Conto publicado no nº1 da revista Contemporanea, em 1922. Fernando Pessoa classifica-o de «sátira dialéctica», numa carta ao director da revista, José Pacheco, onde lamenta também o facto de ninguém o ter lido. Este lamento prende-se, provavelmente, com o facto de Pessoa sempre ter reconhecido a importância desta sua obra, incluindo o título em todas as listas que, ao longo dos anos, foi elaborando com as obras a publicar ou a republicar, em Portugal e em Inglaterra. Talvez por isso também tenha decidido, a data altura, encetar a sua remodelação. Ainda no seu último ano de vida, Pessoa confidencia a Adolfo Casais Monteiro (carta de 13 de Janeiro) estar a completar «uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista» que tem intenção de publicar, acrescentando: «Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar tem possibilidades europeias». Incluído numa lista de contos com a indicação de «Antitheses», O Banqueiro Anarquista figura aí como o nº 1 da série e é, com efeito, um excelente exemplo da capacidade de «raciocinador minucioso e analítico» de Fernando Pessoa. Trata-se de um longo diálogo entre o narrador e o seu amigo, «banqueiro, grande comerciante e açambarcador notável», que se declara também anarquista , «na teoria e na prática». Perante o espanto do seu interlocutor, o banqueiro conta como, começando por ser um vulgar operário, se foi tornando, por revolta, um verdadeiro anarquista. Ao perceber que o único mal de que enferma a humanidade são as ficções sociais – a família, o estado, a religião, o dinheiro -, impôs-se-lhe combatê-las e destruí-las, tendo em vista a criação da sociedade livre. Usando, uma lógica implacável, bem ao gosto pessoano, o banqueiro vai tentar demonstrar que a melhor maneira de alcançar a liberdade, passa por trabalhar sozinho, sem o condicionamento dos outros, mesmo os seus correligionários, que, naturalmente e sem se darem conta, acabam por criar entre si uma nova tirania, igual à que querem eliminar. Na impossibilidade de matar as ficções sociais, que «não são gente», subjugá-las só pode significar, para o banqueiro, tornar-se livre da sua influência. E, assim, não olhando a meios, enriqueceu, libertou-se, portanto, da tirania do dinheiro. A ironia que subjaz a todo o discurso do banqueiro, não esconde, porém, a vulnerabilidade da proposta política que o conto encerra. Dizendo-se anarquista, a personagem contradiz os princípios do anarquismo, até de um anarco-individualismo que poderia afigurar-se como a ideologia que, a certa altura, defende: apologia do egoísmo e da concorrência desleal, mitologização do dinheiro, visto como um objecto de posse compulsiva (e não como simples meio de troca, como pretenderia um «verdadeiro» anarquista), ausência de um projecto de um novo modelo social, solidário e anticapitalista. A suprema ironia está, de resto, no recurso a estes paradoxos, que o tempo se tem encarregado de tornar menos paradoxais. É neste ponto que a «sátira dialéctica» de Pessoa se revela de uma grande modernidade: o discurso do banqueiro traduz, avant la lettre, o triunfo do económico sobre o político. O próprio título, ironicamente, no-lo diz. O banqueiro esforça-se por encontrar argumentos que contrariam, afinal, a ideologia que afirma professar. E o político torna-se assim pura ficção, subordinado à real ficção do económico.
Manuela Parreira da Silva