Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/7_29
Esp.115/7_29
Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Lisboa, a 8 de Janeiro de 1916. 

 

**

Paris – Janeiro 1916

Dia 8

Meu Querido Amigo,

 

Recebi os seus dois postais de 3-4 que muito agradeço. Ansioso no entretanto aguardo carta. Pouco a dizer-lhe. Mas leia essa admirável, essa genial carta do Carlos Franco que envio juntamente e você me devolverá – sem pressa. Mostre-a, sobretudo, ao Pacheco e ao Rodrigues Pereira. Não se esqueça. Diga-me o que pensa dela – e sobretudo das frases que sublinho. A do «comboio de folha» fez-me vibrar um calafrio supremo. Que dó a situação do C. Franco – e que pena que ele não exe- cute a sua Alma numa obra! Que admirável escritor da nossa escola se não perde nele – que admirável artista! Não me acha razão? Fale. – O meu estado psicológico continua a mesma caçarola rota. Agora é pega- rem-lhe com um trapo quente – cada vez estou mais convencido. Cheguei ao ponto de escrever estas quadras:

 

Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou, mas de poder tocar-lhe...

E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe...

 

Viver em casa como toda a gente –

Não ter juízo nos meus livros, mas

Chegar ao fim do mês sempre com as

Despesas pagas religiosamente...

 

Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas.
À minha torre ebúrnea abrir janelas,

Numa palavra – e não fazer mais cenas!

 

Ter força um dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai.
– Não mandar telegramas ao meu Pai,
Não andar por Paris, como ando, às moscas...

(à suivre)

Já vê o meu querido amigo... Não lhe dizia eu que estava um boneco muito pouco interessante?... A melhor terapêutica, se tiver forças ainda para a aplicar é escrever a «Novela Romântica». Assim venho pedir-lhe um grande favor e causar-lhe uma grande estopada: procurar a carta em que eu lhe desenvolvi a novela pois perdi os apontamentos que tomara. Você assim faz-me um grande favor! Vamos a ver se ainda posso escrever aquela história. É o único remédio! Cada vez posso menos deixar de ser Eu – e cada vez sofro mais por ser Eu. Infelicidade porém que já não – como outrora – esse sofrimento me doire. Hoje apenas, juro-lhe, se me fosse possível, apagaria o oiro... Ai, ai que caranguejola! Desculpe estes lamentos. E procure a cartinha – sim? Tenha paciência. Mas logo que possa hein? – O José Graça escreveu-me uma carta que recebi hoje. Desfaz-se em desculpas, que foi o revisor etc., e que na Ilustração Portuguesa vão sair umas linhas sobre o assunto. Veremos...

Em todo o caso vê-se que ficou à brocha – e é amável o pequeno, vamos lá!... Mais nada lhe tenho a dizer – senão que pela sua imortalidade me escreva uma grande, grande carta urgentemente!!!

Dê saudades, muitas, a Rodrigues Pereira, Pacheco, Rui Coelho, Eduardo Viana, Vitoriano etc. ao Almada também.

Adeus. Escreva! o seu, seu

M. de Sá-Carneiro

Pergunte ao Rodrigues Pereira – para quem mando mais um abraço – se está mal comigo e com o Ferreira da Costa por não lhe termos enviado a mala. Como nunca mais nos escreveu...

P. S. – Não deixar de mostrar a carta a Franco, a Pacheco e Rodrigues Pereira.

 
 
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5855
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas lisas e sobrescrito timbrado.
Dados de produção
1916 Jan 8
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.