Bernardo Soares surge em 1929, ou possivelmente já em 1928, como suposto autor do Livro do Desassossego, após cerca de oito anos em que o livro ficou em estado de relativa dormência. Se bem que 22 de Março de 1929 seja a data mais antiga inscrita num trecho da fase «soaresiana» da obra, há indícios textuais de que vários trechos não datados foram escritos nos meses precedentes. Parece que o costume — frequente mas nunca sistemático — de datar os trechos produzidos na última fase do Livro se foi impondo aos poucos, pelo que os dois trechos publicados em revistas no ano de 1929 e atribuídos a «Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa», não ostentam qualquer data nos seus originais dactilografados.

            Bernardo Soares, no entanto, já existia por volta de 1920, data aproximativa de um projecto relativamente extenso de obras em curso e que inclui Fausto e outras peças dramáticas, a poesia de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e o ortónimo, o Livro do Desassossego (sem autoria atribuída), ensaios, contos, novelas e a indicação «Bernardo Soares (Contos)». No mesmo caderno do referido projecto, figura uma lista de dez contos atribuídos a «B. Soares» e, ainda, o que parecem ser passagens desconexas para um deles, intitulado «História Amorosa de um Homem de Génio» (os referidos projectos e passagens figuram em Génio e Loucura, pp. 549-553). Bernardo Soares, pelo que vem na lista, era «herdeiro» de contos inacabados anteriores — nomeadamente «Marcos Alves» — e autor de outros ainda por escrever, mas não há indícios de nenhuma nova produção sua, para além do referido conto só vagamente esboçado. Pessoa deixou apenas uma pista biográfica sobre o Bernardo Soares de circa 1920. No fim da lista de dez contos, imediatamente acima de «Contos — B. Soares», lê-se: «Taquigrafia». Porque trabalhava como taquígrafo? Porque deveria escrever um tratado sobre a matéria? Em qualquer caso, parece que o contista estaria familiarizado com o ambiente e o trabalho de um escritório comercial.

            Quando reaparece em finais da década, encontramos Bernardo Soares profundamente inserido na vida comercial da Baixa lisboeta. Regista as entradas e saídas de dinheiro no livro-caixa de Vasques & C.ª, um armazém de fazendas situado na Rua dos Douradores, e vive na mesma rua, num quarto alugado de um quarto andar. Nesse exíguo âmbito quotidiano, faz altos voos com a imaginação. «Escriturantemente ninguém» (Livro do Desassossego, trecho 379), sonha e medita durante o próprio acto de inscrever os números e os nomes das fazendas. Nos intervalos do expediente e quando está em casa, vai escrevendo as páginas que formarão o seu «livro de impressões sem nexo» (trecho 442). Na sua carta sobre a génese dos heterónimos (datada de 13/1/1935), Pessoa explicou que o ajudante de guarda-livros lhe aparecia «sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de tenue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual (...)».

A prosa de Bernardo Soares, na verdade, continua a estar imbuída do irreprimível raciocínio do seu criador, mas «suspenso», no sentido de «latente», pois já não é o princípio conscientemente orientador do discurso. É uma escrita diarística, registando não os acontecimentos de uma vida mas sim as suas sensações e reflexões, que constituem uma «autobiografia sem factos» (trecho 12). É legítimo lê-la como sendo uma velada autobiografia espiritual, interior, do próprio Pessoa? Em grande parte sim, desde que tenhamos alguma cautela, resistindo à tentação de promover declarações isoladas a asserções gerais e definitivas aplicáveis ao verdadeiro autor. «Não tenho sentimento nenhum político» (trecho 259) é uma afirmação que decerto não diz respeito a Fernando Pessoa em geral, embora possa corresponder a certos momentos do seu sentir e pensar, ou a determinado canto do seu vasto ser. O trecho (235), que começa «Só uma vez fui verdadeiramente amado», parece basear-se naquilo — ou numa vertente daquilo — que Pessoa sentia ao ser amado por Ofélia Queiroz, mas está mediado, posto ao serviço da personagem de Bernardo Soares, da mesma maneira que um romancista aproveita a sua experiência pessoal para animar as personagens dos seus romances. Da mesma maneira? Não exactamente. Se Soares é um semi-heterónimo, também é um semi-Pessoa. Ou seja: uma representação, ou versão dramatizada, do autor. Tendo em conta a teoria pessoana de que é necessário fingir para comunicar aos outros, indirectamente, o que sentimos e somos, é possível que o seu semi-heterónimo tenha sido concebido como um eu exemplar ou essencial, um semi-eu-outro, para melhor podermos compreender quem era Fernando Pessoa. Seja esta hipótese válida ou não, o íntimo parentesco entre o criador e o criado é assinalado pela semelhança dos seus nomes: Fernando e Bernardo têm seis de oito letras em comum, e Pessoa e Soares cinco letras de seis.

Em termos de aparências externas, Bernardo Soares é uma personalidade complexa feita à imagem de Pessoa, mas numa versão mais humilde. O quarto onde vive é «reles», o seu trabalho monótono e os seus horizontes limitados à sua capacidade de sonhar, sem pretensões de realizar coisa alguma, excepto, talvez, a eventual publicação do seu livro. Quase não tem amigos. O Livro do Desassossego fornece dados suficientes para esboçar um retrato biográfico do seu sujeito-narrador. Nascido não em Lisboa mas na província, Bernardo Soares perdeu a mãe quando tinha apenas um ano, circunstância a que atribui «tudo o que há de disperso e duro» na sua sensibilidade. Passou a viver com parentes, parece que sem a companhia de outras crianças e sem que o pai o visitasse. Aos três anos de idade, disseram-lhe que seu pai se tinha suicidado (trechos 30, 262). Se é verdade que Soares, já adulto, sofria de fortes saudades da mãe, que nunca conheceu, transformando-a numa abstracta Mãe das Carícias, numa «Virgem-Mãe do Mundo absurdo», e pedindo ao Vento e ao Silêncio que a buscassem e lha trouxessem (trechos 395, AP4, 88), também era sensível ao anseio, seu e de qualquer homem, «pela mão paternal que o guie, como quer que seja logo que o guie, através do mistério e da confusão do mundo» (trecho 179).

            Veio para Lisboa quando era ainda criança e a sua recordação mais viva, e mesmo obsessiva, desse período foi a do som de um piano no andar por cima daquele onde morava, certamente com parentes (trecho 266). É possível que o jovem Bernardo ainda tenha voltado, durante algum tempo, para a província, antes de se instalar definitivamente em Lisboa, trazido por um tio que lhe arranjou emprego num escritório, talvez como paquete. Daí, passou por outros lugares, noutros escritórios, até chegar ao seu «píncaro barato de bom ajudante de guarda-livros» (trecho 130).

            Foi num outro restaurante, em cuja sobreloja jantava pelas sete da tarde, que conheceu Fernando Pessoa, um dos directores da revista Orpheu. Pessoa também era tímido com pessoas estranhas, mas, um dia, os dois trocaram algumas palavras, conheceram-se pouco a pouco, falaram de literatura, descobriram que tinham muitas afinidades, e Soares, convencido de que encontrara o seu semi-gémeo espiritual, resolveu entregar-lhe o Livro do Desassossego, para que o publicasse. Porque sabia que ia morrer? Sem dúvida, mas Pessoa nunca entrou em pormenores a este respeito. Ter-se-á suicidado, como fizeram o seu pai e o empregado da tabacaria onde comprava cigarros (trechos 317)? Ou terá simplesmente morrido de doença? Não sabemos.

            É preciso explicar que o Prefácio ao Livro, em que Pessoa relata o seu encontro com o pseudo-autor da obra, terá sido escrito em 1915 ou 1916, portanto antes de Bernardo Soares ter surgido no mapa heteronímico, e não é seguro que o autor do subautor, caso tivesse revisto e articulado os vários elementos dispersos do livro, conservasse, nos mesmos termos, o encontro ficcional com a sua personagem, num restaurante. Em contrapartida, é evidente que Pessoa quis confiar, retroactivamente, a Bernardo Soares a «autoria» de todo o Livro do Desassossego. Esta intenção é expressa por vários indícios. Nos seus escritos posteriores a 1928, o nome de Vicente Guedes — personagem antigamente «responsável» pelo Livro — nunca é mencionado em associação com este. Uma carta a João Gaspar Simões, enviada em 28/7/1932, e a já citada carta a Adolfo Casais Monteiro indicam Bernardo Soares como o único autor do Livro. No grande envelope onde reuniu materiais para o Livro do Desassossego pouco antes de morrer, Pessoa incluiu uma folha dactilografada com aspecto de frontispício que identifica Soares como o pseudo-autor da obra e Fernando Pessoa como o autor verdadeiro; excluindo do mesmo envelope três pequenos fragmentos em que surge o nome de Vicente Guedes.

Existem, no entanto, edições do Livro do Desassossego que atribuem a Vicente Guedes o estatuto de co-autor ficcional, responsável pela primeira metade da obra. A possível justificação para este procedimento reside na declarada intenção de Pessoa de adaptar os trechos mais antigos, «que falhem à psicologia de Bernardo Soares, tal como agora surge, a essa vera psicologia» (nota solta, em Livro do Desassossego, p. 489). Por essa adaptação não ter sido realizada, os trechos antigos continuam sendo de Vicente Guedes, segundo as edições em questão. Pessoa, porém, na referida carta a João Gaspar Simões, em que alude ao tal trabalho de adaptação («o Livro do Desassossego tem muita coisa que equilibrar»), já reconhecia Bernardo Soares como seu único «autor». Há, igualmente, trechos da última fase (inquestionavelmente «soaresiana») escritos no estilo simbolista que caracteriza muitos dos trechos mais antigos. O exemplo mais flagrante disto é o trecho datado de 28 de Novembro de 1932, que principia assim: «Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos, na macieza estalante das folhas, que juncavam, amarelas e meio-verdes, a irregularidade do chão». Parece uma óbvia continuação de «Na Floresta do Alheamento», escrito quase vinte anos antes, e se não fosse datado, enganar-nos-ia a todos. Surpreende-nos menos que surja uma prosa assim, à maneira antiga do Livro mas assinada por Bernardo Soares, quando tomamos conhecimento de um «currículo» que Pessoa elaborou para ele por volta de 1929 (reproduzido no Prefácio ao Livro do Desassossego). A seguir ao seu nome e morada («Rua dos Douradores»), várias obras lhe são atribuídas, incluindo «Os trechos vários (Sinfonia de uma noite inquieta, Marcha Fúnebre, Na Floresta do Alheamento)». Ou seja, os três trechos nomeados e os restantes «trechos vários» da fase antiga do Livro, outrora «propriedade intelectual» de Vicente Guedes, passaram a integrar a obra literária de Bernardo Soares, por decisão expressa do autor de tudo e de todos. O mesmo «currículo» confia-lhe os seis poemas de «Chuva Oblíqua», os catorze sonetos de «Passos da Cruz» e outras «Experiências de Ultra-Sensação». Num apontamento posterior, no entanto, Pessoa indica a sua intenção de reunir, num livro separado, «os poemas vários que havia errada tenção de incluir no Livro do Desassossego» (Livro, p. 488). Os trechos, porém, permaneceram.

Bernardo Soares, para além de se apoderar de boa parte do património literário de Guedes, apropriou-se da sua biografia. Tinha a mesma profissão que o seu antecessor; morava, como este, num quarto andar da Baixa (numa rua diferente, é certo); também era um diarista empenhado; e recordava-se — como Vicente Guedes antigamente se lembrava — de passar os serões, em miúdo, entre velhas tias. Soares, contudo, não herdou inteiramente o carácter do outro. Vicente Guedes tinha um estilo de escrita mais próximo do de Pessoa ou do Barão de Teive, pois encarava as suas angústias e o seu desassossego, tal como estes, de uma forma fria e implacavelmente racional. Sobre o ajudante de guarda-livros da última fase, Pessoa observou que «quando pensa é subsidiariamente a sentir» (no seu «Prefácio às Ficções do Interlúdio»). Ao contrário do poeta de «A Ceifeira», Bernardo Soares, se escrevesse poesia, diria «O que em mim pensa está sentindo».

Richard Zenith

 

BIBL.: PESSOA, Fernando, Escritos sobre Génio e Loucura, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa, IN-CM, 2006; PESSOA, Fernando, Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 7.ª ed. 2007.