Os nomes de alguns cafés da cidade de Lisboa ficaram associados aos artistas e escritores que os costumavam frequentar. No século XIX e na primeira metade do século XX, os cafés da Baixa foram locais de encontro diário de gerações literárias e políticas. Aí se formavam tertúlias, onde se discutia pintura, literatura e política, o que de novo surgia no país e “lá fora”, se criavam alianças, se afirmavam filiações e se lançavam projectos colectivos. A vida dos cafés estava ligada à vida cultural da cidade de Lisboa. No século XIX, no Nicola, no Botequim das Parras e no Marrare reuniram-se escritores, poetas e partidários das diferentes ideologias e facções políticas, atentamente vigiados pela polícia do intendente Pina Manique. Na Praça D. João da Câmara, antiga Praça de Camões, ao Rossio, o Café Martinho foi local de encontro queirosiano. A geração de Fernando Pessoa foi, como as anteriores e a seguinte, habitual frequentadora da Brasileira do Rossio e da do Chiado, do Martinho do Rossio ou da Arcada, do Café Montanha e do Café Suíço. Os representantes de uma nova escola de pintura expunham os seus quadros na Brasileira do Chiado, para grande escândalo dos mais conservadores. É no Suíço que Henrique Rosa (v.) apresenta Pessoa a Camilo Pessanha e é no Café Montanha que Pessoa, sob a forma de Álvaro de Campos, vai ao encontro de Gaspar Simões e José Régio. É na Brasileira, mas do Chiado, que Cecília Meireles espera em vão por Pessoa, com quem tinha marcado um encontro a que o poeta não compareceu. António Cobeira (v.) descreve a aparição regrada e pontual de Fernando Pessoa nos lugares do costume, do escritório onde fazia a sua correspondência comercial ao café onde se espreguiçava em silêncios de observação e arremetidas ágeis de ironia. Dois dos mais conhecidos retratos de Pessoa, da autoria de Almada Negreiros, representam-no sentado a uma mesa de café, com o número 2 da revista Orpheu (v.) sobre o tampo. Entre 1913 e 1916, o grupo do Orpheu reunia-se sobretudo na Brasileira do Chiado. O papel timbrado e os envelopes que o estabelecimento fornecia aos clientes servem de suporte a muitos poemas e textos do espólio pessoano. O diário do poeta datado de 1913 refere essa presença quase diária na Brasileira, do Rossio ou no Chiado, e no Martinho do Rossio, para discutir livros e autores, planear obras futuras e criticar as que acabavam de sair. Foi no Martinho do Rossio que Pessoa e Sá-Carneiro fizeram a revisão de provas da revista Orpheu e Almada Negreiros gritou o seu Manifesto Anti-Dantas, de pé, sobre uma mesa. Eduardo Freitas da Costa (v.), na sua obra Fernando Pessoa, Notas para uma Biografia Romanceada, recorda a tertúlia da Brasileira do Rossio que, em 1916, ocupava geralmente as duas mesas ao fundo, junto à escada. Para além de Fernando Pessoa, pertenciam ao grupo Augusto Ferreira Gomes, Júlio Teles Pereira, Cunha Dias, Fernando Bravo, João Silva Tavares, Fortunato da Fonseca, Júlio de Vilhena, Luís de Montalvor, António Bossa, Francisco da Silva Passos, Alfredo Pedro Guisado, Francisco Fernandes Lopes, Vitoriano Braga, Mariano Santana, Côrtes-Rodrigues e Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoais e José Castelo de Morais, quando vinham a Lisboa. César Porto, recorda ainda, não fazia parte da tertúlia, mas sentava-se com Fernando Pessoa numa mesa ao canto. Segundo a Ilustração Portuguesa de 1920, os grupos distribuíam-se da seguinte maneira: a Brasileira do Chiado e o Martinho eram cenáculo de escritores e artistas, enquanto o Chave d’Ouro e a Brasileira do Rossio eram ponto de reunião de políticos. Cada grupo tinha as suas personalidades e os seus ídolos. A correspondência dá testemunho da importância dos cafés na vida cultural. Era aí que se reviam e corrigiam provas (carta de Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues, de 6-3-1913), se escreviam textos ou cartas, se deixava correspondência e livros para outros clientes habituais. As novas teorias são apresentadas aos membros do grupo. Noutra carta a Armando Côrtes-Rodrigues  (4/10/1914 ),  Pessoa descreve o conteúdo da Antologia do Interseccionismo que pretende publicar logo depois de acabada a guerra. Um dos textos será  O Interseccionismo explicado aos inferiores.  E acrescenta: É aquela explicação do interseccionismo por meio de gráficos que, uma vez, na Brasileira, lhe delineei. Recorda-se? É na Brasileira do Rossio que Pessoa tem uma experiência mediúnica, que narra, em carta de 24 de Julho de 1916, à Tia Anica (Ana Luísa Pinheiro Nogueira). Nesse café chegou a ver, afirma ele, as costelas de um indivíduo através do fato e da pele. Ainda noutra carta a Armando Côrtes-Rodrigues (28-6-1914), pede-lhe que se encontre com ele na «…vil cova de ou jazigo de utilidades e propósitos artísticos que dá pelo nome humano de «Brasileira do Rossio». É sentado à mesa da Brasileira do Chiado que Pessoa lhe escreverá mais tarde, a comunicar o triunfo absoluto do primeiro número da revista Orpheu e a «tareia» na primeira página do jornal A Capital (4/4/1915). Foi no Martinho do Rossio que se reuniu, em 1928, o grupo de que faziam parte Fernando Pessoa, José Pacheco, Mário Saa, António Botto e Albino Lapa para planear a Solução Editora e, mais tarde, em 1932, a Revista Editorial. Com o tempo, Pessoa muda o seu poiso habitual para o café Martinho da Arcada, situado no Terreiro do Paço, onde se formou uma nova tertúlia. Este estabelecimento, o mais antigo de Lisboa, era o local para onde se dirigia quem o desejava encontrar, deixar-lhe encomendas, cartas ou recados. A amizade dos proprietários, a família Sá Mourão, permitia a Pessoa ficar à mesa para além da hora em que o estabelecimento encerrava, chegando mesmo a partilhar o jantar da família. Luís Pedro Moitinho de Almeida (v.) recorda a preferência de Pessoa por este café. Frequentava-o quase diariamente e ali recebia a visita do seu círculo de amigos. Numa fotografia do Notícias Ilustrado, de 1928, vê-se o poeta à mesa, com António Botto, Raul Leal e Augusto Ferreira Gomes. Outras fotografias da época mostram-no sozinho, sentado a uma mesa, escrevendo. É aí que Almada Negreiros o descreve pálido como um defunto, debaixo de uma mesa, aterrorizado pela forte trovoada que se fazia sentir. É também aí que Pierre Hourcade o encontra na semi-penumbra do café. João Gaspar Simões recorda-o, em 1935, dois ou três dias antes da sua morte, numa mesa ao fundo. Pessoa chega a demonstrar alguma distância em relação ao ambiente da Brasileira do Chiado. Numa carta a João Gaspar Simões (11/12/1931), a propósito das teorias de Sigmund Freud e da interpretação sexual que delas se faz, afirma: Isto dá azo a que se possam escrever, a título de obras de ciência (que por vezes, de facto, são), livros absolutamente obscenos, e que se possam «interpretar» (em geral sem nenhuma razão crítica) artistas e escritores passados e presentes num sentido degradante e Brasileira do Chiado (…) Nas novelas policiárias, textos de ficção em que o quotidiano está mais presente, os cafés têm o seu lugar. É no Café Montanha, onde era conhecido, que o assassino de O Caso Vargas, deixa, dentro de uma mala, os quatro volumes  (grossos) da História de Portugal de Pinheiro Chagas.  Em Crime, uma das personagens, empregado num escritório da Baixa, passa o tempo em que não está no escritório, ou a comer em casa, na Brasileira do Rossio a discutir política. Pertence a Bernardo Soares, no entanto, e ao Livro do Dessassossego, a referência mais marcante: Do terraço deste café olho tremulamente para a vida.

 

Ana Maria Freitas

 

Marina Tavares Dias, Lisboa Desaparecida, Quimera Editores, Lisboa, 1987.

Marina Tavares Dias, Lisboa nos Passos de Pessoa, Quimera Editores, Lisboa 1999.

Fernando Pessoa, Correspondência (1905-1922 e 1923-1935), edição de Manuela

            Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 1999.