Os cadernos pessoanos ainda não têm uma grande visibilidade. Em Escritos sobre Génio e Loucura (2006) existe a transcrição de um caderno na íntegra e de dois parcialmente (os catalogados como Z, T e J, respectivamente); em Fernando Pessoa: Entre Génio e Loucura (2007), a transcrição de outras páginas de T e J e a leitura completa de um caderno inédito (o identificado com a letra E).
Muitos editores tem transcrito páginas dos cadernos pessoanos – sede de muitos poemas de Search, de trechos do Livro do Dessassossego, do «Diário de 1915», da Educação do Estóico, etc. –, mas, em geral, têm tratado as páginas de caderno como qualquer outro suporte, sem vincar o facto de serem uma parte de um todo, de um contexto material, espacial, temporal e ideológico, do qual não são totalmente isoláveis. Uma excepção notável é a edição fac-similar do caderno (ou cahier, atendendo ao seu tamanho) de O Guardador de Rebanhos, editado por Ivo Castro e disponível no site da Biblioteca Nacional Digital: http://purl.pt/1000/1/guardador/guardador-i.html.
No espólio de Pessoa existem cerca de quarenta «cadernos», duas terceiras partes integradas no núcleo (BNP/E3 144 «Cadernos»), uma terceira parte dispersa entre os outros muitos envelopes do arquivo. Estes suportes, de diversa natureza e número de páginas, abrangem um período de quase quatro décadas.
Entre 1901 e 1935, com a pressa do cronista mais do que com a calma matinal do raciocinador, Pessoa preencheu esses cadernos pequenos, kafkianos, nos que anotou todo o que passava pela sua cabeça como pela Rua do Arsenal, a rua mais movimentada da Baixa. A imagem é do próprio poeta, que foi consciente da especificidade destes suportes.
Em carta a Mário Beirão, de 1 de Fevereiro de 1913, Pessoa declara estar num estado de rapidez ideativa tal que, para fixar todas as suas ideias, precisa de um caderno de apontamentos. Ainda assim, acrescenta, algumas folhas perdem-se (algumas ideias escapam-lhe) e outras não se podem ler (o que impede que ganhem «exterioridade absoluta e alma inteiramente», como as que «transitam» pela sua cabeça):
Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas que tenho a encher, que algumas se perdem, por ellas serem tantas, e outras se não podem lêr depois, por com mais que muita pressa escriptas. As idéas que perco causam-me uma tortura immensa, sobrevivem-se n’essa tortura, escuramente outras. V. dificilmente imaginará que Rua do Arsenal, em matéria de movimento, tem sido a minha pobre cabeça. Versos inglezes, portuguezes, raciocinios, themas, projectos, fragmentos de cousas que não sei o que são, cartas que não sei como começam ou acabam, relampagos de criticas, murmurios de metaphysicas... Toda uma literatura, meu caro Mario, que vae da bruma – para a bruma – pela bruma...
A rapidez ideativa que Pessoa procura prender, em palavras sobre papel, é a própria rapidez da inspiração; e a perda de ideias que o tortura, é a perda de uma parte da comunicação consigo próprio, que lhe permitiria descrever completamente esse estado de espírito. O resultado seria «toda uma literatura», vincadamente fragmentária, que, como os transeuntes lisboetas, iria «da bruma – para a bruma – pela bruma».
Mas a passagem do tempo e a abundância de ideias não serão os únicos dois factores que explicam a fragmentaridade pessoana. A «Rua do Arsenal», que se apresenta como a súmula do movimento, também denuncia uma percepção do tempo bastante mais plural e múltipla, que corresponde precisamente à experiência dispersiva do sujeito moderno. A «Rua do Arsenal» é a rua da modernidade, pela qual passa uma «multidão diversa mas compacta», em vez de uma grande procissão uniforme, como acontecia no passado.
Para mais, observo que o caderno de apontamentos é apresentado alegoricamente («fazer da minha atenção um caderno de apontamentos») como um suporte idóneo para aprisionar uma produção extraordinariamente breve («relampagos», «murmúrios»), variada («versos inglezes, portuguezes, raciocinios, themas, projectos») e abundante («tantas são as folhas»). Há excepções, mas a maior parte dos cadernos pessoanos olham, de facto, para essa rua movimentada de Lisboa, em que o poeta viu reflectida a sua literatura multitudinária.
Atendendo a estas características, convém salientar que o espólio de Pessoa está constituído maioritariamente por fragmentos – facto que certas decisões editoriais tendem a desatender –, ou seja, está constituído por o mesmo tipo de textos que com frequência se encontram nos cadernos de apontamentos, verdadeiros microcosmos do espólio. Pessoa não foi o escritor de muitos textos «concluídos», mas o autor de muitíssimos trechos destinados a inúmeros projectos de obra.
Por este motivo, entre outros, três rasgos da produção pessoana, heterogeneidade, descontinuidade e brevidade, estão presentes nos cadernos, pois estes rasgos se podem reunir na noção de fragmento. Aliás, os cadernos representam, quanto suportes, recipientes que permitem observar melhor os rasgos apontados, já que a encadernação facilita definir um corpus material – um conjunto de folhas – e circunscrever um período específico de tempo.
A modernidade de Pessoa está bem representada nos seus cadernos, que já começaram a receber a atenção e o estudo que merecem.
Jerónimo Pizarro
BIBL.: Escritos sobre Génio e Loucura (2006); Fernando Pessoa: Entre Génio e Loucura (2007); Fernando Pessoa, Cadernos, I, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa, IN-CM, 2009.