A relação de Fernando Pessoa com Bandarra («este cujo coração é Portugal», ou ainda «aquele sapateiro de Trancoso em cuja alma vivia, ninguém sabe como, o mistério atlântico da alma portuguesa», 125B-6), foi duradoura (pois desde a sua adolescência a veia sebastianista irrompera em estudos e projectos: A study of prophecies relating to Portugal, O Futuro Oculto de Portugal) e frutuosa, estando consagrada na Mensagem, onde Bandarra é um dos três profetas do V Império, com Vieira e F. P. Ela consubstancia-se em prefácios, entrevistas (em 1923, dirá a Augusto Costa: «O Quinto Império. O futuro de Portugal – que não calculo, mas sei – está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé?») e, sobretudo, em dezenas de páginas de escritos e reflexões, muitas das quais (pois outras, embora sob o título Bandarra, tratam mais de aspectos ocultistas e iniciáticos, tal o 54A-23) fariam parte do projectado (de que nos restam várias páginas) Comentário maior às Profecias do Bandarra, com doze capítulos: «Propósito do Livro. A Voz Profética. O Bandarra e as suas Profecias. O Quinto Império. O Império Português. D. Sebastião. Os Perigos Maiores (As Três Invasões). Os Perigos Menores (Os Três Perigos). Os Falsos Encobertos (D. João IV, Pombal, Sidónio). As épocas da Civilização (v. Europa). O Cumprimento das Profecias (C[orpo]3, s[onho] 6º). Conclusão.» (125B-8).

Tal estudo das profecias de Bandarra e das leis pela qual elas se regem justificava-se pela sua crença nos Destinos das pessoas e dos povos bem como pelo seu nacionalismo e ânsia de estimular Portugal, dando novos sentidos ou orientações ao povo e às suas correntes tradicionais, como o saudosismo, o messianismo, o sebastianismo e o universalismo, para revelação e cumprimento da grande Alma portuguesa. Tal evidencia-se, nos projectos de um volume sobre O V Império, para a criação do sentido místico da nacionalidade, do orgulho nacional e da cultura propriamente portuguesa, de um sobre O Sentido de Portugal e outro ainda A Profética Portuguesa, este com três capítulos: «A profecia pré-Bandarra. O Bandarra. Profecias post-Bandarra» (125B-62)

Estando F. P. numa via iniciática, sobretudo através do ocultismo e do simbolismo, como na inteligência analógica o «grau maior é a interpretação das profecias e dos símbolos. A interpretação das profecias é uma fusão da inteligência analógica com a racional» (125B-39), o convívio e o adestramento profético interessavam, pelo que também lerá e glosará Daniel, S. Dâmaso Português, Nostradamus, S. Francisco de Paula, outro sapateiro santo Simão Gomes (protegido de D. Sebastião) e o P. António Vieira, e comentará os vaticínios citados por José Agostinho de Macedo, ou os dos seus contemporâneos Gomes Leal, Raul Leal, Augusto Ferreira Gomes, Lusitanus e Mário. Na sua biblioteca encontramos muito anotadas as valiosas obras de Lúcio de Azevedo A evolução do Sebastianismo, e de Sampaio Bruno O Encoberto, com quem se correspondeu (duas breves cartas), tentando aprofundar a tradição lusa, tanto mais que muito o considerava: «Só um homem em Portugal mostra compreender: Sampaio Bruno» (114-104, in A. C. F. P.)

Gonçalo Anes, por alcunha ou apelido Bandarra (1500-45,56 ou 60), foi um sapateiro de Trancoso dado a estudos interpretativos e messiânicos (numa época de grande fervilhamento peninsular e europeu) da Bíblia bem como a trovas proféticas e visionárias («vejo sem abrir os olhos/ tanto ao longe como ao perto»), pelos quais se tornou conhecido, apreciado (um tal Mendes, de Setúbal, «a vossa obra me fez tão ledo cada vez que a leio que não me lembra outra coisa») e muito visitado, circulando as trovas em manuscritos ou de viva voz. Esteve preso na Inquisição lisboeta, saindo no auto-de-fé de 23/10/1541, com a promessa de não mais se aventurar no sacro depósito das Escrituras. As Trovas foram incluídas no rol dos livros proibidos de 1581, pois começaram logo a servir a causa da independência de Portugal em relação aos castelhanos, fortificando o sebastianismo. Em 1603, em Paris, sai do neto de D. João de Castro, um indefectível sebastianista, a Paráfrase e Concordância de algumas profecias de Bandarra, sapateiro de Trancoso; em Nantes surge, em 1644, a 1ª edição das Trovas, a que se seguirão impressões com novos corpos, tal o 2º e o 3º na de Barcelona, 1809 (Trovas do Bandarra... oferecidas aos verdadeiros portugueses devotos do Encoberto), Bandarra descoberto nas suas trovas. Londres, 1810, e os 4º e 5º corpos na edição londrina de 1815 e, por fim, a Explicação do Terceiro Corpo das Prophecias de Gonçalo Yannes Bandarra. Porto, 1852 (reimpressão, Arquimedes Livros, Lisboa. 2006). A maior parte destas obras foram consultadas na Biblioteca Nacional por F. P. (125-34) e copiadas. As trovas serão até aos nossos dias continuamente objecto ora de explicações ora de misturadas (tal a edição de 1911, da lisboeta Livraria Universal), transmitindo ritmos e motes visionários e proféticos e intensificando compreensões ou manifestações espirituais e do Desejado ou do Encoberto.

     A propósito do 3º corpo, o mais comentado, e também por F. P. (por ex. 125B-27a 31), este afirma no prefácio ao Quinto Império de A. Ferreira Gomes, em 1934: «Bandarra é um nome colectivo, pelo qual se designa, não só o vidente de Trancoso, mas todos quanto viram, por seu exemplo, à mesma Luz. Este Terceiro Corpo não é, nem poderia ser, do Bandarra de Trancoso. Dizemos, contudo, que é do Bandarra». Para F. P., «é Bandarra um nome colectivo, e designa não só um homem, o primeiro português que teve a visão profética dos destinos do país, senão também aqueles outros, que se lhe seguiram, e que, servindo-se do seu tipo de visão e da sua forma literária. A identidade do tema, a semelhança dos processos, proféticos como literários, a perfeita continuidade espiritual dos sequazes com aquele a quem seguiram, justificam que aceitemos, para a simplicidade da alusão, a designação «Bandarra» como distintiva do autor destas profecias» (125A-20).

Dentro deste veio se insere F. P. quando, nos anos 20, na luz e no estilo bandárrico, em fortes críticas aos governantes da época e em visões de luz e esperança, trovará em dezenas de versos (uns muito semelhantes aos de Bandarra), dos quais citamos uns poucos dos mais conseguidos e significativos: «Sinto perto o que está longe, / Quando penso julgo que fito, / Meu corpo está sentado hoje,/ Minh’alma anda no Infinito./(...) /Quando vou por um caminho/ É por dois caminhos que vou:/ Um é por onde me encaminho/ O outro a verdade onde estou/ (...) / O fado cantado à guitarra/ Tem um som de desejar./ Vejo o que via o Bandarra, / Não sei se na terra ou no ar.» E o final «Se tenho frio me aqueço/ Só com pensar no Encoberto/ (66A-57, in F. P. P. P. M. E.). Lembremos que para F. P. o Encoberto evocado e invocado, senão mesmo «talhando-se em nós como corpo espiritual para que o Segundo Advento carnalmente se faça,» podia actualizar-se a cinco níveis: «o homem, a esperança, o símbolo, o Mestre, o Cristo» (53A-47, td., in R. Cruz).

     Num texto de forte nacionalismo religioso e revolucionário onde, demarcando-se dos sete montes de Roma, pois também os há em Lisboa, apela a que «deixemo-nos de importar Deus, porque Deus está em toda a parte», F. P., exclama «o verdadeiro patrono do nosso País é esse sapateiro Bandarra. Abandonemos Fátima por Trancoso. Esse humilde sapateiro de Trancoso é um dos mestres da nossa alma nacional, uma das razões de ser da nossa independência, um dos impulsionadores do nosso sentimento imperial. Esse Bandarra é a voz do Povo português, gritando, por cima da defecção dos nobres e dos clérigos, por cima da indiferença dos cautos e incautos, a existência sagrada de Portugal. Quando António Vieira quis basear em qualquer coisa a sua fé natural nos destinos superiores da Pátria, que coisa foi a que encontrou? As profecias desse sapateiro de Trancoso. Amou-as e as comentou o maior artista da nossa terra, o Grão-mestre, que foi, da Ordem Templária de Portugal» (125A-3). Acrescentemos que de facto o P. António Vieira comentou e apoiou-se bastante em Bandarra, não só na História do Futuro mas sobretudo nas defesas nos processos inquisitoriais (estudados por Hernâni Cidade e Adma Muhana) mas que F. P., posteriormente desceu Vieira do grau de Grão Mestre para o de Adepto Menor da Ordem Templária de Portugal (53B-20, in R. C.), na qual F. P. se afirmou iniciado nos três graus menores, um acima de Vieira, e da qual um fragmento (53B-6) nos mostra, noutra escala dos graus, no 1º nível, designados como makers and builders, os exemplos do rei D. Dinis e de Bandarra, culminando no nível supremo com o Senhor (Jesus), mestre do Templo.

F. P., a partir do seu aprofundamento da tradição espiritual e templária (e assim a sua Mensagem está tão embebida na gnose e no simbolismo templário e rosicruciano, terminando com o tradicional Valete, Fratres), virá mesmo a dizer que «o nome Bandarra, que é de facto o apelido do sapateiro profeta, passou a designar, a dentro da Ordem de Cristo, qualquer dos Irmãos que assumira a mesma luz, ou, falando figurativamente, o mesmo grau. Assim a maior parte das profecias, ou trovas (coisa trovada, ou achada) nada têem a ver com a pessoa humana do sapateiro de Trancoso» (54-88). De facto Bandarra morreu antes do nascimento de D. Sebastião, mas foi com a perda da Independência, com o sebastianismo e a esperança de Portugal livre, sustentada sobretudo pelos franciscanos, frades e cavaleiros da Ordem de Cristo e jesuítas (que F. P. considerava ligada à Ordem de Cristo), que as profecias bandárricas circularam em sucessivas avatarizações, de que o P. António Vieira foi mestre. De notar, que na época, o médico Gérard Encausse, ou Papus, bem lido por F. P. e que o desejava mesmo conhecer, no seu opúsculo Qu’est-ce que l’ occultisme?  defendia também que o Comte de Saint Germain, seria o nome colectivo dos iluminados que confiaram a Cagliostro a sua missão.

Dos ensinamentos que extrai das trovas, nomeadamente do 3º corpo, destacam-se, primeiro, as interpretações que faz da quadra: «Em vós que haveis de ser quinto/ Depois de morto o segundo,/ Minhas profecias fundo/ Com estas letras que aqui pinto/», na qual o AQI abrevia Arma, Quies, Intellectus, e VOS simboliza Vis, Otium e Sciencia (125B-27), as três fases porque Portugal tem de passar no seu percurso, da força das armas e do ócio do sossego à ciência ou gnose também vista como intelecto puro ou Unidade. Em segundo, as especulações sobre os três «pontos essenciais da profética do Bandarra: o Quinto Império, a ida e regresso d’ El-Rei D. Sebastião, e os destinos de Portugal» (125A-31), acrescentando que à frente explicará «o que seja esse regresso, ou, «os regressos» de El-Rei D. Sebastião», que seriam, sobretudo, nas datas de 1640 (Independência), 1888 (Grandeza, nascimento de F. Pessoa) e 2198 (o pleno e vero V Império). Em terceiro, utilizando na interpretação das trovas, como com os mitos e sonhos que visionava e trabalhava, a regra profética tripla (125A-30) ou o lema da tripeça ou trípode (três realizações, ordens, tempos, sentidos ou níveis, prefácio ao V Império de Augusto F. Gomes), concluirá, por exemplo, que «a profecia é visionária e simbólica e translata» (125-74) ou que, se materialmente já estávamos no V Império, o da Europa, no plano intelectual tínhamos de passar do europeu para o universal, enquanto espiritualmente estávamos ainda no terceiro, faltando ainda muito tempo (segundo alguns textos, só em 2198) para chegarmos a viver essa «”paz” que o Bandarra diz que haverá em todo o Mundo, será a paz de não haver diferenças religiosas, a de “um só Deus será conhecido”» (125A-40).

Relembre-se a existência de múltiplas caracterizações do V Império, ora como a reunião da ciência, raciocínio e especulação intelectual de um lado e o conhecimento oculto, a intuição e a especulação mística e cabalística do outro, numa fusão do material e do espiritual, ora como o segundo Advento (125A-33), um cristianismo novo e não católico, uma fraternidade de língua (125-12), a universalização da civilização europeia, ou ainda «D. Sebastião, no seu triplo carácter de Rei (isto é, Rei Nacional, de Desejado e de Encoberto. Estamos na Era do Desejado. Finalmente vem o Encoberto. É este o nome de Osíris, cujos membros dispersos - as diferentes religiões – serão então reunidos, extinta a Igreja de Roma, na verdadeira Igreja Católica, na religião, por fim, universal. E então se poderá ver o que o iniciado de Patmos chamou “um céu novo e uma terra nova”» (125A-94).

De realçar a menção do apóstolo S. João como o iniciado dessa ilha grega entre o Oriente e o Ocidente, o discípulo mais próximo do mestre Jesus, um dos primeiros transmissores da tradição secreta do cristianismo, originador da igreja joanina, a mais gnóstica e amorosa (e a quem foi atribuído a «visão mística» do Apocalipse, equiparado por F. P. no seu valor às Trovas de Bandarra, estas provindas de uma «visão racional»), numa evocação adequada a quem se confessou no fim da sua vida «cristão gnóstico, fiel à Tradição secreta do cristianismo», iniciado na Ordem do Templo ou de Cristo, e tanto escreveu pelo futuro universal do Portugal essencial.

 

Biblio:

As obras de Bocarro Francês, Petrus, Dalila Pereira da Costa, António Quadros, Elias Lipiner, Manuel Joaquim Gandra. Poesias de Luís de Palmeirim e António Sardinha.

 

Pedro Teixeira da Mota