Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/7_30
Esp.115/7_30
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Lisboa, a 13 de Janeiro de 1916. 

 

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Paris – Janeiro 1916

Dia 13

Meu Querido Amigo,

 
Recebida a sua carta de 7. Muito, muito interessantes as notícias que nela você me dá. Deus queira que tudo isso vá por diante. Ena pai: logo 3 revistas literárias – e duas mais ou menos paulicas: o Centauro, o Exílio. Os rapazinhos têm imensa piada, valem um dinheirão. Está como o outro mágico da Empresa Culinária que vai publicar o livro em ?. Soberbos, e bem-vindos. O Rodrigues Pereira detective é pendant do Dr. Leal mímico. Ao menos não sou só eu que estou doido. Porque creia, meu pobre Amigo: eu estou doido. Agora é que já não há dúvidas. Se lhe disser o contrário numa carta próxima e se lhe falar como dantes – você não acredite: O Sá-Carneiro está doido. Doidice que pode passear nas ruas – claro. Mas doidice. Assim como o Ângelo de Lima sem gritaria. Literatura, sensacionismos – tudo isso acabou. Agora só mani- cómio. Sabe? Preciso cada vez tomar mais cuidado diante dos outros. Se não faço asneiras, positivamente asneiras. Ponho-me como um pimento, faltam-me as palavras e deixo cair o guardanapo. É um horror.

Porque tenho noção disto tudo – noção perfeita. Estalo, estalo! Não sinto já a terra firme sob os meus pés. Dá-me a impressão que sulco nevoeiro: um nevoeiro negro de cidade fabril que me enfarrusca – e eu então volto umas poucas de vezes por dia a casa a mudar de colarinho. Claro que não mudo de colarinho na realidade – mas em «ideia» umas poucas de vezes por dia. Juro-lho que é assim mesmo.

Tudo isto não impediu que Domingo passado no atelier do Ferreira da Costa entre cantoras e actrizes falidas se dissessem versos meus: uma tradução que o F. da Costa teimou em fazer da «N. Sr.a de Paris» que ele acha muito bela, apesar de burguesão – e que não ficou má porque eu a emendei. Depois as «Îles de mes Sens» que eu acabei com quatro versos atamancados. E uma piadinha que em tempos fiz: «Les Heures ont pris mon Angoisse» etc. Leu tudo isto uma das actrizes falidas. Muito bem, por sinal. E houve quem gostasse: um compositor, sobretudo: que achou «curiosíssimo, inteiramente novo». Que quer fazer música para a versalhada. Também se traduziu à la diable e à la minute a «Inegualável» – que deu no goto às raparigas: por se querer uma mulher com jóias pretas e que não pudesse dar um passo. Enfim, insinuações paulicas por Paris. Amanhã vou a casa do H. Cristo que parece querer publicar um folhetim no Éclair sobre o Céu em Fogo. Naturalmente nunca mais o escreve.

Bem, adeus. Não se zangue comigo por causa desta carta – e sobretudo, sobretudo escreva-me muito. Como se fossem seus, inteira- mente seus, disponha dos meus versos quanto a publicação. Carta Branca. Não tenha nenhum escrúpulo.

Mil abraços do seu pobre

M. de Sá-Carneiro

P. S. Avise imediatamente o Rodrigues Pereira que pelo mesmo correio lhe envio uma carta para a Brasileira do Chiado onde deve hoje mesmo reclamá-la. Não se esqueça disto. E escreva – escreva grandes cartas por amor de Deus. Tenha dó de mim! Escreva!

Mais abraços do

Sá-Carneiro

Mais três quadras da tal poesia que lhe dão bem a prova se eu estou ou não doido. Diga-me o que pensa desta fantochada: não se esqueça!

Levantar-me e sair. Não precisar

De hora e meia antes de vir prà rua.

Pôr termo a isto de viver na lua –

Perder a frousse das correntes de ar.

 

Não estar sempre a bulir, a quebrar cousas 

Por casa dos amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias melindrosas

Que em fantasia, apenas, argumento...

 

Que tudo em mim é fantasia alada,
– Um crime ou bem que nunca se comete –:

«Ideia» mesmo, o meu ir à retrete
Que me leva uma hora bem puxada...

 

(Não se zangue comigo! Escreva-me muito!)

P. S. n.o 2

– Repito que disponha dos meus versos como se fossem seus quanto a colaboração nas revistas.

– Impagável caso Vaz Pereira Que Não Quebra Um Prato!!

– Breve enviarei carta que pede Leal e escreverei com mais juízo, prometo. Mas não acredite!

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5856
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas lisas e sobrescrito timbrados.
Dados de produção
1916 Jan 13
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.