Num fragmento de Pessoa, há uma explicação concludente do processo a que em determinado momento chamou Interseccionismo: «Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. […] De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. […]»

Ora, encontramos aqui um cruzamento de sensações que se processa de forma geométrica, ou seja, plástica e analítica, como a palavra «intersecção» sugere.  E a matriz deste entendimento está no Cubismo e no Futurismo, que Pessoa, neste contexto, define do seguinte modo num outro fragmento: «Intersecção do Objecto consigo próprio: cubismo. (Isto é, intersecção dos vários aspectos do mesmo Objecto uns com os outros). / Intersecção do Objecto com as ideias objectivas que sugere: futurismo».

De qualquer maneira, esta reflexão tem em mente a própria prática poética de Pessoa, bem como as ideias motrizes do período criador que conduz a Orpheu e deque o Sensacionismo é o exemplo maior. De lembrar aqui a noção de Pessoa dos três elementos em que considera fundar-se o Sensacionismo: Walt Whitman, os simbolistas e o conjunto formado pelo Cubismo e o Futurismo.

Mas pode também referir-se Sá-Carneiro, por exemplo, e os seus poemas que tão bem exemplificam essa intersecção especificamente cubista «do Objecto consigo próprio», como, sobretudo, é visível nos poemas Cinco Horas, Ápice, Último Soneto – ou até na tão citada quadra 7, pois as imagens «qualquer coisa de intermédio» ou «pilar da ponte de tédio» parecem inspiradas no Cubismo, de resto admirado por Sá-Carneiro no seu exílio trágico de Paris.

Era inevitável, porém, se reflectirmos um pouco, que Sá Carneiro no seu exílio parisiense admirasse o Cubismo. Pois se por esses anos já Appolinaire defendera os Cubistas como a vanguarda mais destacada e apesar das inflamadas afirmações de Marinetti em torno do Futurismo – que colhiam eco no espírito inquieto de Santa Rita Pintor – , era natural que, a uma sensibilidade mais delicada como a de Sá-Carneiro, o Cubismo aparecesse, pelo seu lado sintético e mais plástico e geométrico, mais clássico e menos agressivo em suma, como um Movimento digno de atenção maior e sobre isso provavelmente terá trocado impressões com Pessoa. O Cubismo era uma visão do mundo.

Por outro lado, a adesão incondicional a uma espécie de reflexo literário do Cubismo por parte de um escritor que então gozava de adeptos em Portugal como Blaise Cendrars, amigo de Sónia Delaunay, mostrava caminhos possíveis de seguir nas pontes inevitáveis que, na génese do Modernismo, fizeram da aproximação entre palavra e imagem um tema e um programa extensivo por excelência. Assim, a noção de colagem, mais forte e estruturante no Cubismo do que no Futurismo, por exemplo, e sobretudo a noção contígua de montagem, serviriam a Pessoa/Campos para  idealizar composições como a Ode Marítima ou a Ode Triunfal, onde não deixaremos de encontrar, para além da influência whitmanniana, afinidades com a Prosa do Transiberiano do francês - que Portugal Futurista acolheu, sem estar muito atento a se era ou não Futurista - e de agregar em si processos de sintetizar imagens de proveniência diversa que ecoavam dessa velocidade perceptiva exigida pelo Cubismo para operar a fusão. Se, como afirmou Gilles Deleuze, a velocidade é o único problema do pensamento, pensar velozmente, buscando sínteses, fusões entre interior e exterior, ou essa "Intersecção do Objecto consigo próprio" como Pessoa magistralmente o definiu, explica o que conduziu o Sensacionismo dos de Orpheu a uma aproximação ao Cubismo e aos seus processos intrínsecos.

Curiosamente nas artes plásticas a influência cubista em Portugal foi diminuta. Porque se é verdade que uma certa estruturação espacial cézanneana marcou artistas como Dordio Gomes ou mesmo Eduardo Vianna, o facto é que tal influência não os voltou para o lado de uma procura interior próxima do programa do Cubismo como antes para uma definição plástica estruturada em valores construtivos que em nada abandonaram a figuração. Assim, a cabeça cubo-futurista de Santa Rita Pintor permanece como o exemplo mais significativo, mesmo se insuficiente para falar de um cubismo português, sendo que em Amadeo, o menos cézanneano dos pintores, o cubismo não apareceu senão como reflexo. Isto é, como possibilidade de aproximação formal, externa à própria questão que dele fazia uma outra forma de olhar o mundo. Se a colagem aparece em Amadeo ela tem mais relação com o Futurismo ou, depois, antecipatoriamente em relação com o Dadaísmo. Curiosamente o Cubismo, enquanto tal, só transita na sua obra como breve reflexo e jamais como programa plástico a seguir, o que não estava no seu temperamento, já que do que se conhece, a sua abertura a todos os ismos o impedia também de se fixar num único.

Passou assim este movimento central do início do Modernismo ao lado da pintura portuguesa, tal como passou ao lado da Espanhola ou da Alemã, porque o contexto cultural não permitia entender a estruturação sintética que o seu programa pedia. E não era possível saltar de um Naturalismo tardio para tal vontade de síntese, sem ter antes conhecido a necessidade de integrar no processo criativo uma disciplina que o tornasse estruturante do que viria depois. Para isso faltava em Portugal um antes e uma vontade de depois, que só os de Orpheu realmente conheceram, e que Amadeo não podia ter sentido como necessidade, do mesmo modo que os Delaunay, de quem esteve bem mais próximo em afinidade estética, a não sentiram.

 

 

BIBL.: Fernando Pessoa, Sobre Orpheu e o Sensacionismo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015

 

 

Bernardo Pinto de Almeida