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Fernando Pessoa - Literary Theory

This digital edition of texts by Fernando Pessoa deals with the set of poetic theorizing writings from hisArchive and brings together essays, comments, notes, sketches and fragments about literature from the Portuguese author. The documents transcribed are in Fernando Pessoa’s Archive in the custody of the National Library of Portugal, with quota E3. All facsimiles are accompanied by a critical lesson and a paleographic transcription, which is available for download in the “PDF” field.

 

 

Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14C – 74
BNP/E3, 14C – 74
Fernando Pessoa
Identificação
[Sobre Gustave Flaubert]

[BNP/E3, 14C – 74]

 

Este trait do carácter de Flaubert permite enveredar por um caminho inesperado. Nada há de mais burguês que este “escusa-de-me-contradizer-que-eu-sei-que-tenho-razão.” Leva-me isto a notar, não sem um sorriso – que os grandes estetas, artistas {…} e outros que guincham, bradam, trovejam contra o burguês, se mostram invariavelmente burgueses no carácter.

Afinal nada há para admirar. Os aristocratas que riem do povo são geralmente[1] muito povo no caracter. O verdadeiro aristocrata – deve o meu amigo ter notado – nunca fala mal do povo, nunca faz troça dele, justamente porque a troça, o desprezo, não são dum verdadeiro aristocrata. Os {…} da nobreza que têm desprezos e sarcasmos {…} e {…} para o povo não raro são os descendentes de cocheiros divinizados, de {…} e de moços de esquina que as circunstâncias fizeram alcoviteiros de um rei, que de resto a aristocracia é sempre do carácter. Um aristocrata não se diferencia do povo sendo grosseiro para ele, porque

 

[74v]

 

ser grosseiro é ser deles. Nem sendo irónico, malicioso, cáustico para ele; porque ser irónico, malicioso e cáustico é apenas ser grosseiro delicadamente o que continua a ser ser grosseiro, visto que o hábito faz o monge. Dizia-me uma vez um aristocrata do seu país: “diante de mim não admito que se injurie o povo, mesmo como reconhecimento à natureza, porque se não houvesse povo, não havia aristocracia; portanto ou eu acho valor em ser aristocrata, ou não acho; se não acho, é pouca estupidez gabar-se disso injuriando os que o não são; se acho, devo notar que só o sou por haver povo e aristocracia. É como se a criança insultasse a ama que a leva ao colo, pelo surpreender de ser levada ao colo. E se a ama a pusesse no chão? – Estas sábias considerações fazia-as um nobre inglês. Também em nenhum outro país seria qualquer nobre de nobreza capaz de as fazer. Não vale a pena insistir.

  

 

[1] geralmente /sempre\

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/3229
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Fernando Pessoa, Escritos sobre Génio e Loucura, Edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 435-436.