Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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Há uma referência a Dada num título de poema de Pessoa publicado no Portugal Futurista, que constitui um pastiche de certos poemas de Eugénio de Castro, que representam um Simbolismo estereotipado: é o poema Saudade Dada. Uma vez que esse poema data de 1917, surpreende a coincidência temporal com o ismo europeu.

De resto, este procedimento da apropriação paródica de uma escrita pode ser reencontrado em Pessoa e Sá-Carneiro em várias ocasiões, desde o choque de estilos do díptico Impressões do Crepúsculo até às suas colaborações em ambos os números do Orpheu – onde são violentos os choques entre modos de escrita nos dípticos Opiário e Ode Triunfal (n.º 1) ou Elegia e Manucure (n.º 2), quer num caso quer noutro fazendo jogar poemas de confissão simbolista com poemas de inspiração futurista. O que pode, por outro lado, ser aproximado do procedimento da colagem que é típico do Dadaísmo.

Nas artes visuais e pela mesma época, porém, a ocorrência dadaísta em Portugal é ainda menor. Se é verdade que, como referiu J.-A. França, certas produções finais de Amadeo antecipavam já uma sensibilidade dadaísta, como é o caso daquelas em que aparecem colados pedaços de espelho sobre o quadro, em que a violência expressiva atinge paroxismos de anti-forma (num procedimento análogo afinal ao que conduziu certos expressionistas norte europeus a radicalizar o seu gesto até se voltarem para Dada, mas esses, opostamente ao português, integrando um movimento já centrado num programa e numa acção) o facto é que, ao contrário do que ocorrera com o Futurismo, cujo Primeiro Manifesto Santa-Rita Pintor traduzira para publicar n' O Açoriano Oriental, o eco de Dada não chegou a Portugal. Faltava-lhe para isso entre os portugueses quem o pudesse ter entendido sensivelmente como era caso então apenas de Amadeo ou do próprio Santa Rita.

No que respeita ao primeiro, dado que a sua busca furiosa de inovação e a sua capacidade quase única, mesmo em contexto europeu, de assimilar rapidamente o essencial dos programas plásticos mais avançados o poderiam ter conduzido até esse modo, se tivesse permanecido em França e sendo que tinha já contactos com a Alemanha, um dos focos do Movimento. No que toca ao segundo, porque por temperamento provocador lá poderia chegar sem esforço, numa dessas intuições prodigiosas como a que o levou a publicar o seu retrato em Portugal Futurista. Este provocador auto-retrato de página inteira, curiosamente, tanto pelo espírito como pela forma, estaria mais próximo de Dada do que do Futurismo, podendo constituir o único exemplo de um momento-dadaísta em Portugal.

Se assim acontece é porque na sua propositada alusão à figura do louco internado em algum Rilhafoles, o chapéu tosco enterrado na cabeça, o fato clownesco, o olhar provocadoramente desdenhoso ou a redução do seu espaço de figuração a um simples quarto-atelier, assumindo uma pose anti-burguesa, Santa-Rita abandona qualquer suporte representativo típico (a pintura, a escultura) para acolher um media que caberia a Dada integrar pela primeira vez de modo sistemático no campo expressivo do Modernismo: a fotografia. Será pois intuitivamente que este desafortunado companheiro de viagem da pequena aventura modernista portuguesa chega a este momento a seu modo extraordinário e cheio de uma força de provocação e de anti-forma que mais nenhum acto plástico teve em Portugal. Do mesmo modo que o texto que, com Almada Negreiros, assina nesse mesmo número da revista,  datado de 1916, Saltimbancos (Contrastes Simultâneos) pela sua escrita sem pontuação e pelo seu ritmo imagista, poderia caber em certos processos de escrita usados por exemplo por Tristan Tzara nas publicações do Cabaret Voltaire.

 

 

Fernando Cabral Martins