A Casa Fernando Pessoa alberga o segundo espólio de Fernando Pessoa: a sua biblioteca pessoal. O primeiro e o principal, que contém os papéis da célebre arca do poeta, encontra-se na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Trata-se de um segundo espólio porque os livros de alguns homem fazem parte do seu legado – e do património cultural de uma nação –, e porque muitos dos exemplares presentes na Casa Pessoa contêm anotações marginais, entrelinhadas ou finais, que constituem novos textos autógrafos. Alguns muito breves, é verdade (mas no espólio da BNP existem textos de três ou quatro palavras), e outros mais extensos, relacionados ou não com o livro que lhes serve de suporte. Assim como Pessoa aproveitava qualquer papel para anotar uma ideia (cartões de visita, guardanapos, cartas comerciais, etc.), também fazia uso de certas componentes dos seus livros (folhas de guarda, lombadas, badanas, cintas, sobrecapas, etc.) para redigir textos de diversa natureza. A Casa Pessoa seria um espaço muito mais pobre se, para além de umas quarenta fotografias e objectos, não albergasse os mais de mil livros que hoje integram a Biblioteca pessoal de Fernando Pessoa (ver o inventário em Tabacaria, n.º 0, pp. 63-119).
Por estes e outros motivos, a consulta da biblioteca de Pessoa deveria ser visionada pelo investigador como uma questão de método, como um complemento, sem o qual a sua leitura da obra pessoana ficará mais pobre e menos contextualizada. Não é uma biblioteca geral, mas uma biblioteca particular. Trata-se da colecção de livros que está por trás de uma das obras mais insignes do século XX. Quando lemos a Eliot e Pessoa, por exemplo, denotamos coincidências; quando lemos alguns livros da Casa Pessoa, como o fez Pauly Ellen Bothe (2003), compreendemos que Eliot e Pessoa estavam a ler os mesmos autores e que chegaram por caminhos semelhantes a conclusões quase idênticas. É pois uma questão de método, como o defendera, no caso da Biblioteca de Nietzsche, Thomas Brobjer, em «Nietzsche’s Reading and Private Library, 1885-1889», Journal of the History of Ideas, n.º 58, 1997:
An important approach to understanding a philosopher is to reconstruct his thinking not as a number of propositions but as answers to questions and implicit questions. [...] This does not only increase our factual knowledge of the thinker's interests and knowledge but can also help us to "know" and understand him better. If, as is the case with Nietzsche, the philosopher has annotated the books, then we are able to meet him not only in the omnipotent role of the author but also in the much humbler role of the listener and commentator, so that we have the opportunity not only to listen to the thinker pontificating but also, so to speak, to listen in on his conversations with other thinkers.
Pessoa não foi propriamente um filósofo, mas escreveu abundantíssimos textos críticos e a sua poética – como a de outros poetas modernos – surgiu de um alto grau de auto-consciência. Por isso, o diálogo que estabelece com outros autores revela-se também fundamental.
São infelizmente muito escassos os estudos que integram, de uma maneira ou outra, a consulta da Biblioteca pessoal de Fernando Pessoa. Maria Aliete Galhoz encontrou alguns dos ruba’iyat portugueses por si editados em Rubáiyát of Omar Khayyám; Jerónimo Pizarro fac-similou e transcreveu algumas páginas em Escritos sobre Génio e Loucura. Tão escassos são os estudos, que José Barreto (2007), ainda há pouco tempo, redigiu um notável ensaio em que se refere a John Mackinnon Robertson, «de longe o autor melhor representado na Biblioteca de Pessoa», com 23 títulos, mas sobre o qual ninguém tinha escrito. Trata-se de um caso paradigmático, em que a atenção dada à biblioteca permitiu «conhecer e compreender melhor» a Pessoa.
(Sem dúvida seria vantajoso microfilmar todos os livros, facilitar a sua consulta e elaborar um site; imagine-se o que seria ter a Biblioteca pessoal de Fernando Pessoa – http://bibliotecaparticular.casafernandopessoa.pt – como temos a Biblioteca particular de Calouste Gulbenkian, www.bibliotecaparticular.gulbenkian.pt, por exemplo...).
Para perceber melhor a importância de trabalhar conjuntamente a biblioteca e o espólio, daremos ainda um exemplo bastante concreto.
Como já indicámos, existem nos volumes da biblioteca de Pessoa comentários desenvolvidos, mas também breves apontamentos. Em The Poetical Works of John Keats, por exemplo, lê-se: «very good», por cima de «On first looking into Chapman’s Homer»; «good», na margem esquerda do primeiro verso de «Endymion»; e «admirable», junto ao último verso do soneto «On the sea». Podemos testemunhar, portanto, a leitura de certos poemas e intuir a sua importância.
O «Diário de 1906», que se encontra no espólio e foi publicado por Teresa Sobral Cunha em Colóquio-Letras, nº 95, Jan.-Feb. de 1987, aporta ainda outras informações e contextualiza a leitura de Keats, cujo nome se encontra referido entre os dias 8 e 16 de Junho de 1906. Nesse diário lê-se, a 9 de Junho: «Espronceda: “El Estudiante de Salamanca”»; e a 10: «Keats e Espronceda». Salientámos também o nome de Espronceda, porque ambos surgem associados e porque cerca dum ano depois, a 9 de Maio de 1907, Pessoa tinha quase concluído a tradução da primeira parte de “El Estudiante de Salamanca”: «9th May: Almost finished 1st part “St[udent] of Salamanca”» (cf. Escritos sobre Génio e Loucura, p. 623). Estes dados factuais, que permitem datar a leitura de Keats e de Espronceda (e a correspondente a tradução), são complementados e iluminados por uma nota que se encontra na margem direita do segundo verso de «The Eve of Saint Mark», poema que também figura em The Poetical Works of John Keats:
All was gloom, and silent all,
Save now and then the still foot-fall Cp. «tacitas pisadas huecas.» ESPRONCEDA
Of one returning homewards late,
Past the echoing minster-gate.
Se, movidos por estas pistas, continuarmos a seguir as «pegadas» de Pessoa, indo do espólio para a biblioteca e da biblioteca para o espólio, descobriremos ainda os fragmentos que ficaram da tradução de El Estudiante de Salamanca, para o inglês. Num desses fragmentos, identificado com a cota 74A-65, o décimo verso de Espronceda, «tácitas pisadas huecas», é traduzido por Pessoa da seguinte maneira: «To still and hollow foot-falls» (74A-65). A leitura de Keats auxilia e informa o labor do poeta-tradutor. A biblioteca torna-se, pois, inseparável do espólio. Talvez por falta desta consciência a primeira não tem sido tão bem conservada como o segundo.
Como Nietzsche, que deixou Basileia com um baú de livros que transportou consigo por Nice, Veneza e Torino até Engadin, em 1879, e que nunca se quis separar dos livros mais fundamentais, Pessoa mudou várias vezes de casa, levando consigo a sua célebre arca – actualmente o seu espólio – e também a sua biblioteca. Cumpre-nos hoje conservar o espólio e a biblioteca, de modo a reconhecer o esforço de preservação que Pessoa manteve durante mais de trinta anos e a importância dos materiais que ambos conjuntos documentais albergam.
Patricio Ferrari e Jerónimo Pizarro
BIBL.: BARRETO, José. «Fernando Pessoa racionalista, livre-pensador e individualista: a influência liberal inglesa», in A Arca de Pessoa – novos ensaios, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2007; BOTHE, Pauly Ellen. «Poesía y musicalidad en las poéticas modernistas de Fernando Pessoa y T. S. Eliot: la Ode marítima».Tese de mestrado em Literatura Comparada. Lisboa, Universidade de Lisboa, 2003; PESSOA, Fernando, Escritos sobre Génio e Loucura, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa, IN-CM, 2006.