Domingues Alvarez viveu e morreu praticamente só, no Porto, onde cursou a Escola de Belas Artes e manteve breve relação com o grupo "+ Além", de pouco expressiva importância, com quem expôs em 1929, nessa mostra que foi um dos últimos clamores modernistas portugueses. Fez, durante a vida, uma única exposição individual e participou apenas em colectivas sem relevo, vindo a ser redescoberto, já na década de 50, pela mão de alguns admiradores incondicionais para quem era um artista "de culto", e foi então mostrado já em outro contexto de entendimento crítico e estético graças sobretudo a Fernando Lanhas, em cuja obra inicial deixou marcante influência, e de João Menéres Campos, seu convicto coleccionador.

Do ponto de vista da sua breve fortuna crítica, só os do grupo da presença, e em particular Adolfo Casais Monteiro, se interessaram por esta obra irregular e a admiraram no seu tempo, capazes que foram de entender a espantosa capacidade transfiguradora que encerra e de compreender, desse modo, não apenas a dimensão angustiada de uma aventura existencial tocando um certo absurdo, como também o que nela se esboçava do que seriam os traços dessa busca de uma dimensão onírica, que perpassou a poética do grupo que, no entanto, jamais ousou, salvo no caso de Júlio [dos Reis Pereira], dialogar abertamente com o Surrealismo.

Uma obra em que se viria também a espelhar o que ficou de uma viagem por Espanha de que trouxe alguns notáveis quadros (Alvarez era descendente de pais galegos) em que se traduziu um sentido paisagístico anti-naturalista, raro na pintura portuguesa, convocando valores de desabitada secura que acentuavam o já assinalado vector de transfiguração e de sentido do nocturno. Estes valores plásticos, expressos em pinceladas densas e matéricas, espessas, pesadas, capazes de gerar um clima metafísico de gosto quase trágico nas suas tonalidades opacas, parecem abrir-se mais a captar o domínio da sombra que o da luz, do mesmo modo que a atormentada vida do pintor, que trocava pequenos quadros pelo que chegava para lhe alimentar a embriaguês, foi em muito semelhante à dessas bruxuleantes figuras que caminham incertas sob a chuva em percursos erráticos dentro dos seus mais notáveis quadros.

A pintura de Alvarez, antes de se academizar - como aconteceu nos últimos dois anos em que procurou fazer dela meio de sobrevivência, evidenciando qualidades de naturalista tardio que a banalizaram -, e quando optou por surpreender um registo urbano mais acentuado, aparece povoada, no seu vigoroso expressivismo, de estranhas figuras quase fantasmagóricas, surpreendentemente reais na sua presença, habitando uma cidade suspensa no tempo, povoada de um silêncio espectral, que evoca as ruas de um Porto triste e pobre dos idos da década de 30 em que o então jovem estudante de Belas Artes surpreendeu os traços mais vivos de uma boémia sem glória.

Ela atinge, por vezes, um clima de rara sensibilidade dramática, em que a evidente ingenuidade do pintor contribuiu, por não disfarçar sob vestes de elegância pictórica a emocionalidade expressiva, para adensar o efeito, por vezes notável, de verdadeiro teatro de sombras, à maneira de um Strindberg no seu imaginário trágico, ou de certa pintura expressionista norte-europeia como a de Ensor ou a de Permecke, mas cuja plena compreensão crítica e históricano contexto português parece continuar a encontrar equívocas resistências que não é aqui o lugar de discutir.

A sua obra permanece, assim, como singular aventura formal no contexto do Modernismo português, no domínio do que seria um entendimento da arte como forma por excelência de exprimir uma projecção imaginária, no seu caso plena de segredos e de mistérios, que a passagem do tempo foi tornando cada vez mais apaixonantes.

 

Bibliografia: Catálogo da Exposição retrospectiva na Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. Bernardo Pinto de Almeida, Pintura Portuguesa no Século XX, Lello Editores, Porto [1993] 2003.

 

Bernardo Pinto de Almeida