pessoa a postular o princípio segundo o qual a nova poesia portuguesa rompe as fronteiras entre categorias tais como espírito e matéria, realizando a espiritualização da Natureza e a materialização do espírito. Daí seu caráter eminentemente metafísico.

Assim, falar de um Pessoa simplesmente simbolista, no sentido convencional do termo, contrariaria os próprios valores estéticos professados por ele naquele momento. No entanto, admita-se  que algumas de suas  composições poéticas do período não deixam de pagar tributo àquele estilo. (Vejam-se “Impressões do crepúsculo”, “Hora absurda”), embora atinjam um nível raríssimo de condensação de significados, mercê de uma intrincada elaboração poética, que lhes confere aquele caráter solidamente metafísico que se oporia ao clima de sugestões diáfanas do simbolismo tout court. De qualquer maneira, o próprio Pessoa aparentemente iria renunciar a esse modo  de fazer poesia, considerado posteriormente manifestação típica de uma mente decadente. Essa renúncia, ele o faria  em nome de um projeto regenerador, agora não mais apenas da poesia, mas de toda uma história da humanidade (entendendo-se aqui o Neopaganismo).

É neste momento que se pode entrar numa segunda significação de decadência, processo que nas considerações do ortônimo, e também nas do heterônimo filósofo, marcaria o sentido da história do Ocidente a partir da Idade Clássica dos gregos, e atinge seu auge obviamente no século em que nasceu o poeta. O Cristismo estaria na base desse processo de declínio, sobretudo da inteligência, por conta do afrouxamento de certas virtudes morais decorrentes do espírito “fraternalista” da doutrina de Cristo. Aliás, Pessoa vê isso claramente na célebre e então festejada triangulação “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, sentimentos que remetem àquele afrouxamento das vontades e que se assentam numa espécie de anulação da natural tensão das forças que compõem a  relações humanas, inclusive a de dominação. Nesse sentido, o ultra-romantismo e um  certo simbolismo, seriam explícitas manifestações decadentes, entendido “decadência” tal como exposto acima. Isto é, com implicações nitidamente negativas. Mas Pessoa consegue perturbar a compreensão das própria idéias, como sempre. E um uso menos negativo, senão resignadamente positivo, transparece em outros textos, talvez mais esclarecedores da relação do poeta com o termo.

Vale a pena recorrer a algumas passagens do Livro do Desassossego. A primeira delas é a conhecida página de Bernardo Soares que se declara filho da decadência ou do século da decadência, desta vez entendida mais precisamente como o “vácuo” entre a crença em Deus (espiritualismo, teísmo) e a crença no Homem (humanismo positivista, aproximando-se claramente  do materialismo). Nem Deus, mas, também, nem o Homem seriam o lugar abismático para onde se orienta neste ponto a inteligência pessoana (Livro do Desassossego. Edição de Teresa Sobral Cunha. Campinas. Ed. Unicamp 1994, vol. II., p. 21). E aqui, ao invés do sentimentalismo piegas, das resignações morais, o apelo estaria numa paradoxal apologia da vontade nula, da inércia, do tédio universal. O que justificaria essa apologia da rendição? Na verdade, antes de ser rendição, essa atitude significaria  a única ação legítima do homem, capaz de negar-se aos dois grandes consolos que ele mesmo teria se criado: Deus e o próprio Homem. Daí que se possa localizar no próprio Livro do Desassossego num filósofo “epicurista” (ibidem, vol. I. p. 90) tardio e deslocado como Omar Khayyan, a grande referência dessa faceta de Pessoa. Isso explica porque, numa anotação sobre suas crenças, um certo Pessoa tenha se declarado filho de uma filosofia pós-socrática e pré-cristã, portanto da passagem da crença  no Homem para sua crença  em Deus – ou do mundo pagão para o mundo cristão (vd. Obras em Prosa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1984, p. 169). Como o poeta justificaria para si e para os homens de seu século esse retorno a um clima de indiferença à própria espécie humana, tal como o vemos na ode dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis? Leia-se: Ardiam casas, saqueadas eram/ As arcas e as paredes,/Violadas as mulheres eram postas/Contra os muros caídos. [...] Mas onde estavam perto da cidade, / E longe do seu ruído,/ Os jogadores de xadrez jogavam/ O jogo do xadrez (Obra Poética. Rio de Janeiro, Aguilar, 1983, p. 203).

 Aqui se entra na parte talvez mais polêmica e imprevista da série de significados que se iniciaria com “decadência”, termo inicial deste verbete: trata-se de sua ligação com o termo “degenerescência”, de origem mais psico-socio-biológica, do que estética. O crítico João Gaspar Simões esclarece em sua biografia do poeta (Vida e Obra de Fernando Pessoa, 4.ª ed. Lisboa. Bertrand, 1980) que a leitura de Degénérescence de Max Nordau (influente livro do psiquiatra alemão que Pessoa leu em tradução francesa) lhe teria alterado muito a percepção em relação à sua época. Como consequência, ele formularia a tese de que o homem do fim do século XIX, além de características físicas nitidamente deformadas em relação aos padrões consagrados pela história humana, seria também depositário de um longo processo de declínio de seu perfil moral: egoísmo e desprezo pelos semelhantes, libertação do dogma e negação do mundo supra-sensível, amoralidade. Ora, pode-se situar nesse conjunto de traços uma espécie de identidade tipológica que se aproximaria em muito da dos jogadores de xadrez da ode de Ricardo Reis, ou da do poeta filósofo persa Omar Khayyan, ou do pensamento resignado dos pós-socráticos.

Nesses termos, as implicações da decadência em Pessoa vão desde uma alusão ao clima evanescente de uma certa poética do período até uma percepção crítica (e também auto-crítica) do tipo humano finissecular que Pessoa, ao mesmo tempo, assume.omem

 

 

Haquira Osakabe