Fernando Pessoa escreveu ficção em prosa, sob a forma de contos e novelas e até iniciou um romance, para o projecto editorial da Empresa Íbis, que teria o título Reacção. Quase todas estas narrativas ficaram por completar, fragmentadas e dispersas, escapando a essa situação os textos mais pequenos, como as histórias humorísticas e as fábulas. Os esquemas e projectos do Espólio revelam um grande número de listas com títulos de contos. De alguns desses contos só se conhece uma ideia anotada ou pequenos resumos de enredos. Outros encontram-se em diferentes estádios de desenvolvimento. A datação destas narrativas é problemática, pois o mesmo título pode surgir em vários momentos do tempo, correspondendo, em geral, a ficção em língua inglesa a uma primeira fase. As narrativas encontram-se atribuídas a personalidades literárias e ao ortónimo. Verifica-se, no entanto, que essa atribuição muda com frequência e que os contos vão transitando de personalidade para personalidade, de um projecto para outro e da língua inglesa para a portuguesa. Um grande conjunto de narrativas policiais, com o título Quaresma, Decifrador (v.) é a dado momento atribuído a Pêro Botelho, mas continua a ser escrito e reformulado até à morte de Pessoa, com atribuição ao ortónimo. Em vida, foram publicados dois pequenos textos ficcionais.«Crónica Decorativa», no nº 12 da revista O Raio, em19-9-1914, seria provavelmente o primeiro texto de uma série com esse nome, de que só o primeira crónica chegou a ser publicada. Trata do confronto, na imaginação do seu autor, entre o Japão real e a ideia do Japão formada a partir das representações, a duas dimensões, nas chávenas, nos bules e nas bandejas. «A Rosa de Seda», um texto sobre a criação artística em forma de fábula, foi publicado no nº 1 de O Jornal, a 4-4-1915. Em 1922, Fernando Pessoa publicou ainda o grande conto O Banqueiro Anarquista, no 1º número da Revista Contemporânea. Em 1935, completava uma versão remodelada deste conto e desejava traduzi-lo para inglês, para o publicar em Inglaterra, projecto que foi interrompido pela sua morte. Os primeiros textos de ficção de Fernando Pessoa, que se conhecem, encontram-se nos “jornalinhos” manuscritos da sua adolescência. Em 1902, no nº5 de “O Palrador”, o Dr. Pancrácio, primeira personalidade literária da ficção, apresenta um pequeno conto da sua autoria, intitulado «Desapontamento», com a indicação Do livro Brancos e Pretos. Noutro número, com data de Julho de 1903, e em Durban, anuncia-se o ambicioso projecto de publicação de quatro romances interessantíssimos, Os Rapazes de Barrowby, da autoria de Adolph Moscow, A Riqueza de um Doido, de Marvell Kisch, Em Dias de Perigo, de Gabriel Keene e A Lucta Aérea de Sableton Kay (riscou o nome Augusto Largo). Promete-se ainda uma curta série de contos militares. De Os Rapazes de Barrowby ficaram, nesse número do jornal, dois capítulos. Da mesma altura, existe o primeiro capítulo do romance Os Milhões d’um Doido, de Marvell Kisch, e dois contos em inglês, também incompletos, o primeiro com o título “The Mansion”, e outro, sem título, sobre um rapaz que gostava de experimentar todas as novidades. Charles Robert Anon (v.) ensaia a sua assinatura nessas páginas. De 1903 a 1905 vemos Anon sobrepor-se, a pouco e pouco, a David e a Lucas Merrick (v.), duas personalidades literárias a que eram atribuídos conjuntos de contos. Nos projectos, os nomes de David e Lucas Merrick foram riscados e substituídos pelo de Charles Robert Anon. Pertencem a esse conjunto de contos os títulos: «The Madman’s Tale», «The Squire’s Tale», «The Soldier’s Tale», «The Business Man’s Tale», «The Musician’s tale», «The Townsman’s Tale», «The Author’s Tale», «The Tramp’s Tale», «The Pauper’s tale», «The Philanthropist», «The Atheist» e «The Schoolmaster’s Tale». Agrupados sob o título Tales of a Madman, encontram-se ainda «The Devil’s Voice», «The Case of the Science Master» e «The Wandering Jew». O conto «The Schoolmaster’s Tale» foi iniciado num caderno de David Merrick. O conto «The Case of the Science Master» será posteriormente integrado nas histórias policiais. Num poema de David Merrick, com o título«Satan’s Soliloquy», e depois no conto «The Devil’s Voice», pode ser visto um começo de «A Hora do Diabo», um texto mais tardio. A Lucas Merrick, provavelmente irmão de David, são também atribuídos vários contos. A Charles Robert Anon, autor de poesia e de ensaios, são atribuídas as Stories of Imagination, enquanto outra personalidade literária sua contemporânea, Horace James Faber (v.), é o autor de Detective Stories, depois designadas Tales of a Reasoner. Tendo como decifrador a personagem Ex-Sargeant Byng, este conjunto inclui os títulos Case of the Quadratic Equation, Case of the Delmont Robbery, Case of Mr. Arnott, Case of the Holloway Code, Case of the Stolen Document e Case of the Science Master. Num diário dos anos 1906 e 1907, que Pessoa assinou e carimbou como Charles Robert Anon, encontra-se o registo dos vários contos que iniciava: «The Door», «The Stolen Document», «Circle of Life», «Jacob Dermott». «A Very Original Dinner», um conto atribuído a Alexander Search, surge em 1907. Encontramos estes títulos inseridos noutros projectos e traduzidos para português. «The Door» passará para «A Porta» e «Circle of Life» para «O Ciclo do Ser». No projecto editorial da Empresa Íbis, prevê-se a tradução das narrativas policiais em inglês, por Navas, uma personalidade criada para o efeito. Num projecto, com o título geral de Tales of a Madman, vão integrar-se alguns contos do diário de Charles Robert Anon e ainda «Mandinke», «The End of the World», «Czaresko», «Elijah Bartlett’s Experiment», «The Black Spider», «Titto Vecchi», «The Voice of the Infinite» e «Mr.Balmer’s Plan». Por sua vez, o título Tales of a Madman tornar-se-á Contos de um Doido, congregando os contos: «A Morte do Dr. Cerdeira», «A Experiência do Dr. Lacroix», «O Círculo do Ser», «O Sonho de Ibn-Ibrahim», «A Perda do Hiate Quero», «A Porta», «Um jantar muito original» (tradução do conto de Search) e «Czaresko». A personalidade literária Vicente Guedes surge como tradutor e autor de contos para a Empresa Íbis. Pessoa atribui-lhe os seguintes títulos: «A Morte do Dr. Cerdeira», «Czaresko», «Uma Viagem no Tempo», «A Barca Texas/Hiate Nada», «A Narrativa de Ludovico Maggi», «O Último Drama», «A Flor da Esperança», «A Aranha Preta», «A Morte do Dr. Cerdeira», «O Silêncio Absoluto», «A Cara sem Cara» e «O Livro de Noé». O conto «Czaresko» é retomado dos projectos em inglês, assim como «A Aranha Preta», versão portuguesa de «The Black Spider». Pode ser seguido um processo de transformação semelhante com «A Barca Texas», que transita de projecto em projecto com os títulos «O Naufrágio da Barca Texas», mais tarde «A Perda do Hiate Quero» e depois «A Perda do Hiate Nada». Pantaleão, um sibarita de espírito, é outra personalidade literária para quem se previa uma vasta obra, constituída por contos organizados em dois grandes grupos: As Cartas e As Visões, com um título alternativo de Fábulas para Adultos. No primeiro conjunto agrupavam-se os seguintes contos: «O realista», «A evolução mental do Faustino Antunes», «O jornalista Morais», «Idealismo», «Manhã na cidade», «O jornalista Morais», «A Mercearia Souza», «Monsieur Gustave», «O Dr. José Gomes», «A tia Thereza e o primo Raphael», «O Conselheiro Martins», «O Capitão Silva» e «O Padre Ambrósio». As Visões, classificadas de políticas num projecto, incluíam muitos títulos: «Visão primeira», «Visão dos canalhas», «Visão jornalística», «Visão da camisaria», «Visão da planície», «Visão da conversa», «Visão das cobras», «Visão do provérbio», «Visão da pergunta», «Visão da chave», «Visão de futuras contas», «Visão da monarquia», «Visão do velhinho», «Visão da tabuleta», «Primeira visão do Crucificado», «Visão do casaco do conselheiro», «Visão do desenho» e «Visão estranha». Pêro Botelho (v.), personalidade literária que ensaia a sua assinatura num caderno de 1915, surge como autor de um conjunto de contos, onde podemos reconhecer títulos de outros projectos anteriores. Fazem parte dessa lista «O Vencedor do Tempo» e «A Morte do Dr. Cerdeira», contos que recebeu de Vicente Guedes. Para além destes, há «A Experiência do Dr. Lacroix», «O Prior de Buarcos», «Quaresma, Decifrador», «O Eremita da Serra Negra», «No Hotel Cecil, em dia de chuva», «Uma Tarde Cristã» e «O Profeta da Rua da Glória». Alguns destes títulos de contos – «O Eremita da Serra Negra» e «O Vencedor do Tempo», com o título alternativo «O Desaparecimento do Dr. Serzedas», e «A Morte do dr. Cerdeira» – são retomados em Contos Intelectuais. As Cartas de Pêro Botelho surgem incluídas num projecto, ao lado de Contos Intelectuais e Contos Fantásticos. Bernardo Soares, o semi-heterónimo autor do Livro do Desassossego, também recebeu a atribuição de um conjunto de contos, com o título geral Taquigrafia, incluindo «História Amorosa de um Homem de Génio», «O Gramofone», «O Caso Esteves», «Um Português», «O Prior de Buarcos», «Marcos Alves», «O Órfão Absoluto» (com o riso das senhoras) e «Um Doido». O projecto terá data de 1919-1920. Há notícia do processo de escrita de Marcos Alves no diário de 1913, mas já em 1909-1910 Pessoa estaria a escrever este conto, como se pode depreender dos esquemas da Empresa Íbis. O Barão de Teive (v.), autor e personagem central de A Educação do Estóico, tem a seu cargo o conto «Daphnis e Chloe», que Pessoa imagina, numa anotação, poder transformar, juntamente com «Antheros», numa novela policiária de Quaresma, Decifrador.. A personagem central do conto «Marcos Alves», um inadaptado à realidade da vida como o Barão de Teive, escolhe, como este, a solução final do suicídio. Pessoa escreveu ainda uma série de pequenas histórias, em jeito de fábulas. Sob o título geral de Fábulas para Nações Jovens existe um conjunto de pequenos contos, completos, com os seguintes títulos: «O Segredo de Roma», «Si Vis Bellum, Para Pacem», «O Saraiva», «Eu, O Doutor» e «O Burro e as Duas Margens» e «A Varina e a Lógica». Outras pequenas histórias são «O Noronha», «História Cómica» e «A Pintura do Automóvel». Fernando Pessoa escreveu sátiras políticas, textos de análise a que deu carácter ficcional. António Gomes, licenciado em filosofia pela Universidade dos Inúteis, seria o autor previsto para a «História Cómica do Sapateiro Afonso»(cerca de 1913), a propósito de Afonso Costa. Gomes Pipa, personagem de «Na Farmácia do Evaristo» (v.), um conto onde se analisa a situação de Portugal depois da revolta militar de 18 de Abril de 1925, transforma-se em colaborador de O Phosphoro e autor de Contos Políticos para a Empresa Íbis. Noutro tipo de humor, mais próximo da anedota, surgem as historietas do Dr. Nabos (pronunciado Neibos), conjunto de pequenos textos em inglês. Entre os textos de humor, encontram-se ainda «Modo Simples e Matar uma Pulga» e as recensões críticas, em inglês, a uma livro imaginário de um certo Effebeedee Pasha, feitas por jornais de várias orientações. Os contos que tratam temáticas filosóficas ou metafísicas constituem um importante grupo. «O Homem de Preto» (noutra versão «O Peregrino») é um conto que narra uma viagem iniciática. «O Filósofo Hermético», «O Desconhecido», «No Jardim de Epitecto» e «O Eremita da Serra Negra» cabem, igualmente, nesta categoria. «Uma Carta da Argentina» e «Maria José» (v.) são dois contos epistolares, monólogos de auto-análise em forma de carta. O primeiro é a última carta que um homem, condenado à morte por ter assassinado a mulher, escreve a um amigo distante. O segundo é carta de amor que uma mulher, corcunda e doente, escreve a um serralheiro que vê da sua janela de um primeiro andar. Em «Maridos», um outro conto em forma de monólogo, uma mulher que matou o marido explica, aos juízes e jurados de um tribunal, as razões por que o fez. Esta área da obra de Fernando Pessoa caracteriza-se pelo primado das ideias sobre a vivacidade do enredo, pelos longos monólogos de auto-análise e pela exploração ficcional dos temas que interessavam ao seu autor.
Contos Escolhidos e Novelas Policiárias, volumes da colecção Pessoa Breve (Lisboa, Assírio & Alvim, 2016 e 2017)
Ana Maria Freitas