Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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Conjunto de cinquenta cartas escritas por Fernando Pessoa, entre 1.3.1920 e 29.11.1920 (1.ª fase do namoro) e entre 11.9.1929 e 11.1.1930 (2.ª fase), a Ofélia Queirós. Foi o sobrinho da destinatária, o poeta Carlos Queirós, quem, pela primeira vez, deu a conhecer a existência destas cartas, em Julho de 1936, no n.º 48 da revista presença (número inteiramente dedicado a Fernando Pessoa), reproduzindo excertos de seis delas, ocultando embora o nome da destinatária. No mesmo número, inclui-se uma comovida «Carta à memória de Fernando Pessoa», onde o mesmo Carlos Queirós escreve: «As suas cartas de amor! – Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo a toda a gente. Amou e, ­— o que é extraordinário — , como se não fosse poeta. Na evidente espontaneidade, que o Destino quis pôr nas minhas mãos, não se encontra um vestígio de premeditação formal, de voluntária intelectualidade». Mais tarde, João Gaspar Simões, na sua Vida e Obra de Fernando Pessoa, viria  a revelar  a identidade da destinatária e também a considerar a importância dessas cartas para a biografia do autor. Mas a edição integral das cartas, incluindo um depoimento de Ofélia Queirós, «recolhido e estruturado» por sua sobrinha-neta  Maria da Graça Queirós, que também fixa o texto, aconteceria apenas em 1978 (Edições Ática), com um posfácio de David Mourão-Ferreira. Este posfácio constitui, pois, o primeiro estudo sobre a vertente amorosa da correspondência pessoana, chamando a atenção para a necessidade de ler estas cartas como «anti-ficções» ou «documentos de evidente e maciça autenticidade», que o poeta terá desejado que fossem conservados e  posteriormente revelados, «para que não quedasse escamoteada nenhuma zona da sua personalidade». De facto, as cartas («ridículas», como Álvaro de Campos classificaria todas as cartas de amor) mostram um Pessoa surpreendentemente expansivo, carinhoso e sedento de carinho, infantilmente indefeso e apaixonado (pelo menos, numa primeiríssima fase da relação). As expressões de afecto abundam - sobretudo no modo como trata Ofélia: «Meu amorzinho», «Meu Bebé, meu Bébézinho querido», «Meu Bebé pequeno e rabino», «Ophelinha», etc.; ou como dela se despede: «Sempre e muito teu», «Muitos beijos, muitíssimos, do teu, muito teu», «Jinhos, jinhos e mais jinhos», por exemplo - e nada ficam a dever às manifestações de ternura da namorada. A publicação das cartas de amor de Ofélia Queirós para Fernando Pessoa (em 1996) tornou possível fazer este confronto e testemunhar a existência real de uma relação amorosa, ainda que o amor entre ambos fosse alimentado, de forma bem mais persistente e assertiva, por Ofélia. Defende, aliás, Yvette Centeno (in Fernando Pessoa: o Amor, a Morte, a Iniciação, Lisboa: Regra do Jogo, 1985) que este amor  nunca terá sido mais do que um amor «de meninos», acentuando a des-sexualização de Ofélia a que o poeta procede nas suas cartas, como se não pudesse «viver com nenhuma mulher que não fosse criança, anjo ou santa, ou, pior ainda (porque mais carregada de tabus) mãe». Na sua carta de despedida de 29-11-1920, invocando o facto de o seu destino pertencer «a outra Lei» e estar «subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam», é o próprio Pessoa que pede a Ofélia: «Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos (…)». De qualquer modo, e mesmo que só por breves momentos se refira a um possível casamento (palavra que ressoa a cada passo na escrita de Ofélia), é evidente que Pessoa investe muito da sua energia mental e do seu tempo neste namoro, sobretudo em 1920.  Na segunda fase do namoro, que duraria de Setembro de 1929 a, pelo menos, Janeiro de1931, e não Janeiro de 1930, data da última carta de Fernando Pessoa (contrariando o depoimento de Ofélia, as suas cartas permitem balizar melhor a duração da relação, e perceber até que os dois se terão continuado a ver, ainda que esporadicamente, já que na sua última carta, do Natal de 1932, se pode ler que Pessoa a visitara no dia 1.º de Janeiro desse mesmo ano), é notório o desinteresse que invade o poeta, remetendo-se ao contacto telefónico, menos comprometedor e esquivando-se sob a capa de Álvaro de Campos que, cada vez mais, irrompe na escrita epistolar. Campos, cujas frases (sublinhadas por Pessoa) aparecem já a pontuar algumas cartas de 1920, para desespero de Ofélia que detesta a intromissão, como se de uma pessoa real se tratasse, torna-se um intruso muito assíduo nas cartas de 1929. Chega inclusive a «escrever», em 25.9.29, uma carta inteira à «Exma Senhora D. Ofélia Queirós», aconselhando-a a que deite na pia «a imagem mental» do «meliante» Fernando Pessoa. O estratagema (consciente ou inconsciente) usado por Pessoa, para, sob a aparente pressão do heterónimo, fugir de Ofélia, pode desmentir a ideia de que as cartas de amor são puras «anti-ficções». Pelo contrário, elas estruturam-se, muitas vezes, em torno de um fingimento que é do domínio da literatura: «E se essa vulgaridade fosse, precisamente, fingida, enquanto significante da paixão?», pergunta José Augusto Seabra (Persona, n.º 3, Julho, 1979). Estaríamos, assim, face a um fingimento enquanto figura do discurso amoroso, o que, não pondo em causa a sinceridade do sentimento de Fernando Pessoa pela jovem e bem real Ofélia Queirós, nos permite considerar as suas cartas de amor como um objecto não alheio à literatura.

 

Manuela Parreira da Silva