No espólio de Fernando Pessoa à guarda da Biblioteca Nacional encontra-se, no envelope 141, uma curiosa tradução de Pessoa.

Calígula é um texto de 1894, de Ludwig Quidde, historiador alemão defensor do pacifismo, ideal pelo qual combateu toda a vida. Era opositor da expansão germânica e do seu anti-semitismo. Nesse texto, Quidde compara o imperador alemão da altura, o Kaiser Guilherme II, com o imperador romano. Decidiu escrever o seu livro ao descobrir uma fotografia do Kaiser com a divisa de Calígula, escrita pelo próprio punho do imperador alemão: Oderint dum metuant (Que me odeiem, conquanto me temam). O subtítulo da obra indicava  que era um estudo sobre a loucura dos imperadores romanos. O livro conheceu grande sucesso e o seu autor foi perseguido. Calígula foi traduzido para inglês, em 1914, com o título The Kaiser’s Double. A Study of Imperial Insanity. Existe uma tradução francesa, publicada na revista L’Information,  também em 1914, com o título Caligula. Etude d’un cas de folie cesarienne à Rome. Fernando Pessoa traduz o texto, dando-lhe um título próximo do francês: Caligula. Um caso de loucura cesarista em Roma. Num sobretítulo, adianta: A célebre sátira alemã ao Kaiser. No prefácio à tradução, Pessoa refere o autor e as circunstâncias que rodearam a publicação da obra. Informa que retirou, por escusadas, as numerosas citações da dissertação histórica original. Menciona as sanções sofridas pelo Prof. Quidde, que a lei alemã de lesa-majestade limitou a uma certa exclusão social, a alguns ataques da imprensa conservadora, a um voto de censura da Academia de Ciências de Munique e à apreensão de um jornal que publicara extractos do panfleto. Prossegue com uma breve análise da extraordinária semelhança entre o Kaiser e Calígula e conclui que, se descontarmos, em cada figura, o que é propriamente influência do meio, parecem o mesmo homem. Tudo concorre para uma “quási coincidência psíquica das duas figuras”. A tradução, que Fernando Pessoa não chegou a publicar, poderá ser datada por uma referência ao “actual Kaiser”, o que aponta para os anos da Primeira Guerra Mundial.

 

Ana Maria Freitas